O Copan

Rafael Moraes
5 min readJun 17, 2017

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Curvas. O dia que vi Niemeyer justificá-las eu entendi que se tratava de um arquiteto que optou pela arte. Mas isso não vem ao caso aqui

Morei no Copan durante 3 anos. Uma experiência difícil de explicar pela quantidade de nuances. É um condomínio diferente, claro. Em vários aspectos, ou seja, nuances. A arquitetura, naturalmente, como provavelmente queria o arquiteto, influencia. Corredores largos mudam a velocidade do seu caminhar, galerias lotadas de gente na saída de sua portaria tornam você mais sociável. Ou não. Mas jamais te deixam a possibilidade da indiferença. Bem, além disso, além do hipsterismo resultante e inevitável, das incríveis histórias de fugas providenciais durante a ditadura, do milagre de passar de decadente a desejado pelas mãos de um solitário e bonachão síndico, além disso, não é só o Copan, o centro vem junto. Eu me senti em casa. Mas não seria para a vida toda. É muito diferente morar no bairro da Saúde, ou em Santana, ou mesmo em Pinheiros, o clima do centro é de excesso. O centro é agudo.

Começa pela liberdade, essa vitória de Pirro. No centro estamos livres de regras de comportamento e convivência que sufocam os bairros. Morei no Jabaquara e lembro do conforto que era ser adequado à padoca da rua, conhecido de todos, enfim. Isso não há no centro, onde impera a liberdade. Mas não se esqueça, vitória de Pirro. A liberdade tem um peso impressionante. Adiante. Em um resumo possível, o centro é: ruídos ininterruptos, mundanismo (que é necessário a nosotros da fauna do centro, mas requer estofo para lidar com o vazio), agitação constante, transitoriedade que também pesa pelo vazio e um consequente niilismo que não sabemos se existe a priori e nos leva ao centro ou brota quando nos metemos lá.

Há várias boas reportagens televisivas sobre o Copan, cada uma com foco em um aspecto, o que prova a riqueza de nuances do viver ali. O Copan já esteve decadente mas hoje talvez seja o condomínio mais bem administrado de São Paulo. E morar nele se tornou um desejo. Hoje, moram nele pessoas abastadas, conhecidas, como Pedro Herz, dono da Livraria Cultura, além de artistas, arquitetos e hipsters em geral. E muito mais, além desses tipos óbvios. No Copan fica o Bar da Dona Onça, um patrimônio da boemia possível nesses dias e, mais importante diante das limitações ao exercício do etílico processo filosófico de se matar como forma de manter o controle que não se tem, a Dona Onça é reduto da boemia que come bem. Ou seja, dificilmente haverá um lugar hoje em São Paulo com igual convergência de acasos interessantes. Não deve ser por acaso, nunca é. O que não deixa de ter um preço, expresso em possibilidades, eu diria, essa outra amarra frequentemente subestimada.

A melhor reportagem televisiva sobre o condomínio, na minha opinião, é a da globonews, que o canal com muito boa vontade chama de documentário. Nem é a mais interessante, mas ela é minha preferida pelo foco que dá na arquitetura, no projeto e sua relação com o entorno. Em vez de optar pelo clichê de entrevistar malucos e diferentes, optaram por entrevistar moradores que escolheram, até porque podiam, investir lá, tocando projetos arrojados que denotam uma escolha bem resolvida para a vida toda. E, por fim, entrevistaram gente conhecedora com formação em arquitetura.

Projeto que por vários motivos Niemeyer renegou por um tempo. Dizem que a área interna, inclusive, não tem o dedo dele, pois foi totalmente modificada para atender interesses econômicos comezinhos como aumentar umas 50 quitinetes, sei lá, chuto que foi nesse momento em que aumentaram as unidades, fato conhecido. É certo que ele já não estava mais lá, tinha sido convocado para Brasília se não me engano. Importante lembrar, já que hoje seus projetos são muito criticados, que o conceito de unir em um mesmo espaço urbano famílias ricas e pobres é um pensamento contemporâneo e o direcionamento atual em todo o mundo. Continuar atual, embora muito criticado, controverso, é atributo de gênio.

Outro aspecto interessante do projeto, como mostra o arquiteto Ciro Pirondi, entrevistado pela reportagem, é a rua interna que insere organicamente o edifício no urbanismo à sua volta. No caso do Copan, é uma rua interna muito interessante, pois ela liga Av. Ipiranga a Av. São Luiz, duas ainda importantes vias do centro. É um caso onde a visão do arquiteto estimula até a economia. Pois abrindo vias ele estimula a circulação. E consequentemente proporciona o nascimento espontâneo de “redes sociais”, que se tornam mercados e espaços de convivência.

Um dos maiores prazeres que eu tive ao morar no Copan era sair pela ligação com a São Luiz e já entrar na praça Dom José Gaspar, e dali, em poucos minutos estar em qualquer ponto de interesse do centro velho. Seja no Mercadão (ou zona cerealista, no meu caso) ou na Liberdade, para ficar em dois exemplos. A pé.

Poder atravessar o Copan por suas galerias e rua interna é o conceito de Brasília. Em ambas as asas de Brasília você consegue ir de um extremo a outro a pé, sem obstáculos e limites como muros ou cercas. Eu tenho pra mim que isso é tão potente socialmente que Brasília talvez seja a cidade do Brasil em que mais floresceu o fenômeno das gangues. A potência de abrir vias para circulação que se transformam em redes sociais é tão grande que pode levar a esses efeitos indesejáveis. Mas onde mais poderia florescer gangues juvenis que não em uma cidade formada por condomínios sem cercas, onde adolescentes vivem o estímulo diário de desbravar novas turmas e lidar com toda a rica experiência social decorrente, permeada por códigos e cercas imaginárias a dar identidade a cada bloco de uma superquadra?

O problema é que não há mais espaço para Niemeyers. E não é um problema de escassez de gênios. É que em nosso capitalismo para privilegiados e apaniguados o interesse econômico é que determina a política do espaço público. Não tenho a intenção de defender o Haddad aqui, não é o caso. Mas talvez fosse um caminho estudar o fracasso eleitoral de seu governo a partir da pressão que criou contra si ao propor de início uma arrojada política para o espaço urbano de São Paulo. Colocando em prática políticas ousadas de oneração de imóveis especulativos e improdutivos. Revendo o zoneamento e assim frustrado interesses de diversas pessoas e empresas. Planos diretores em qualquer município obedecem aos interesses dos próprios vereadores, que a partir da inevitável informação privilegiada sobre os rumos que a cidade vai tomar, em forma de códigos de postura e política de ocupação do solo, se adiantam para aproveitar as oportunidades que virão a partir dessas políticas que eles mesmos aprovarão. Junto aos empreiteiros que os financiam. Mais, muitas vezes essas políticas são orientadas para beneficiá-los em propriedades já existentes. O que é pior, pois para atender interesses particulares o planejamento urbano é orientado por gambiarras.

Uma das consequências da sobreposição de interesses públicos por privados, de Niemeyer para cá, pode observar, é que hoje a arquitetura se preocupa mais com materiais, com acabamento. Não há mais espaço para o arquiteto urbanista. Aquele projetista, que a depender da visão, abrirá caminhos para emergir fluxos e encontros que se transformarão espontaneamente em dinâmicos mercados e civilizados e profícuos espaços de convivência.

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