A literatura nas músicas de Diomedes Chinaski

Raul Maciel
13 min readJul 31, 2018

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Com o foco de quem sabe ter nascido para vencer e que agora pode dizer hoje me sinto Rivaldo: saiu do meu bairro e foi melhor do mundo, João Vittor de Souza Passos tomou emprestado o nome de Diomedes, o detetive dos quadrinhos de Lourenço Mutarelli, e o sobrenome do Henry Chinaski, alter ego de Charles Bukowski, para se lançar com tudo como Diomedes Chinaski.

Suas letras vão de referências à mitologia grega, como em Ouroboros, ao trap de Call Comunication (com A Orquestra Imaginária e Raffa Moreira) e, com a repercussão de Sulicídio, é difícil falar de Diomedes e de Baco Exu do Blues sem mencionar essa música. Quase dois anos após o seu lançamento, os dois rappers já mostraram — se alguém ainda tinha dúvida — que Sulicídio abriu espaço para eles e para outros rappers do Nordeste (a vida mostrou que existe um só caminho: Nordeste no topo do topo do topo, fazendo dinheiro e viajando o Brasil), mas que foi apenas um capítulo da trajetória deles.

A sua ligação com os livros aparece em Cinza (2014), música em que fala da relação com o seu pai e do quanto deposita no rap. Em diversas músicas, Diomedes fala sobre os amigos que perdeu ou sobre a falta de perspectiva dos jovens das periferias — como em Está Consumado (Lembra do Gandhi que existia em mim, hein? / Bem que tentei, ficar assim zen, nem / Mas quando olhei que não enxerguei ninguém / Amigos presos são mais de cem), na Intro de Comunista Rico (Desde sempre eu nunca soube para onde ir, bro / Acho que vou ter que seguir por aqui, bro / Eu sinto essa loucura em minhas costas / Acupuntura não cura essa bosta / E acredite: por mais que eu tente esquecer / Eu sei que nunca vou ter os meus amigos de volta) e em Expurgo (Em 2009 e eu fazendo isso / Ainda tenho pela frente uma carreira imensa / E se tu acha que eu não acho que isso é compromisso / Vou provar que sou maior do vocês pensam! / Sou maior que Facebook, Instagram e Tumblr! / As tretas de internet estão gerando hype? / Nessas ruas meus amigos morrem de verdade / E o poeta cantador é válvula de escape / Sem tempo pra conversar água, trajetória amarga / Finalmente pra agonia estou vendo saída / Só sei que daqui pra frente aguento a carga / Mais que música, essa porra é história de vida!)— e no seu segundo verso de Cinza, ele atribui sua sobrevivência ao fato de ter encontrado os livros.

Passo o dia só, eu sou muito só
Até na universidade eu me sinto só
Fique feliz pai, te dei alguns alivios
Eu ja desandei, mas também encontrei os livros
Eu sobrevivi, muitos amigos não estão vivos

O início de Mago Lírico, que integra O Aprendiz (2015), trata das influências que Diomedes teve da sua família e pelo que lia e ouvia desde a infância:

Música e literatura é magia
Então quando eu escrevo e gravo
Eu manipulo essa energia
Mago lírico, sacerdote lírico

E, em seguida, com o trecho Dois caminhos diante de mim / Alvorada ou pólvora / Musa, música ou fim / Na lua cheia de ilusão caminhava vazio / Oxente, Recife é quente, mas sigo tão frio, Diomedes reafirma, como em Cinza, a transformação da sua vida por meio da arte, mas fala também da solidão e da tristeza que o marcaram em seus anos de início de carreira — motivos que o fizeram adotar o nome de Diomedes, já que o detetive dos quadrinhos também era marcado por uma depressão e por um sentimento de fracasso.

Em Câncer, faixa de Comunista Rico (2018), a sensação de ir no Centro comprar livros baratos representa um pouco de como ele acredita que a vida deveria ser, ao contrário do mundo e dos problemas que Diomedes, Neto (Síntese) e Nego Max descrevem nos versos anteriores.

Devia ser rosa bonita, brisa matutina
Girassóis no verde vivo, casa na colina
Frutas frescas, água cristalina
Minha mente é como um drone, tô aqui mas vejo a China
Devia ser tudo azul, como os olhos daquela fã
Mais feliz e colorido do que o Rico Dalasam
Devia ser a sensação de tirar os sapatos
Sensação de ir no Centro comprar livros baratos

Na mixtape Ouroboros (2016), podemos ouvir logo na primeira faixa, Ópera de Giordano, sobre as críticas ao seu trabalho, a afirmação de Diomedes sobre as suas influências, quando diz ser a mistura de Bukowski e Rimbaud.

