Diário de leitura com spoiler #2 Interferências, de Connie Willis

Raphael Pellegrini
5 min readOct 2, 2018

--

Logo depois que escrevi o texto de ontem, milhares de outras referências surgiram. O efeito Bauman enredou em um monte de outras narrativas, num rizoma de vozes quase polifônicas. Em minutos, passei de Bauman a Boaventura, com uma parada em Becker e Pierre Levy. Ou seja, Interferências está mexendo com muitos pensamentos, que adormeceram há quase três anos.

A narrativa de Connie vai indo muito bem. Pela porcentagem do Kindle me aproximo de 85% da história e posso dizer que a narrativa tem trazido sensações muito próximas daquelas que senti quando lia Deuses Americanos, de Gaiman. É quase como se dois, dos infinitos planos, se destacassem: um mais imediato, o da narrativa romântica/aventura; outro mais implícito, porém não escondido ou inalcançável. Nesse último, fui levado a pensar no papel das comunidades, na fronteira entre individual e coletivo, na constituição da identidade como algo singular e subjetivo, nas interferências e nas múltiplas possibilidades de ser. Além disso tudo, talvez o que ainda esteja martelando na cabeça seja o que toca no assunto redes sociais (seja bem-vindo texto de ontem).

Briddey e C.B. chegaram num ponto sem volta na história, e nesse momento tudo que diz respeito a se conectar com outra pessoal virtualmente acendeu em meus pensamentos como um grande pisca pisca. Primeiro surgiu a discussão sobre a falsa ideia de que se você estiver mais tempo conectado, mais tempo nos aplicativos (e consequentemente se você interagir mais, se permitir mais viver online) você será capaz de romper a barreira do isolamento e constituir relações semelhantes aquelas vividas no corpo a corpo.

Fiquei pensando que isso se parece muito com o discurso sobre material didático e caminho único de produzir (auto)conhecimento. “O problema é que o material em questão não é bom. Se você utilizar tal ferramenta, de tal forma, com tal metodologia, todos os estudantes terão melhor rendimento.” Sim, porque apreendemos o mundo por caminhos semelhantes, com estratégias similares, como pequenas peças automatizadas que respondem a três leis simples.

Naqueles tempos de mestrado, uma das premissas que mais me agarrei foi a de que apreendemos o mundo por acontecimentos, e…bem… Um acontecimento é aquilo que surge sem aviso prévio, sem indícios, simplesmente acontece, um acidente. Não consegui sentir e viver nada diferente disso quando o assunto é me pensar enquanto aprendo e desaprendo. Simplesmente surgem conexões imprevisíveis, atalhos, caminhos que muitas vezes se desfazem logo em seguida, mas que levam o pensamento para outros territórios e, com isso, crio percursos de conhecer. E essa é a falha/esperteza de todos os projetos didáticos: quem os faz, sabe de sua ineficiência, mas usa a crença na tecnologia para vender sempre novas soluções, girando uma roda que se retroalimenta de sua premissa inicial.

As redes sociais tem me levado a pensar da mesma forma: existem algumas premissas básicas que estipulam as regras do jogo. Ao explorá-las, podemos criar um looping de feedback eterno simplesmente jogando o jogo que criamos. Essa não é um daqueles papos de sair da matrix ou coisas do tipo, é simplesmente uma forma de ver algo que existe e que estou mergulhado diariamente. E se faz parte da minha vida, é bom conhecer como funciona, assim como faço com os aparelhos eletrônicos e a composição dos alimentos.

Volto a bater na tecla de ontem, até porque estou ao lado de C.B. em tudo que ele pontuou até esse momento da leitura: redes sociais, pelo menos para mim, nesse momento, não permitem a constituição de laços e relações da forma que fazíamos antes delas, e com isso produzem uma possibilidade de solidão instantânea, que aterroriza. Hoje converso com alguém, amanhã descubro que aquela voz não existe mais; depois de amanhã me conecto a uma terceira voz, que também não recebe mais sinal da primeira… E assim vamos pulando de um a outro sem que de fato possamos criar vínculos e história juntos. Tudo se desfaz muito brevemente, como Bauman fala lá naquele vídeo de ontem. Sem traumas, sem dificuldade, “sem dor”.

Outro ponto que Interferências fez retomar foi a respeito dos códigos sociais de cada grupo, suas máscaras, seus requisitos e o perigo da transferência de ações de um lado ao outro. Jogamos o tempo todo com os meios que percorremos, somos muitos durante o dia, e isso não me parece um problema. Somos muitos, simplesmente para que possamos constituir relações mais justas, humanas. Fazemos concessões em nossa singularidade, em nossas opiniões, mentimos, e tudo isso com o intuito de produzir menos dano a nós e, em alguma situações, a outras pessoas.

E Connie toca exatamente no risco de tais códigos de conduta, quando publicizados, produzirem verdadeiras prisões. Tente ser o mesmo livro aberto em todos os grupos que percorre durante um dia. Tente não fazer concessões e veja como tudo será mais violento e difícil. Ser plástico é uma necessidade da vida coletiva. E por isso guardamos nossa individualidade, nossos pensamentos, conosco, em um lugar bem protegido e inacessível, porque é sempre necessário mentir. Se tais barreiras individuais forem rompidas, numa tentativa de maximizar a comunicação entre os sujeitos, o cenário será desastroso, e é nesse local que a narrativa de Willis é brilhante.

Também pensei muito em como tem se tornado forte em minhas redes a ideia de autenticidade como imutabilidade de posturas e condutas, num movimento de endurecimento de possibilidades de ser, independentemente do grupo social que você interage. Você precisa expressar as mesmas opiniões em todos os espaços que percorre (e pode ter certeza que sempre existirá um celular disposto a ser usado como catalizador de um desvio em sua conduta), e isso tem me produzido uma tensão tão grande, que preferi, nos últimos dois anos, não percorrer espaços sociais. A impossibilidade da máscara, da mentira, da adequação às normas de grupos específicos produz um cerceamento na possibilidade de ser e de simplesmente fazer parte. E esse é um dos problemas que sinto quando abro o Facebook. Qualquer concessão é vista como ausência de autenticidade e, como tal, condenável a perda da legitimidade. E assim sinto cada vez mais forte o requisito de um endurecimento único de posturas e opiniões e o esvaziamento de possibilidades de ser.

Sejam bem-vindos, clubismo e caminhos únicos.

--

--