Mídia social, plataforma digital, site de rede social ou rede social? Não é tudo a mesma coisa?

Raquel Recuero
7 min readJul 9, 2019

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Resposta curta: Não, não é. Na verdade, esses conceitos representam coisas bem diferentes. No senso comum, atualmente, as pessoas falam em "rede social" como um sinônimo de Facebook, Twitter, WhatsApp ou qualquer uma dessas ferramentas, ou seja, algo novo, que surgiu depois das plataformas que permitem a interconexão e a comunicação entre pessoas e instituições. Mas é isso mesmo? Recentemente entrei numa discussão a respeito com outros pesquisadores e comecei a traçar algumas reflexões que são diferentes de coisas que eu já disse por aí em outras ocasiões. O que eu vou apresentar aqui é mais uma discussão inacabada, decorrente da necessidade que eu mesma tenho sentido de "atualizar" um pouco coisas que já escrevi há tempos (inclusive o meu livro de Redes Sociais na Internet).

Rede Social não nasceu com a internet

Na realidade, a noção de rede social, como já falei em alguns dos meus livros, refere-se historicamente à abordagem estrutural de estudo dos grupos sociais. O conceito, que tem suas raízes na Sociologia há quase um século, principalmente através do trabalho do Jakob Moreno, ainda na década de 30, que sistematicamente coletou e analisou as interações sociais de alunos de escolhas, é uma das principais bases do que ele chamava de Sociometria. Na base, rede social significava a visão de um grupo social através de suas relações, considerando o grafo (estrutura de rede) como construto para tal.

Um dos grafos originais do Moreno, do livro "Who shall survive" (1934).

Outros autores, depois de Moreno, também se apropriaram do conceito para seus estudos e setaram outras bases para o que depois veio a se tornar a Análise de Redes Sociais. Nessa história, há personagens importantíssimos, que vão trazer contribuições diferentes. Alguns autores, como Talcott Parsons, trouxeram contribuições sem necessariamente filiar-se à perspectiva . Outros, como o Harrison White, são grandes influenciadores no desenvolvimento desses estudos na década de 60, com significativas contribuições para a compreensão da sociedade como rede e das noções de agência, controle e identidade nessas redes. E outros, como o Barry Wellman são grandes teóricos desenvolvedores da perspectiva, lançando novos conceitos (como o networked individualism, onde ele discute a ideia de "individualismo em rede", uma mudança entre as conexões locais dos grupos para as conexões por interesse dos indivíduos no ciberespaço — que pra mim é quase profética do nosso tempo; e glocalization, onde ele discute as características ao mesmo tempo locais e globais das novas comunidades).

Mas foi apenas na década de 90 que aconteceu uma mudança radical: Com o surgimento da mídia digital e a transformação das interações sociais em dados, novas formas de estudar esses grupos sociais, principalmente de forma mais massiva (a análise de redes sociais era feita com trabalho de coleta de dados mais "formiguinha" até então). Essa nova abordagem, muito mais interdisciplinar, vai ser inaugurada por autores como Barabási e Christakis, entre outros, e notadamente, vai também originar outras novas "subáreas" de estudo em áreas que tradicionalmente não estudavam dados sociais (como a Ciência Social Computacional, por exemplo).

Assim, quando falamos em “rede social”, precisamos dar crédito a toda uma longa história e tradição de estudos que tem décadas de trabalho. E nesta perspectiva, a rede são as pessoas e instituições materiais e o foco é nas relações entre esses diferentes atores.

Quando transformamos essa discussão para as redes sociais online ou as redes sociais na internet, o que temos é uma mudança importante entre uma estrutura mediada principalmente pelas relações institucionais e interpessoais e uma estrutura mediada pelas relações mediadas pela tecnologia digital. Eu costumo dizer que, nessa mudança, essas redes ganham “superpoderes”, tais como:

  • A possibilidade de conexão mais “individual” e por interesse, não limitada pela localização geográfica, como o Wellman já tinha apontado;
  • A posssibilidade de conexões massivas, em grande escala (uma vez que essas conexões podem ser mantidas pelas ferramentas sem a necessidade de interação social), assim permitindo que as pessoas tenham centenas ou milhares de “amigos” — o fenômeno dos “influenciadores”, por exemplo;
  • A possibilidade de participação em conversações globais e de acesso a conteúdos que não necessariamente estariam disponíveis devido à complexificação das conexões sociais;
  • A possibilidade de ser alguém diferente, ter mais de um “perfil”, brincar com a própria identidade (o que também possibilita que coisas que não poderiam ser atores em redes sociais offline, como um perfil robô, por exemplo, agora possam ser).

Esses "superpoderes" vão ser importantes para algumas coisas que eu vou falar a seguir.