Me criticar traz likes, likes não é nada
Quando olho pra você, lembro uma privada
Sou a mistura de Bukowski e Rimbaud
Tudo preto que nem as linhas de Allan Poe
Viver a vida dos outros é um tremendo erro
Hoje descobri que o líder mora num espelho

O trecho tudo preto que nem as linhas de Allan Poe faz referência ao gênero do autor Edgar Allan Poe, com obras de mistério e horror e com temas ligados à morte. Em 2013, Chinaski anunciou que lançaria o EP O Livro das Sombras, provável referência a Edgar Allan Poe, que teria Geração Sombria como uma de suas faixas — o EP acabou não saindo e Geração Sombria integra Réquiem.

Rimbaud aparece novamente na participação de Diomedes na música Acender (2018), de Smoky L., em que diz que queria não tê-la feito chorar / suas lágrimas me deixam deprimido, mas, ao mesmo tempo, ela pergunta quando irei mudar / digo que agora e até eu duvido.

Seus olhos negros têm
Um sincero brilho, têm
Que talvez só verei nos olhos do meu filho, amém
Lendo Arthur Rimbaud
e fumando erva, chego além
visitei o inferno e lá não havia ninguém

Na música Dexunego (2016), Diomedes cita dois poetas pernambucanos, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, muito acima dos invejosos dos quais ele fala e que também lhe serviram de referência — mesmo separados por algumas décadas, algumas obras dos dois poetas e de Diomedes Chinaski têm em comum o retrato da vida do nordestino, como nesse trecho de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto: Somos muitos Severinos / iguais em tudo na vida: / na mesma cabeça grande / que a custo é que se equilibra, / no mesmo ventre crescido / sobre as mesmas pernas finas, / e iguais também porque o sangue / que usamos tem pouca tinta. / E se somos Severinos / iguais em tudo na vida, / morremos de morte igual, / mesma morte severina: / que é a morte de que se morre / de velhice antes dos trinta, / de emboscada antes dos vinte, / de fome um pouco por dia / (de fraqueza e de doença / é que a morte severina / ataca em qualquer idade, / e até gente não nascida.

E essa música cita também Rimbaud: Nunca fui o Rambo, sou Arthur Rimbaud, bro. Após a repercussão de Sulicídio, as respostas que mais se destacaram foram SulTaVivo!, do Costa Gold, e Disscarrego, do Nocivo Shomon, em que ele diz que caixão pra caralho / é pouco pra língua cumprida, em resposta ao verso de Diomedes em Sulicídio: Vou matar todos a sangue frio / E eu tenho caixão pra caralho / Minha lírica, cítrica, implica e complica e aplica / Esses caras no funeral / Exceto o merda do Nocivo Shomon / O resto nem é nada pessoal. Assim como em uma entrevista para o Rap Box, quando diz nunca fui o Rambo, Diomedes — além de fazer um jogo de palavras com Rambo e Rimbaud — quer dizer que matará os outros rappers com as suas palavras, com as suas rimas, ou seja, com a sua poesia, sou Arthur Rimbaud, bro, e critica o Nocivo por querer interpretar literalmente o trecho vou matar todos a sangue frio, pois até mesmo o Nocivo sabia se tratar de uma metáfora — muito utilizada em diversos raps e nas ligas de MCs (vim dos free que é mate ou morra, como diz o Emicida).

Maximizei o plano
Depois minimizei o dano
Nunca nos quiseram no jogo
Agora eles dizem “Nordeste eu te amo”
Agora os produtores ligam
E pagam o que eu tô cobrando
Agora meu sotaque é lindo
As meninas sorrindo e o nego lucrando
Invejosos, sempre invejosos
Criticam por qualquer motivo
Vocês precisam de tratamento
Seu olho gordo é compulsivo
Querem competir com Manuel Bandeira
Ou com João Cabral de Melo Neto
Nunca fui o Rambo, sou Arthur Rimbaud, bro
Fodi com o rap game, cresce um belo feto
Cês não sabem nada da gente
Pra nós não importa o kit Supreme
Isso é Pernambuco
Cyclone é o crime, Supreme é o creme

Arthur Rimbaud (1854–1891), francês, conhecido por ser um "poeta rebelde", escreveu a sua obra toda em um curto espaço de tempo e logo em seguida abandonou a literatura. Rompeu com a estética da época e transformou a poesia com os seus poemas em prosa. Entre as suas obras, o livro Iluminuras, que serviu de nome para a sua música Iluminuras, ep. 110 do RapBox, e Uma temporada no inferno, da qual segue um trecho:

