Por onde começar a ler Kafka? Um pequeno guia de leitura

Raul Maciel
23 min readJul 3, 2023

3 de julho: ao aniversário de 140 anos do nascimento de Franz Kafka.

Elaborei aqui um caminho que eu, hoje, vejo fazer sentido para percorrer a obra de Kafka. Após um breve comentário sobre as traduções de Kafka para o Brasil, escrevi cinco partes que pensei como cinco passos pra conhecer os seus textos. Este caminho é uma recomendação com base em tudo que eu li da obra dele, sobre a obra dele e sobre ele. Embora pretensioso, este não é um guia de interpretação ou do tipo que tenta pegar o leitor ou a leitora pela mão para lhe dizer "como ler", como fazem muitas vezes com alguns escritores e escritoras e com algumas obras — com O Processo, por exemplo, isso acontece bastante.

Antes, algumas observações: (i) a ordem de recomendação das obras não é cronológica e nem faria sentido ser; (ii) as obras dele geralmente têm a data em que foram escritas, a data em que foram publicadas (muitas foram publicadas postumamente) e a data das traduções e edições que chegaram ao Brasil — todas quase sempre devidamente apontadas nas listas deste guia; (iii) pra cada livro, busquei apontar as edições recomendadas também; e aqui acho importante mencionar que na maior parte das minhas leituras e, consequentemente, das minhas recomendações, acabei priorizando os livros com a tradução do Modesto Carone — o que eu explico na Introdução; (iv) sobre os contos e outros textos curtos, busquei priorizar as coleções e edições mais próximas aos originais (o que explico na Parte 2); (v) ao mesmo tempo, sabendo do alcance e da qualidade de outras coletâneas que não seguem as edições originais do próprio Kafka, comentei também sobre elas e tabelei os textos presentes em cada edição pra ajudar escolher a quais livros recorrer; (vi) na maior parte das vezes, não apontei resumo nem sinopse dos textos (isso pode ser encontrado, geralmente, nos sites das próprias editoras), considerando ser mais importante explicar a ordem deste guia do que dar um resumo de cada livro — o que pode ser encontrado em vários outros lugares e deixaria este texto ainda mais longo; (vii) não sou acadêmico nem pesquisador, sou só mais um leitor.

Cada frase diz "interprete-me"; e nenhuma frase tolera interpretação. (Adorno, em Anotações sobre Kafka)

Capítulos:

  • Breve nota sobre as traduções
  • Parte 1 — as principais obras (A Metamorfose; O Processo; O Castelo)
  • Parte 2 — as coletâneas de textos curtos e a sua carta mais conhecida (Um Artista da Fome; Contemplação; Um Médico Rural; Carta ao pai)
  • Parte 3 — outras coletâneas, outros contos e o seu primeiro romance (Essencial Franz Kafka; Narrativas do espólio; Blumfeld, um solteirão de mais idade e outras história; O Desaparecido ou Amerika)
  • Parte 4 — estudar Kafka? (Lição de Kafka; Kafka: pró & contra — os autos do processo; O mundo prodigioso que tenho na cabeça: Franz Kafka: um ensaio biográfico; Kafka; Diários: 1909–1923: Franz Kafka; Conversas com Kafka)
  • Parte 5 — as outras cartas e o que eu ainda pretendo ler (vários títulos)

Breve nota sobre as traduções

As obras de Kafka começaram a ganhar diversas traduções no Brasil a partir da década de 1960, mas quase todas feitas a partir de edições em inglês, em francês e espanhol. E as principais traduções e feitas a partir dos originais, em alemão, ocorrem apenas a partir dos anos 1980, principalmente pelas mãos de Modesto Carone — para a Brasiliense, primeiro, e, depois, para a Companhia das Letras. Carone, falecido em 2019, é considerado o maior e principal tradutor da obra de Kafka para o Brasil e também um dos maiores críticos. Como exemplo da sua importância, a sua tradução de O Processo para a Brasiliense ganhou o Prêmio Jabuti de Tradução de Obra Literária em 1989, o que é algo muito recente, principalmente se considerarmos a data de publicação dos originais e que, por algumas décadas, o acesso ao livro no país foi feito a partir de traduções indiretas. Ainda recentemente, por exemplo, se popularizou um "Box Franz Kafka: 1883–1924" com A Metamorfose, O Processo e O Castelo, cujas traduções não foram feitas a partir do original. Se as obras de Kafka têm linguagem e tom protocolares, burocráticos e secos, é necessário que o esforço da tradução seja pra trazer essas características o mais fielmente possível para o português e as traduções do Carone são reconhecidas como as mais tiveram êxito nesse exercício. Como ele escreve em A mais célebre novela de Kafka (o seu posfácio para a edição d'A Metamorfose da Companhia das Letras):