Site de Rede Social

A noção de site de rede social (SRS) foi cunhada pela danah Boyd e pela Nicole Ellison em 2006, num artigo conhecido onde explicitavam aquilo que era um fenômeno na época: ferramentas como Faceboo, Orkut e Friendster. Os sites de rede social, assim, eram aqueles que permitiam 1) a construção de um perfil público ou semi-público do ator; 2) a possibilidade de "tradução" de sua rede social, ou seja, da exibição de sua rede anexa ao perfil e 3) a possibilidade de que outras pessoas pudessem "andar" pela rede social alheia, vendo conhecidos em comum. Ou seja, o site de rede social é aquela ferramenta que permite que as pessoas apresentem suas redes sociais e mostrem essas estruturas. Essas ferramentas, portanto, não são as redes sociais em si, mas servem para mostrar, transformar e publicizar essas redes.

Sites de rede social

Eu gosto muito desse conceito. Porém, com o advento dos aplicativos e das ferramentas móveis, onde novas características foram adicionadas a esses "sites" originais, há uma mudança importante. Não estamos mais falando apenas de sites (com estrutura Web, construídos e mantidos na Web), mas de elementos mais complexos, que possuem características típicas das ferramentas móveis (como a questão do imediatismo, ubiquidade e etc.). Assim, como já me chamaram a atenção o André Pase e o Marcelo Träsel recentemente, o conceito não dá mais conta da complexidade das características das interações nesses espaços. Claro, alguém pode decidir estudar apenas a parte Web dessas ferramentas. Mas de modo geral, podemos pensar que as apropriações delas já estão bem diferentes e mais complexas, o que também impacta nas redes sociais que elas mostram. Esse conceito também dá conta de ferramentas como Facebook e Instagram, porém não de outras que são nascidas no espaço mobile, como o WhatsApp, onde as redes não são públicas.

Plataforma Digital

Alguns autores têm usado o conceito de "plataforma digital". O Carlos D'Andrea, por exemplo, explica neste artigo que "para os estudos sobre plataformas digitais e, em especial, para as controvérsias que nelas se desenrolam, essa visada aponta para a importância de se compreender a formação do social situada, entre outros aspectos, nas materialidades dos softwares (e das infraestruturas) e a partir das regulações político-econômicas do Twitter, Facebook etc.". A plataforma digital, assim, é um conceito mais abrangente que compreende os sites de rede social de modo mais amplo, a partir também de suas APIs e das ferramentas que são usadas a partir deles. O D'Andrea, inclusive, utiliza a noção de "plataformização da web", no sentido de apontar as mudanças sofridas por uma comunicação mediada por computador que era inicialmente focada na estrutura da Web, mas que hoje vai bem além dela e a transforma a partir dessas relações. Essa abordagem, que encontra eco a partir dos trabalhos da Anne Helmond e do Talerton Gillespie trazem como fundamento o estudo dessas plataformas como constituídas de dimensões várias, como dimensão computacional, política, de sentido e mesmo de estrutura (ou arquitetura) da própria plataforma. (Veja mais sobre essa discussão do D'Andrea aqui.)

Esse conceito funciona bastante, pois pode abarcar todo o tipo de plataforma de interação ou comunicação digital. Apesar disso, tem um inegável foco na questão da estrutura da ferramenta usada pelas redes sociais, mais do que nas redes em si, ou ainda, das affordances dessa estrutura. Por conta dessa equalização entre "objetos" e "atores" na análise, podendo compreendendo os dois como elementos igualmente importantes na composição da estrutura, é um conceito muito usado por quem trabalha com TAR (Teoria Ator-Rede — que é bem diferente de Análise de Redes, temos um artigo pontuando essas diferenças).

Mídia Social

O conceito de mídia social é um pouco diferente dos anteriores. Ele não foca na estrutura que permite a comunicação (sites de rede social), nem nas affordances em si, nem na rede que emerge dessa estrutura em si, mas na emergência da combinação desses elementos. Para mim, o que chamamos "mídia social" é um dos (talvez o principal) efeito da apropriação das ferramentas de comunicação digital, onde a estrutura das redes sociais e as affordances dessas plataformas permitem que emerjam tipos conversações nas quais há modos de circulação de informação que são diferentes daqueles offline. Ou seja, a mídia social é algo emergente, não uma coisa prevista ou combinada nesses espaços. E ela acontece a partir das ações coletivas e individuais dos atores nessas ferramentas, que vai dar visibilidade a determinados temas, silenciar outros temas, fazer circular determinadas ideias em pequenos grupos e outras em grandes. A mídia social compreende, assim, essas conversações decorrentes da apropriação dessas plataformas pelas redes sociais, que modificam os modos de circulação de informações. Acho que podemos dizer que há uma "apropriação" da noção de mídia nesse espaço, decorrente dos "superpoderes" das ferramentas, que proporcionam ao coletivo das redes a possibilidade de fazer circular, informar (ou desinformar) outras redes.

Tenho pensado bastante sobre essas questões. Mas ainda é uma discussão inicial. :-)

Update: Modificado dia 10/07 para corrigir link quebrado e incluir link para discussão do D'Andrea sobre plataformas.

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Raquel Recuero

Professor and researcher. Director of MIDIARS. Social media. Computer mediated Conversation. Political discourse. Gender discourse.