Tornei-me uma ópera fantasiosa: vi que todos os seres têm a fatalidade da aventura: a ação não é vida, mas um modo de gastar alguma força, um desnervamento. A moral é a fraqueza do cérebro. (trecho de Uma Temporada no Inferno)

Passando de Rimbaud para Bukowski, Chinaski abre Expurgo (2016) — a CypherBox 1, com Nissin, Baco Exu do Blues e Rapadura — com:

De um lado um público jovem, maldita massa despolitizada
Às vezes uns tão radicais, mas base teórica nada
Nunca invejei ninguém, na verdade ataquei a estrutura
Uma grande manobra arriscada como Bukowski em literatura

Verso em que provavelmente busca comparar Sulicídio às obras de Bukowski no sentido de as críticas de ambos podem não ter assumido a forma mais "adequada" — ou socialmente aceita —, sendo uma grande manobra arriscada, mas que, de alguma maneira, eles conseguiram transmitir suas mensagens, atingindo o público e os seus objetivos. E em Alright Freestyle (Kendrick Lamar Remix) (2017), Diomedes coloca Sulicídio e Bukowski no mesmo verso

A minha lírica é algo que seus olhos não têm visto
Ela vem de países que você não tem visto
Quase perdi o hype de Sulícidio
Na época minha mente pensou em suicídio
Livros de Bukowski, vários amores loucos
Drogas, armas, armas, drogas, raposa, porco

Charles Bukowski (1920–1994), autor estadunidense (nascido na Alemanha), publicou diversos livros de poesia e de prosa, abordando sempre temas com o alcoolismo e sexo, com personagens marginais e sem pudores — assim como Diomedes nas músicas Diabinha (com Djonga) e Ménage (com Coruja BC1).

Desliguei o telefone. Pensei em Sara. Ela e eu não éramos casados. Eu estava no meu direito. Eu era escritor. Eu era um velho sórdido. As relações humanas nunca funcionavam mesmo. Só as primeiras duas semanas tinham alguns tchans; a partir daí, os parceiros perdiam o interesse. Caíam as máscaras e as verdadeiras pessoas começavam a aflorar: maníacas, imbecis, dementes, vingativas, sádicas, assassinas. A sociedade moderna tinha criado seres à sua imagem e semelhança e eles se festejavam mutuamente num duelo com a morte, dentro de uma cloaca. Eu já tinha notado que a duração máxima de uma história entre duas pessoas era de dois ano e meio. (trecho do livro Mulheres)

Na música Tipo Maçom (2017), Perfil #1 da Pineapple StormTV, em que Diomedes afirma que Lampião leu sobre Napoleão e Chinaski leu sobre Lampião, ele manda em seguida que é Glorioso tipo 2Pac / Engenhoso tipo Da Vinci / Estrategista tipo Sun Tzu. Uma nova referência a Sun Tzu, mas dessa vez ao seu livro A Arte da Guerra, ocorre na música O Dobro (2017), também pela Pineapple, com Ducon e Bob do Contra, música cujo tom é de que pra me ganhar tem que correr o dobro.

Nem quero mais ser Chinaski, nem João Vitor
Mas a criatividade vem do conflito
Clareza nas ideias e eu não complico
Que morra Don Chinaski e que nasça Don Rico
Pródigos e cínicos, códigos e símbolos
Ancestralmente ricos, criminalmente místicos
Sou Aquiles com escudos no calcanhar
E essa aqui é eterna como a arte de guerrear

Voltando a Diomedes: em Quando as Sombras Brilharem (2018), som de Makalister — em que as suas rimas são ao estilo o reflexo vira matéria (Valsam os demônios em círculos no terraço de um corpo em ruínas / Anjos vigiam através de frestas, pontos cegos / As nuances cênicas e a dor de séculos / É preciso varrer do íntimo as chances de suicídio) — Diomedes fala sobre a mudança das pessoas diante do sucesso e da grana entrando, o que importa são as contas pagas. E, nessa mudança, tu eras Franz Kafka / num passe de mágica tu é Brad Pitt. A comparação de Kafka, um dos escritores que inspiraram Diomedes Chinaski, a Brad Pitt certamente não diz respeito apenas à beleza, à aparência, mas ao fato de a vida de Kafka ter sido marcada por relacionamentos complicados com as mulheres — os quais eram complicados pelo próprio Kafka — e por três noivados, dois com a mesma mulher, Felice Bauer, que não resultaram em casamento nem em filhos.