O presente trabalho procura acompanhar de perto a fidelidade possível não só à letra do texto, mas também à sintaxe pessoal do autor. Esta se caracteriza por sentenças longas moduladas por enunciados breves, capazes de cobrir um parágrafo inteiro, com uma carga abundante de subordinações, inversões ou expletivos, que na realidade têm a função de assinalar, no recorte tortuoso e preciso da frase, não só a trama em que se perde o personagem, como também sua necessidade de “naturalizar”, pela lucidez, o absurdo da situação descrita.

E também em Histórias de um mestre no fim da vida (o seu posfácio para a edição de Um artista da fome da Companhia das Letras):

[…] a frase em português tenta acompanhar de perto tanto a precisão vocabular como a curva estilística do autor, marcada pela batida protocolar e repetitiva que constrói o seu labirinto. Evidentemente isso implica pôr de lado qualquer veleidade de amaciar o texto com o propósito comercial de torná-lo digestivo e edulcorado. Pois é sabido que a forma-conteúdo desse escritor tem a flama e o senso de aventura de uma linguagem original e inovadora que, justamente por não dar bandeira, é visceralmente de vanguarda.

Assim, acabei dando preferência às suas traduções quando li os livros de Kafka, da mesma forma que dou essa preferência na hora de recomendá-las. Nessa entrevista, Modesto comenta sobre a tradução feita por Borges, ainda em 1938, para o espanhol, e diz que "é uma tradução lindíssima, mas é muito mais Borges do que Kafka", enquanto, por outro lado, há o reconhecimento de que com as traduções de Carone estamos lendo de fato Kafka.

Ao mesmo tempo, evidentemente, tomo este reconhecimento como marca de sua qualidade e não como dogma ou algo do tipo, sendo sempre necessário reconhecer também a qualidade das edições com traduções de Marcelo Backes, Petê Rissatti, Susana Kampff Lages, Marcus Tulius Franco Morais, Sergio Tellaroli e outras pessoas.

Parte 1 — as principais obras

Considero que a entrada pelas obras de Kafka pelas suas três obras mais conhecidas, A Metamorfose, O Processo e O Castelo, seja a mais adequada não só por serem as mais conhecidas ou por serem as melhores (esse aspecto por vezes tão subjetivo), mas mais precisamente porque esses três livros nos entregam o que depois o mundo viria a entender como kafkiano e podemos ver neles o absurdo, uma das características mais importantes da sua obra, e também acompanhar o percurso dos personagens diante dele. E é na relação dos personagens principais com os outros personagens e muitas vezes no seu isolamento e na sua solidão que vemos outra característica fundamental: o não-pertencimento. Entendo também que essa ordem faça sentido mais pela densidade do que pela complexidade das histórias. Pessoalmente, acho pesado começar por O Processo, por exemplo, mas obviamente isso depende de cada pessoa e da sua bagagem.

