Raphael Fernandes Vieira
4 min readAug 31, 2021

Mais uma sepultura no cemitério de impérios? — parte II

Este é o segundo de uma pequena série de textos sobre a história de intervenções estrangeiras no Afeganistão nos últimos 180 anos e sobre os acontecimentos mais recentes. Para ler o texto anterior, clique aqui.

A retirada das forças da coalizão e o colapso institucional

Ao longo dos anos, por mais de uma vez, especialistas e funcionários civis e militares dos Estados Unidos e de países aliados alertaram para um retorno do Talibã como força beligerante capaz de desestabilizar o Afeganistão. Nos últimos tempos, tais alertas aumentaram e passaram a apontar uma possibilidade real de retomada do poder pelo grupo. Alguns cenários favoreciam esse panorama, como:

  • a falta de identificação de boa parte da população afegã com o governo instituído;
  • a ausência do Estado em algumas regiões do país;
  • a constante colaboração paquistanesa com os talibãs e a deterioração da presença da coalizão.

Considerando esses pontos e a insatisfação da sociedade estadunidense com a duração da guerra e os altos custos humanos e financeiros, o governo Trump entrou em negociações com o Talibã e, em fevereiro de 2020 no Catar, firmou um acordo que estabelecia a retirada das forças da coalizão até maio de 2021, em troca do compromisso do grupo afegão em não desestabilizar o país e em respeitar os direitos básicos da população. Além disso, ambas as partes concordaram em empreender esforços para combater a presença do Estado Islâmico no Afeganistão.

Joe Biden alega que não havia saída a não ser cumprir o acordado, mas isso é questionado por Christopher Miller, que foi, interinamente, o último Secretário de Defesa do governo anterior. Segundo Miller, Biden teve tempo e oportunidades para renegociar as condições do acordo para além do adiamento da retirada das tropas de maio para 11 de setembro. Poderia, até mesmo, retirar os EUA do acordo e manter a presença militar no país asiático, pois a última ofensiva talibã foi um claro desrespeito ao que havia sido estabelecido pelas negociações de paz em Doha — já era uma ameaça evidente à existência do governo afegão e à estabilidade do país.

Só que é preciso lembrar que Biden defende a retirada das forças estadunidenses há mais de dez anos e faz parte de uma geração que viveu e foi duramente influenciada pelos acontecimentos e consequências da Guerra do Vietnã, apesar de não ter servido no conflito. Para ele, bring our troops home é um compromisso com muito sentido e vai além de uma questão eleitoreira.

Assim, renegociar o acordo não seria algo simples ou fácil, dada a vantagem estratégica e o momentum do Talibã. Retirar-se do acordo seria ainda mais complicado, pois significaria, em maior ou menor grau, não só manter, como enviar mais tropas ao Afeganistão para dar suporte às forças armadas locais, prolongando o estado de guerra e seus custos por tempo indeterminado — o que não quer dizer que a saída da coalizão foi feita da melhor maneira possível, ao contrário.

Na tabela a seguir, é possível observar o progresso das conquistas talibãs de distritos. Em 2017 o grupo tinha um controle territorial relativamente reduzido, mas já aparecia como uma ameaça real. No ano seguinte, as zonas estáveis diminuíram e boa parte do país se encontrava em disputa. Esse status quo seria mantido com um pequeno e gradual crescimento do controle do Talibã, até 13 de abril de 2021, data da retirada da expressiva maioria das tropas da coalização. A partir desse marco, os insurgentes intensificaram sua ofensiva e passaram a capturar cada vez mais distritos, culminando na tomada de Cabul em 15 de agosto.

FDD’s Long War Journal: https://www.longwarjournal.org/mapping-taliban-control-in-afghanistan

A Resistência de Panjshir, oficialmente Frente de Resistência Nacional do Afeganistão, é um grupo formado por:

  • antigos membros da Aliança do Norte;
  • integrantes das forças armadas e de segurança afegãs;
  • e civis voluntários.

São liderados por Ahmad Massoud — filho de Ahmad Shah Massoud, líder mujahideen que combateu tanto os soviéticos como os talibãs — e Amrullah Saleh, até então vice-presidente afegão e autoproclamado presidente interino desde a fuga de Ashraf Ghani.

Ghani deixou o Afeganistão ainda no domingo, 15 de agosto, horas após que o Talibã começou a ocupar pontos estratégicos de Cabul. Argumentou que o fez para evitar um banho de sangue. O país se viu acéfalo e com sua capital completamente entregue às forças talibãs. A princípio não se sabia exatamente para onde o agora ex-presidente havia ido, apesar de boatos que diziam que haveria buscado asilo no vizinho Uzbequistão. Dias depois, apareceu nos Emirados Árabes Unidos.

Outros rumores, reverberados pelo porta-voz da embaixada russa em Cabul, falavam que Ghani teria deixado o palácio presidencial em uma comitiva de quatro carros carregados com dinheiro, que não coube completamente no helicóptero que o transportou para o exterior e, por isso, parte foi deixada no asfalto. Também se falou que cerca de 200 pessoas, entre familiares, políticos e funcionários governamentais teriam deixado o país junto ao ex-presidente. Ghani e pessoas próximas negam que ele tenha fugido com algo além das roupas que vestia.

Raphael Fernandes Vieira

Analista internacional. Atleticano. Pincharrata. Livros, cinema, música, cozinha, corrida e bicicleta.