Sim, nós queremos dizer literalmente abolir a polícia

Rafaela Venturim
6 min readJun 13, 2020

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Porque a reforma não vai acontecer.

Texto por Mariame Kaba. Traduzido livremente por Rafaela Venturim.

Original no inglês.

Ilustração por Nicholas Konrad; foto do Getty Images.

Congressistas democratas querem tornar mais fácil identificar e processar más condutas policiais; Joe Biden quer oferecer 300 milhões de dólares aos departamentos de polícia. Mas os esforços para acabar com a violência policial através de reformas liberais como essas têm falhado por quase um século.

Basta. Não podemos reformar a polícia. A única forma de diminuir a violência policial é diminuindo o contato entre as pessoas e a polícia.

Não existiu um momento sequer na história dos Estados Unidos em que a polícia não foi uma força de violência contra pessoas negras. O policiamento no Sul emergiu a partir de patrulhamentos de escravos que, entre 1700 e 1800, fugiam e eram capturados para retornar a seus papéis. No Norte, o primeiro departamento de polícia municipal, em meados de 1800, ajudou a aniquilar greves trabalhistas e revoltas contra os ricos. Em todos os cantos, a polícia reprimiu as populações marginalizadas para proteger o status quo.

Então quando você vê um oficial apertando o joelho em cima do pescoço de um homem negro até a morte, este é o resultado lógico do policiamento nos Estados Unidos. Quando um policial brutaliza uma pessoa negra, ele está fazendo o que ele vê como seu dever.

Agora, após duas semanas de protestos em escala nacional, surgem as demandas para cortar o financiamento da polícia, mas alguns argumentam que fazer isso nos deixaria menos protegidos.

A primeira coisa a ser esclarecida é que policiais não fazem o que você acha que eles fazem. Eles passam a maior parte do tempo respondendo a reclamações de perturbações sonoras, aplicando multas de trânsito e lidando com outros tipos de condutas não-criminais. Fomos ensinados a pensar que eles “capturam os caras maus, perseguem ladrões de bancos, encontram serial killers”, diz Alex Vitale, que coordena o Policing and Social Justice Project, na Brooklyn College, em uma entrevista à Jacobin. Mas este é “um grande mito”, diz ele. “A maior parte dos policiais efetua uma prisão por crime num ano. Se um policial efetua duas prisões, ele é o policial do mês”.

Não podemos simplesmente mudar a descrição dos cargos para fazer com que eles foquem no pior dos piores criminosos. Eles não foram configurados para isso.

Em segundo lugar, um mundo “seguro” não é aquele em que a polícia mantém negros e outros grupos marginalizados sob controle através de prisões, encarceramentos, violência e morte.

Tenho advogado a favor da abolição das prisões há anos. Independente da sua visão a respeito da força policial — queira você se livrar da polícia ou simplesmente fazer com que ela seja menos violenta — aqui vai uma demanda imediata que podemos fazer: diminuir o número de policiais pela metade e cortar o financiamento também pela metade. Menos policiais é igual a menos oportunidades para que eles brutalizem e matem pessoas. A ideia está ganhando força em Minneapolis, Dallas, Los Angeles e outras cidades.

A história é instrutiva, não porque oferece um diagrama para como agir no presente mas porque nos ajuda a fazer melhores perguntas a respeito do futuro.

O Comitê de Lexow conduziu a primeira grande investigação a respeito dos desvios de conduta por parte de policiais em Nova Iorque, em 1894. Naquele tempo, a maior parte das reclamações eram de “surras” — “o hábito de espancar cidadãos com cassetetes ou porretes”, como a historiadora Merilynn Johnson escreveu.

A Comissão de Wickersham, convocada a estudar o sistema de justiça criminal e examinar o problema da legislação proibicionista, ofereceu uma acusação contundente em 1931, inclusive com provas de táticas brutais de efetuar interrogatórios, colocando a culpa na falta de profissionalismo dentro da força policial.

Depois dos levantes urbanos de 1967, a Comissão de Kerner constatou que “ações da polícia foram os incidentes finais antes do estopim da violência em 12 dos 24 registros de desordem pesquisados”. O relatório elaborou uma lista de recomendações, agora bastante conhecida, entre as quais se pode mencionar o esforço para construir um “auxílio comunitário a favor da aplicação da lei” e a revisão das operações policiais “no gueto, para garantir condutas corretas por parte de policiais”.