  • A Metamorfose (escrito em 1912, publicado em 1915) é o livro mais lido de Kafka e, com menos de cem páginas, pode ser lido em um dia. É também, junto com O Processo, o livro mais estudado do autor, e conta a história de "Quando Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso" — já nos entregando logo no primeiro parágrafo, ainda na primeira frase, que o personagem principal havia sofrido uma metamorfose e, a partir deste ponto, acompanhamos como ele e os demais personagens, principalmente a sua família, lidam com a situação. Edições: recomendo a edição da Companhia das Letras, com tradução e posfácio (A mais célebre novela de Kafka) do Modesto Carone. Outras duas boas edições são: a da L&PM, com tradução, Prefácio e Comentário final do Marcelo Backes, e que também traz a novela O Veredicto; e a da Antofágica, que conta com tradução do Petê Rissatti, ilustrações do Lourenço Mutarelli e bons posfácios de Petê Rissatti, Flávio Ricardo Vassoler e Ana Kiffer.
  • O Processo (escrito entre 1914 e 1915 e publicado postumamente, por Max Brod, em 1925) conta a história que faz com que tantas vezes as pessoas se digam em situações kafkianas. O livro é sobre a história de Josef K., que é detido numa manhã "sem ter feito mal algum", e acompanhamos todo o percurso pra saber do que e por quem ele é acusado. É aqui que a burocracia aparece em sua forma mais kafkiana, em como se dá o esmagamento de K. e como o narrador nos apresenta a história. Edições: recomendo a edição da Companhia das Letras, com tradução e posfácio (Um dos maiores romances do século) do Modesto Carone. Essa edição inclui ainda os capítulos incompletos e as passagens riscadas por Kafka e o posfácio tem informações fundamentais sobre a edição feita por Max Brod e também comentários sobre as primeiras linhas de interpretação d'O Processo. Também li a edição da L&PM, tradução e Prefácio de Marcelo Backes. E a edição da Antofágica, com tradução do Petê Rissatti, ilustrações do Lourenço Mutarelli, apresentação de Noemi Jaffe e textos de apoio e análises complementares de Gabriel Alonso Guimarães (O destino do manuscrito), Adilson Moreira, Noemi Moritz Kon e Tomaz Amorim — e sobre essa edição, alguns comentários: assim como em A Metamorfose, é um baita trabalho gráfico da Antofágica e pode valer a pena se você priorizar esse aspecto e as ilustrações em vez da tradução do Modesto Carone, por exemplo; o livro também inclui os capítulos inacabados após os textos, mas houve uma opção por incorporar as passagens riscadas por Kafka ao texto — nos respectivos lugares em que foram riscadas nos manuscritos; os textos complementares caíram muito bem.
  • O Castelo (escrito em 1922 e publicado postumamente, por Max Brod, em 1926) conta a história de K., contratado inicialmente como agrimensor de uma aldeia ao pé de um castelo — ao qual ele tentará chegar. Aqui, vemos de forma ainda mais explícita alguns traços fundamentais da obra de Kafka, como a não-chegada e a inacessibilidade, com passagens "construídas de maneira tão tenebrosa que o leitor tem medo de nunca mais acordar do pesadelo" e, como em O Processo, "não é o monstruoso que choca, mas sua naturalidade", como escreve Adorno em seu Anotações sobre Kafka. Em O Castelo, muitas coisas logo se apresentam inacessíveis a K.: pessoas, locais, documentos, informações, processos. Edições: novamente, recomendo a edição da Companhia das Letras, com tradução e posfácio (O Fausto do século 20) do Modesto Carone.

Parte 2 — as coletâneas de textos curtos e a sua carta mais conhecida

Entrando nas segundas principais obras de Kafka, recomendo a leitura de três coletâneas de textos curtos (contos, fábulas, parábolas): Contemplação, Um médico rural e Um artista da fome. Pode parecer estranho, mas, muitas vezes, já ter passado pelas quase 300 páginas d’O Processo, por exemplo, pode ajudar a entender a escrita de Kafka em alguns contos seus de uma ou mesmo meia página. As três coletâneas que coloco aqui seguem as edições publicadas conforme a organização planejada pelo próprio Kafka, o que é seguido por algumas edições, mas por outras não — o que não necessariamente implica um prejuízo e falo sobre algumas edições que adotam organizações diferentes na Parte 3.