Suítes, bitches, drinks, cliques
Será que você vai lembrar das vacas magras?
Seus rappers favoritos te farão propostas
Sugavam teu estilo e te davam as costas
Agora teu email vai encher de beat
E se tu rimar feio vão chamar de hit
Era antipática
Tu era Franz Kafka
Num passe de mágica tu é Brad Pitt
Ela vem sorrindo: “Teu sotaque é lindo!”
Eu já tô partindo
Tenha calma, bebê
Eu quero essa merda desse mundo exploda
Eu sou de Pernambuco, dessa lama toda
Um demônio maluco nessa merda toda
E agora você ama essa fama boba

Entrando no EP Ressentimentos II (2017), em Quem Mora Lá?, um trecho do poema Janela de Ônibus, do poeta pernambucano Miró da Muribeca completa o peso da letra de Diomedes que, nessa primeira faixa, já mostrou que não seria só um dos melhores álbuns de 2017, o ano lírico, mas certamente um dos melhores da década.

Uma casinha branca lá no alto da montanha
E eu me perguntando: quem mora lá?
Quem mora lá?
Um homem na BR olhando pro nada
Uma mulher com um saco de capim na cabeça
E o sol estralando nas suas costas
E os políticos dando as costas

Em Cocada de Sal, a Teoria, Chinaski diz que os cabras nunca leram nada, boy, nem Dom Casmurro, falando sobre a realidade de quem nasce na periferia, sobre como nós matamos os rapazes, cafetinamos as meninas e sobre essa roda gigante de frustrações que não permite muita perspectiva — que, como a meritocracia, não existe.

Porque o dialogo é só tiro, choque, saco e murro
Os cabras nunca leram nada, boy, nem Dom Casmurro
Então antes de questionar porque que assaltam vocês
Lembra que mal sabem falar o idioma português

Fechando o EP, Memórias Póstumas de um Liricista, que tem em seu primeiro verso referência a Trismegisto — como em Hino ao Sol, faixa de Ouroboros, e em Comunista Rico — fala da língua portuguesa, conhecida como última flor do Lácio, em função de um poema de Olavo Bilac, e como língua de Camões, que é aqui posta diante de um ninfomaníaco literário.

Escrevam na lápide: aqui jaz um liricista
Sílabas como cordas, eu sou mais que equilibrista
Invento estilo, dito moda, Chinaskito estilista
Vou tranquilo, sigo foda, Trismegisto, especialista
Ninfomaníaco-literário, fodo com a Flor de Lácio
Tantos palavrões, fodo Camões fácil

Por fim, a música Comunista Rico — comunista rico: porque riqueza de verdade é compartilhar — , da mixtape homônima, de 2018, cujo clipe conta com a participação de Lourenço Mutarelli, além de Rodrigo Ogi, Coruja BC1 e Don L.

Após o primeiro verso que segue um pouco a linha de outras músicas suas (Não tem rap game, quero money game / Concorrência treme, mas só quero o cofre / É insano ver, não tem plano B / Porra, o plano B deve ser a morte), Diomedes usa o refrão para apresentar de vez o seu mais novo trabalho e, de alguma maneira, explicar o seu título: Nenhuma lágrima mais, mãe / Nenhuma lágrima mais, mãe / Livros de Marx e cordão de ouro / Comunista rico. No segundo verso, em que ele fala sobre os livros de Bukowski na cabeceira da cama, Diomedes Chinaski parece parar e reconhecer tudo o que hoje tem ao seu redor. Campeão da Jornada de MCs de Pernambuco em 2009 e com quase dez anos de carreira, ele só começou a sobreviver de música de um ano pra cá. E se em Expurgo, ele busca ecoar direto do gueto, do gueto, do gueto, do gueto, do gueto, do gueto, riqueza pro gueto, riqueza pros pretos, uma vida melhor e mais justa, em Comunista Rico, Chinaski pode finalmente cantar: tenho o Nordeste por mim, hey, tenho esse céu todo azul.

Tenho uma família que, mesmo distante, a gente se ama
Dois diamantes negros
São os belos olhos da minha bela dama
Tenho os livros de Bukowski
Na cabeceira da cama
Tenho uns compassas na linha
Se caso precisem resolver uns dramas
Tenho o Nordeste por mim, hey
Tenho esse céu todo azul
Tenho amigos que respeitam
E me consideram aí na Zona Sul
Tenho um cérebro em funcionamento
Tenho o meu posicionamento
Quero um carro no estacionamento
Quando é que é o meu momento?
Tenho os meus pulmões
Tenho minhas visões
Tenho minhas canções
Tenho a vida toda
Crédito na casa
Crédito na rua
E vocês só têm boca frouxa
Tenho as flores lindas e o jardim é meu
Minha corda um alquimista me deu
Consagrada a Hermes Trismegisto
E o único assunto de vocês sou eu

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