Essas recomendações não puseram fim à violência, elas somente serviram à uma espécie de estratégia de contra insurgência toda vez que a violência policial resultou em protestos. As demandas por reformas similares reapareceram como resposta ao espancamento brutal de Rodney King em 1991 e à rebelião que se seguiu, e depois após os assassinatos de Michael Brown e Eric Garner. O relatório final da administração Obama, President’s Task Force o 21st Century Policing (algo como uma força tarefa), resultou em ajustes procedimentais como treinamentos a respeito de tendências implícitas de abordagem, sessões de auditorias comunitárias com a polícia, pequenas alterações nas formas de uso da força e sistemas de identificação de policiais potencialmente problemáticos desde o início.

Mas mesmo um membro dessa força tarefa, Tracey Meares, observou, em 2017, que “o policiamento como nós conhecemos deve ser abolido, não transformado”.

A filosofia que reforça essas reformas é a de que mais regras significarão menos violência. Mas policiais quebram regras o tempo inteiro. Observe só o que aconteceu nas últimas semanas — policiais furando pneus, empurrando idosos, prendendo e machucando jornalistas e militantes. Esses policiais não estão preocupados com as repercussões, assim como não estava Daniel Pantaleo, o ex-policial de Nova Iorque que fez uma chave-de-braço que levou à morte de Eric Garner — ele acenou à câmera que filmava o incidente. Ele sabia que o sindicato da polícia iria apoiar sua atitude e ele estava certo: permaneceu em seu cargo por mais cinco anos depois disso.

Minneapolis havia institucionalizado muitas desssas “boas práticas”, mas falhou ao não remover Derek Chauvin da força policial, apesar das 17 reclamações de más condutas ao longo de quase duas décadas, o que culminou no mundo inteiro assistindo enquanto ele ajoelhou sobre o pescoço de George Floyd por quase nove minutos.

Por qual motivo pensaríamos que essas mesmas reformas iriam funcionar agora? Nós precisamos mudar nossas demandas. A forma mais certeira de reduzir a violência policial é reduzindo o poder da polícia, cortando orçamentos e reduzindo o número de policiais.

Mas não me entenda mal. Nós não estamos abandonando nossas comunidades à violência. Nós não queremos que os departamentos simplesmente fechem. Nós queremos que esses departamentos se tornem obsoletos.

Nós deveríamos redirecionar os bilhões, que agora vão para os departamentos de polícia, à promoção de cuidados com a saúde, moradia, educação e bons empregos. Se fizéssemos isso, não haveria necessidade de polícia, para começo de conversa.

Nós podemos construir outras formas de resposta aos danos na nossa sociedade. Um grupo de “trabalhadores pelo cuidado da comunidade” bem treinado poderia fazer checagens a respeito da saúde mental caso alguém precisasse de ajuda. As cidades poderiam adotar modelos de justiça restaurativa ao invés de jogar pessoas nas prisões.

E o estupro? A abordagem atual não acabou com ele. Na verdade, a maioria dos estupradores nem sequer vê o interior de um tribunal. Dois terços das pessoas que sofreram violência sexual nunca disseram a ninguém. Quem chega a fazer denúncias muitas vezes acaba por receber respostas insatisfatórias. Além do mais, os próprios policiais cometem abusos sexuais de forma assustadoramente frequente. Um estudo de 2010 concluiu que abusos sexuais eram o segundo tipo mais reportado de más condutas praticadas pela polícia. Em 2015, o Buffalo News constatou que, a cada cinco dias, um policial era apanhado praticando abusos sexuais.

Quando pessoas, especialmente pessoas brancas, consideram um mundo sem a polícia, elas preveem uma sociedade tão violenta quanto a nossa atual, meramente sem a aplicação da lei — e então elas sentem medo. Como sociedade, nós fomos tão doutrinados a partir da ideia de solucionar problemas através do policiamento e do encarceramento, que muitas pessoas não conseguem imaginar nada que não seja polícia e prisão como respostas possíveis para a violência e os danos.

Pessoas como eu, que querem abolir as prisões e a polícia, entretanto, têm uma visão diferente de sociedade, baseada em cooperação ao invés de individualismo, em ajuda mútua ao invés de preservação pessoal. Como seria esse país se tivéssemos bilhões de dólares sobrando para gastar em moradia, alimento e educação para todos? Essa mudança na sociedade não aconteceria imediatamente, mas os protestos demonstram que muitos indivíduos estão prontos para acolher uma visão diferente de segurança e justiça.

Quando as ruas se acalmarem e as pessoas sugerirem novamente que empreguemos mais policiais negros ou criemos grupos de civis para revisão de práticas, eu espero que nós nos lembremos que todos esses esforços falharam.

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