  • Um artista da fome (escrito entre 1922 e 1924 e publicado em 1924) é uma coletânea de quatro contos: Primeira dor (1922), Uma mulher pequena (1923), Um artista da fome (1922) e Josefina, a cantora, ou O Povo dos camundongos (1924). Os textos foram revisados de forma extremamente cuidadosa quando Kafka já estava em seu leito de morte e a coletânea faz parte das suas poucas obras publicadas em vida, tendo um volume de geralmente 60 a 70 páginas. Muitas coletâneas de textos de Kafka apresentam alguns contos de Um artista da fome, mas a minha recomendação pela leitura da coletânea conforme publicada originalmente se dá pelo valor dos quatro textos em conjunto, pela forma como Kafka trabalha os narradores das histórias e também temas como infelicidade e a relação dos personagens com a própria arte. Edições: recomendo a edição da Companhia das Letras, com tradução e posfácio de Modesto Carone, e que também traz a novela A Construção, que Kafka pretendia transformar no encerramento da coletânea, o que não foi possível, pois, além de ter dificuldades para terminar o texto, os originais não estavam com Kafka enquanto ele revisava Um artista da fome no sanatório em que passou os últimos dias.
  • Contemplação (textos escritos entre 1903 e 1912 e publicado em 1912) é o primeiro livro publicado por Kafka, uma coletânea de dezoito contos: Crianças na rua principal, Desmascaramento de um trapaceiro, O passeio repentino, Decisões, Excursão às montanhas, A infelicidade do celibatário, O comerciante, Olhar distraído para fora, O caminho para casa, Os que passam por nós correndo, O passageiro, Roupas, A recusa, Para a meditação de grão-cavaleiros, A janela da rua, Desejo de se tornar índio, As árvores e Ser infeliz. O volume todo tem cerca de 40 páginas, sendo que onze dos dezoito textos têm uma página cada e alguns têm apenas um parágrafo. Com uma linguagem que Carone define como algo que nos dá a impressão de estarmos diante de um pré-Kafka, os textos de Contemplação não apenas são sobre cenas do cotidiano, mas são cenas do cotidiano, descritas de forma breve e que nos apresentam as contemplações, inquietações e dúvidas de quem a observa ou as vive. Para Marcus Tulius Franco Morais, em seu posfácio para a edição da Bandeirola, Kafka “brinca com estruturas, meios estilísticos e sujeitos que reaparecerão sob formas variadas em sua obra tardia”. Edições: recomendo duas edições: a da Companhia das Letras, com tradução e posfácio de Modesto Carone, e que traz também o texto O foguista; e a recente e belíssima edição da Bandeirola, com prefácio de Braulio Tavares e tradução e posfácio de Marcus Tulius Franco Morais, uma edição bilíngue com todos os textos originais, em alemão, que faz parte da coleção Clássicos Vintage da editora e que conta ainda com a reprodução de vários desenhos de Kafka — muitos ainda desconhecidos mesmo por quem já leu boa parte da sua obra. Sobre essa edição, eu escrevi esse texto aqui: A contemplação mais bonita.
  • Um médico rural: pequenas narrativas (dois textos escritos em dezembro de 1914 e doze textos escritos entre novembro de 1916 e abril de 1917, publicado em 1920) é uma coletânea de quatorze pequenas narrativas: O novo advogado, Um médico rural, Na galeria, Uma folha antiga, Diante da lei, Chacais e árabes, Uma visita à mina, A próxima aldeia, Uma mensagem imperial, A preocupação do pai de família, Onze filhos, Um fratricídio, Um sonho e Um relatório para uma Academia. Com 60–70 páginas, a coletânea teve sucessivas alterações feitas por Kafka antes de sua publicação, com alterações de títulos, acréscimos de alguns textos e supressões de outros, e costura narrativas que envolvem animais e inversão de fábulas com outros textos crus e realistas, sendo presentes temas comuns a outros textos seus, como família e inacessibilidade. Edições: recomendo a edição da Companhia das Letras, com tradução e posfácio de Modesto Carone.
  • Carta ao pai (escrita em novembro de 1919 e publicada em 1950 por Max Brod) é a carta que Kafka escreveu para o seu pai, Hermann Kafka, mas que nunca foi entregue. Em seu posfácio Uma carta notável, Carone escreve que, embora Kafka tenha escrito sobre a relação com o seu pai durante a vida inteira, a carta parte do “estremecimento das relações entre pai e filho em torno da tentativa (logo abandonada) de casamento de Kafka com Julie Wohryzek, filha de Eduard Wohryzek, zelador de sinagoga num subúrbio de Praga. O escritor tinha conhecido Julie naquele mesmo ano em Schelesen, e o repúdio da moça por parte de Hermann Kafka (que a desqualificou como noiva por sua condição social, inferior à dos Kafka) provocou uma discussão movimentada com o filho”. A carta, que tem diversos trechos muito conhecidos, como a frase “Da sua poltrona você regia o mundo” e o primeiro parágrafo, reproduzido logo abaixo, que é reproduzido frequentemente. Walter Benjamin, em seu texto A propósito do décimo aniversário de sua morte, diz: “O pai é a figura que pune. A culpa o atrai como atrai os funcionários da Justiça. Há muitos indícios de que o mundo dos funcionários e o mundo dos pais são idênticos em Kafka” — e entendo que a importância da leitura desta Carta está em poder perceber a importância da relação de Kafka com o seu pai sobre os seus textos, mas também (e talvez principalmente) para reconhecer os seus limites. Edições: recomendo a edição da Companhia das Letras, com tradução e posfácio de Modesto Carone e a da L&PM, com tradução e prefácio de Marcelo Backes. Abaixo, o primeiro parágrafo (na tradução do Carone):

Você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você. Como de costume, não soube responder, em parte justamente por causa do medo que tenho de você, em parte porque na motivação desse medo intervêm tantos pormenores, que mal poderia reuni-los numa fala. E se aqui tento responder por escrito, será sem dúvida de um modo muito incompleto, porque, também ao escrever, o medo e suas consequências me inibem diante de você e porque a magnitude do assunto ultrapassa de longe minha memória e meu entendimento.

Parte 3 — outras coletâneas, outros contos e o seu primeiro romance

Como dito na parte anterior, Um artista da fome, Contemplação e Um médico rural foram coletâneas planejadas e organizadas pelo próprio Kafka e publicadas ainda em vida. Além delas, nos Diários e em algumas cartas com amigos e com editores, encontramos que Kafka chegou a planejar, mas sem organizar de fato para que isso se realizasse, o que seria o livro Filhos (com O Foguista, O Veredicto e A Metamorfose) e que mais tarde, substituindo um dos textos, ele gostaria de publicar como Punições (com Na colônia penal, O Veredicto e A Metamorfose) — posteriormente, algumas editoras inclusive chegaram a organizar essas publicações em versões em alemão, em inglês e em espanhol, por exemplo.

Além das coleções editadas e publicadas conforme a organização original, agora, nesta parte, trato de edições com organizações diferentes das originais, feitas sob outros critérios (próprios de seus organizadores e tradutores da obra de Kafka) que também são uma boa forma de acessar a sua obra. Um excelente exemplo é o livro Essencial Franz Kafka, da Penguin Classics Companhia das Letras, que tem: cinco dos quatorze textos de Um médico rural; um texto de Um artista da fome; A Metamorfose e o Veredicto na íntegra, e; outros textos não presentes nas três coletâneas recomendadas na Parte 2 — e é um compilado muito bom da obra de Kafka, sendo muito apropriado o título de essencial. Além do Essencial Franz Kafka, menciono também Narrativas do espólio e Blumfeld, um solteirão de mais idade e outras histórias, e, em seguida, falo de O Desaparecido ou América.

E com o intuito de mapear e ajudar a escolher a que edições recorrer para ler os textos curtos de Kafka, fiz esta tabela aqui, que indica quais textos estão presentes em cada uma das edições.

  • Essencial Franz Kafka (2011, Penguin Classics Companhia das Letras, introdução, seleção, comentários e tradução de Modesto Carone): traz cinco dos quatorze textos de Um médico rural; um texto de Um artista da fome; A Metamorfose e O Veredicto na íntegra; outros cinco textos curtos; e os 109 aforismos de Kafka (não encontrados em muitas edições em português e aqui apresentados em cerca de vinte páginas). Além de uma reunião muito boa de textos do Kafka, de cerca de 300 páginas (das quais quase cem são d'A metamorfose), o ponto que destaco deste Essencial é que ele conta com uma apresentação, geralmente de uma a no máximo duas páginas, de cada um dos textos.
  • Narrativas do espólio (2002, Companhia das Letras, tradução, posfácio e notas de Modesto Carone): traz 31 escritos por Kafka entre 1914 e 1924, mas que não foram reunidos em outros volumes que ele chegou a publicar. Este espólio nos apresenta boa parte dos textos que Kafka pediu a Max Brod que fossem destruídos após a sua morte e a maior parte dos textos não está nos outros livros do Kafka publicados pela Companhia das Letras, como O mestre-escola da aldeia, Durante a construção da muralha da China, O silêncio das sereias e Investigações de um cão. O volume, de cerca de 200 páginas, traz várias obras não publicadas em vida e consideradas do período mais maduro da escrita de Kafka e conta também com o excelente posfácio Um espólio de alto valor.
  • Blumfeld, um solteirão de mais idade e outras histórias (2018, Civilização Brasileira, organização, tradução e posfácio de Marcelo Backes): traz nove dos dezoito textos de Contemplação; seis dos quatorze textos de Um médico rural; três dos quatro textos de Um artista da fome; outros dezenove textos, sendo que alguns deles dificilmente são encontrados em outras edições em português. São textos escritos entre 1903 e 1924, sendo que mais da metade deles se concentra no período entre 1915 e 1920, após, portanto, Kafka já ter escrito A Metamorfose e O Processo. O posfácio deste livro é muito bom e, entre os livros de Kafka publicados em edições para o Brasil, é um dos textos mais completos sobre o autor e sobre a sua obra, percorrendo inclusive todas as principais obras, não se tratando, portanto, apenas dos 37 textos apresentados no livro
  • O Desaparecido ou Amerika (escrito entre 1912 e 1914, teve publicado pelo escritor apenas o seu primeiro capítulo, O Foguista, em 1913, sendo o todo publicado postumamente, por Max Brod, em 1926) é o primeiro romance de Kafka, seu romance inacabado, na verdade — ou: fragmento de romance —, e foi chamado por ele de O Desaparecido, mas publicado por Max Brod como Amerika; por este motivo, acaba sendo publicado geralmente como O Desaparecido ou Amerika. O livro conta a história do alemão Karl Rossmann a partir da sua chegada a Nova York após ser expulso de casa pelos seus pais. Ele se vê, assim, como estrangeiro, mas não como turista, mas sim como imigrante, como exilado. Se no primeiro parágrafo, ele “avistou a estátua da deusa da liberdade, que há muito vinha observando, como que banhada por uma luz de sol que subitamente tivesse se tornado mais intensa”, boa parte do que se segue logo nos faz pensar sobre os limites da liberdade do próprio Karl. Edições: recomendo a edição da Editora 34, com tradução, notas e posfácio (Das (im)possibilidades de traduzir Kafka) de Susana Kampff Lages.

Parte 4 — estudar Kafka?

A partir deste ponto, a leitura se torna bem mais específica e mesmo mais especializada. Penso, como comparação, que uma pessoa pode já ter lido onze livros de uma escritora e não ter interesse em ler uma biografia dela, mas outra pessoa pode ter lido "só" três livros dessa mesma escritora e se interessar pela sua biografia — assim como há cantores e cantoras que eu ouço e gosto muito, mas sei quase nada da história e da vida pessoal. Da mesma forma, estudar sobre um escritor ou escritora ou sobre um livro é algo extremamente particular. Penso, como exemplo, em Dostoiévski, de quem li três livros, gostei, mas nunca fui atrás de ler uma biografia dele ou um livro sobre a sua influência ou sobre as interpretações de Crime e Castigo. De volta a Kafka: há, só em português, centenas de artigos e vários livros com análises, comentários e as mais variadas interpretações sobre O Processo e sobre A Metamorfose e o interesse em lê-los pode ser acadêmico (estudantes de Letras, por exemplo), pode ser por querer entender melhor e buscar um auxílio à interpretação ou por querer confirmar ou confrontar a própria interpretação da leitura, pode ser também por querer entender melhor as influências e motivações por trás dos textos, enfim, motivos mil. Considerando também isso, listei alguns textos que já li sobre Kafka e tentei colocar, de forma breve, o que encontrei deles e quais seriam boas motivações para decidir lê-los ou não.

  • Lição de Kafka (Modesto Carone, 2009, Companhia das Letras): é um dos melhores livros que já li sobre os textos de Kafka, sendo que alguns dos seus capítulos eu já reli várias vezes. Apresentado como "uma homenagem declarada de um tradutor ao seu escritor preferido", este livro tem alguns textos já publicados e outros inéditos. Carone trata de textos curtos de Kafka (Na galeria, A próxima aldeia, A construção, O Veredicto, O cavaleiro do balde e Pequena fábula), das obras principais (A Metamorfose, O Processo e O Castelo), e textos sobre a relação de Kafka e sua obra com a cidade de Praga, sobre o processo de tradução dos seus textos e sobre a recepção da sua obra no mundo e no Brasil.
  • Kafka: pró & contra — os autos do processo (Günther Anders, 2007, Cosac Naify, tradução, posfácio e notas de Modesto Carone): é um dos livros mais recomendados sobre Kafka, sendo sempre muito justamente classificado como um clássico. É um livro bastante denso em suas cerca de 170 páginas e a leitura só é recomendável, penso, para uma melhor compreensão, após já ter lido uma parte considerável dos textos de Kafka. As notas do Günther Anders e do Modesto são fundamentais para a leitura, ao mesmo tempo em que fizeram com que, muitas vezes, eu acabasse indo e voltando na leitura. Este livro tem passagens marcantes e muito reproduzidas, como a que diz que "A fisionomia do mundo kafkiano parece desloucada. Mas Kafka deslouca a aparência aparentemente normal do nosso mundo louco, para tornar visível sua loucura. Manipula, contudo, essa aparência louca como algo muito normal e, com isso, descreve até mesmo o fato louco de que o mundo louco seja considerado normal". Também são sempre reproduzidas a frase "O espantoso, em Kafka, é que o espantoso não espanta ninguém" e a passagem que, pelo seu peso e pela sua capacidade de síntese, é a minha favorita em tudo que já li sobre Kafka:

Como judeu, não pertencia de todo ao mundo cristão. Como judeu indiferente — pois a princípio o foi —, não se integrava inteiramente aos judeus. Por falar alemão, não afinava a fundo com os tchecos. Como judeu de língua alemã, não se incorporava por completo aos alemães da Boêmia. Como boêmio, não pertencia integralmente à Áustria. Como funcionário de uma companhia de seguros de trabalhadores, não se enquadrava por completo na burguesia. Como filho de burguês, não se adaptava de vez ao operariado. Mas também não pertencia ao escritório, pois sentia-se escritor. Escritor, porém, também não era, pois sacrificava suas forças pela família. Mas "vivo em minha família mais estranho que um estrangeiro" (carta a seu sogro).

  • O mundo prodigioso que tenho na cabeça: Franz Kafka: um ensaio biográfico (Louis Begley, 2010, Companhia das Letras, tradução de Laura Teixeira Motta): valendo-se dos textos publicados de Kafka e também de seus diários e de suas cartas, este livro trata de vários temas, como criação, família, judaísmo, amores, literatura, trabalho, sempre costurando os reflexos e as influências (e também seus limites) de cada um desses aspectos sobre a escrita de Kafka. É um livro muito bom, de leitura leve e que ajuda também a entender melhor as principais correntes de interpretação da obra de Kafka.
  • Kafka (Gérard-Georges Lemaire, 2006, L&PM, tradução de Julia da Rosa Simões): esta é a única biografia que já li sobre Kafka, embora já tenha lido muito em outros livros (em prefácios, posfácios ou capítulos dedicados a biografar, por exemplo). Muito longe de ser considerada a melhor ou a mais completa biografia sobre o escritor, é um livro razoável, que narra aspectos e acontecimentos que podem nos ajudar na interpretação. A parte que destaco é que nele encontramos informações sobre os processos de publicação (e as suas idas-e-vindas, geralmente provocadas pelo próprio Kafka) que não vi em muitos outros livros em português.
  • Diários: 1909–1923: Franz Kafka (Franz Kafka, 2021, Todavia, tradução de Sergio Tellaroli): os diários de Kafka foram publicados pela primeira vez em 1937, por Max Brod, sendo apenas de 1951 a sua publicação de forma mais completa. E em 2021, finalmente, passamos a ter acesso a todos os diários de Kafka em português, nesta edição da Todavia e com tradução do Sergio Tellaroli. Os Diários de Kafka foram escrito em doze cadernos, nos quais ele misturou a parte que de fato corresponderia aos diários com rascunhos e esboços literários e, no Sobre esta edição, o tradutor conta que "a organização em cadernos, adotada por quase todas as traduções dos Diários feitas a partir da versão do manuscrito, foi aqui preterida em razão de ela dificultar consideravelmente a leitura da obra, na medida em que embaralha datas e contextos". Os diários de Kafka, que certamente estão entre os diários mais conhecidos da história, nos permitem ver a relação dele com literatura, amor, sexo, religião, cultura, Praga, amigos, família etc. O índice remissivo da edição é muito útil pra quem quiser pesquisar e procurar passagens específicas. Esta edição é, muito provavelmente, um trabalho que ainda será muito valorizado e consagrado entre todos os títulos da obra kafkiana no Brasil.
  • Conversas com Kafka (Gustav Janouch, 2008, Novo Século, tradução de Celina Luz): quando tinha 17 anos, em 1920, o escritor Gustav Janouch conheceu Kafka e o teve como mentor e este livro traz a reprodução de algumas das suas conversas sobre os mais diversos temas, em um relato que traz de forma mais ou menos cronológica alguns diálogos e reflexões durante os poucos anos em que eles mantiveram contato.

Alguns outros textos, artigos e capítulos de livros mais conhecidos e fáceis de achar que também recomendo são:

  • A propósito do décimo aniversário de sua morte, de Walter Benjamin (encontrado também no livro Magia e Técnica, Arte e Política);
  • A quem pertence Kafka?, de Judith Butler
  • Anotações sobre Kafka, de Theodor Adorno (capítulo do livro Prismas: crítica cultural e sociedade);
  • Dossiê Franz Kafka, da Revista Cult 194;
  • Kafka e kafkianos, de Anatol Rosenfeld;
  • Kafka e o romance moderno, de Anatol Rosenfeld.

Entre vários outros.

Parte 5 — as outras cartas e o que eu ainda pretendo ler

Além dos Diários, outros documentos pessoais bastante conhecidos de Kafka são as cartas que ele trocava com pessoas próximas e apenas parte desses documentos está disponível de forma completa em traduções para o Brasil. Alguns livros são: Cartas a Felice (há uma edição da Anima, de 1985, da Anima); Cartas a Milena (há uma edição da Itatiaia, com tradução de Torrieri Guimarães a partir do francês); Carta aos meus amigos (há uma edição da Nova Época); Cartas a Ottla e Cartas a amigos, família e editores (não traduzidos para o português ainda); entre outros. Um livro que também permite acessar alguns documentos é o Sonhos, com prefácio de Luis Gusmán e tradução de Ricardo F. Henrique, publicado pela Iluminuras, que traz os relatos de sonhos de Kafka em seus diários ou em diversas cartas (a Max Brod, Felice Bauer, Grete Bloch, Felix Weltsch, Ottla Kafka e Milena Jesenská).

Nesta parte, listo também alguns livros sobre Kafka que eu ainda não li e que não apenas são livros que ainda quero ler, mas que também são livros provavelmente bons (com base no que eu já li de críticas e referências a cada um deles). Antes da lista, porém, preciso falar sobre as biografias feitas por Reiner Stach. O autor alemão biografou Kafka em uma trilogia: Kafka: Die frühen Jahre (2014); Kafka — Die Jahre der Entscheidungen (2002), e; Kafka — Die Jahre der Erkenntnis (2008) traduzidos em inglês, respectivamente, como: Kafka: The Early Years (2017); Kafka: The Decisive Years (2005), e; Kafka: The Years of Insight (2013). Assim, considerando a ordem cronológica, Stach começou a trilogia pelo seu segundo volume, sobre os anos decisivos, o que contou com mais de dez anos de pesquisas, totalizando mais de vinte anos de pesquisas para as três publicações que somam quase 2000 páginas. The Early Years cobre o período de 1883 a 1910, do nascimento de Kafka aos seus 27 anos; The Decisive Years cobre o período de 1910 a 1915, e; The Years of Insight cobre o período de 1916 a 1924, os últimos anos de Kafka. Desde os lançamentos dos originais e suas primeiras traduções, o trabalho de Stach tem sido elogiado e considerado a melhor biografia de Kafka até agora. Em português, a tradução também começou pelo segundo volume, com Kafka: Os anos decisivos, pela Todavia, com tradução de Sofia Mariutti, e lançado muito recentemente, em setembro de 2022. Assim, podemos esperar os outros dois volumes traduzidos para o Brasil nos próximos anos.

Alguns outros títulos:

  • De Kafka a Kafka (Maurice Blanchot);
  • Franz Kafka — sonhador insubmisso (Michael Löwy, Azougue);
  • Franz Kafka: um judaísmo na ponte do impossível (Enrique Mandelbaum, Perspectiva);
  • K. (Roberto Calasso, Companhia das Letras, tradução de Samuel Titan Jr.);
  • Kafka e a marca do corvo (Jeanette Rozsas, Melhoramentos);
  • Kafka: para uma literatura menor (Gilles Deleuze e Félix Guattari);
  • Kafka: vida e obra (Leandro Konder);
  • Memórias de um editor (Kurt Wolff, Âyiné, tradução de Flavio Quintale);
  • O Outro Processo: as cartas de Kafka a Felice (Elias Canetti);
  • O último amor de Kafka: o mistério de Dora Diamant (Kathi Diamant, Via Lettera, tradução de Eduardo Seincman)
  • O último processo de Kafka (Benjamin Balint, Arquipélago, tradução de Rodrigo Breunig);

E alguns ainda não traduzidos para o português do Brasil:

  • Kafka do dia a dia: documentação de todas as cartas, diários e eventos (Reiner Stach), o título original é Kafka von Tag zu Tag: Dokumentation aller Briefe, Tagebücher und Ereignisse e, pelo que eu pesquisei, não foi traduzido nem mesmo para o inglês ainda. Com mais de 600 páginas, este livro estabelece uma cronologia do dia. Este é um dos muitos materiais consultados por Sergio Tellaroli durante a sua tradução dos Diários: 1909–1923: Franz Kafka;
  • Kafka (Pietro Citati), biografia de cerca de 300 páginas escrita e publicada em italiano em 1987 e traduzida para o inglês em 1989. Há uma tradução, de 2001, para Portugal, mas não localizei ainda uma tradução para o Brasil;
  • Franz Kafka, a biografia escrita por Max Brod, Franz Kafka — Eine Biographie, e que também encontrei uma edição para Portugal, pela editora Ulisseia.

(E se cê chegou até aqui: muito obrigado por ler. Foi um prazer enorme revisitar, em cerca de quinze dias, tudo que eu li do Kafka e sobre o Kafka nesses quase quinze anos de contato com os seus textos. Foi um prazer escrever este texto.

Obrigado a você.
Obrigado, Max Brod.
E muito, muito obrigado, Kafka).

(texto escrito entre 03/10/2022 e 17/10/2022 e publicação agendada para 03/07/2023).

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