Diário de Bordo.

Thiago Raydan
5 min readJan 2, 2016

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Tenho percebido que o poder da escrita está nas palavras simples. Dos aprendizados que a mão escreve com leveza, mas com atenção (e intenção). Dos sentimentos transcritos, descritos, escritos — seja os cotidianos ou os que dão nó na cabeça. Por essas e outras, quero manter um logbook — vulgo Diário de Bordo.

A primeira vez que me deparei com o conceito de um Diário de Bordo foi há 4 anos atrás, pelos conselhos de um morador do bairro São Pedro (em Belo Horizonte), o seu José. Ele era ex-professor de geografia, um viajante apaixonado – conhecia Minas Gerais de cabo-à-rabo – , poliglota e vivia a beira de seus 40 e poucos anos. Ele morava nas ruas. O conheci em um sopão comunitário, de distribuição de roupas para quem precisa – evito ao máximo rotular alguém como “morador de rua”, a menos que você também trate o vizinho do prédio acima do José de “morador de prédio”: o que soa igualmente frívolo. Por horas nós ficamos conversando sobre a vida, o universo e tudo mais. E toda a conversa era guiada pelas histórias do caderninho de bolso dele.

Quando conheci o José, ele fez questão de me contar toda a história do seu diário de bordo e a filosofia por trás dele. Queria compartilhar um pouco da imensidão que ele ensinou.

Photo by Robert Pintilie.

Escrever é aprender sobre si mesmo.

Ou, nas palavras dele:

“Eu escrevo para nunca parar de aprender: sobre mim, sobre o que eu vejo e sobre o que fazer com tudo isso.”

O seu José era um senhor que deixou para trás a vida de professor — aquele que é o centro de atenção e referência para a multidão— para a vida de um cidadão invisível — aquele que você já aprendeu a colocar no ponto cego da vista, quando o encontra na rua. Mas para o seu José, todos nós somos muito visíveis. Visíveis até demais.

É difícil saber tudo o que ele enxergou e o que ele enxergava, na vida nas ruas. Nós ficamos horas conversando sobre a sala de aula, sobre a frieza das pessoas, sobre escolhas, relações, olhares e momentos de crise. Mas a escrita era a forma que ele encontrou para assimilar uma resolução leve para tudo isso.

Transcrever x Escrever

E a diferença disso para um diário de bordo.

É um senso comum dizer que escrita é o exercício de transcrever recortes da vida sob a sua perspectiva — é o tal do “colocar ideias no papel”.

Mas a escrita é maior do que isso. Para além do transcrever, a escrita é um exercício de aprendizado. E é isso que motiva pessoas, como o seu José, a começar — e manter por anos — um diário de bordo: a possibilidade de poder olhar para trás e conseguir ligar os pontos, resgatar altos e baixos e criar uma consciência ampla sobre por onde anda a sua vida.

Transcrever é copiar o momento. Escrever é criar, em cima do momento.

E é fácil entender a diferença disso quando acordamos para um simples fato:

A escrita precisa ter início, meio e fim. O que você transcreve, não.

Em resumo:

  • Transcrever é passar para o papel, de maneira bruta, tudo o que você enxerga, escuta e sente.
  • Escrever é tirar um tempo para meditar, assimilar e criar um desfecho — mesmo que temporário — para tudo isso.

Por isso, quando começo a escrever uma página de um diário de bordo eu divido o processo em dois:

  • A escrita livre: escrevo sem pensar muito em resolver o problema/a ideia que estou investigando. Só quero contextualizar tudo o que está se passando na cabeça. Registrar o momento. Isso é transcrever.
  • O desenvolvimento: durante a escrita livre, eu vou criando espaços entre linhas com um marcador escrito “DESENVOLVER”. O desenvolvimento é a fase que você precisa ir mais à fundo, olhar por outro lado, fazer uma pesquisa (para dentro e para fora), buscando achar uma resolução para tudo aquilo que você apresentou superficialmente. Não importa se você sabe ou não se aquela é a resolução que vai dar certo, o importante é escolher um caminho final e colocar em linhas, independente da resposta— se o caminho for “reconhecer que o problema não tem solução e deixar pra lá”, torne isso sua conclusão. A conclusão pode ser abstrata, pode ser insatisfatória, pode ser broxante, pode ser errada: o importante, por ora, é dar um fechamento para aquele pensamento. Se você perceber depois que deu errado: escreva uma nova página. Resolver o momento. Isso é escrever.

A tal da resolução.

O que você tem a ver com a filosofia do seu José.

Photo by Alicia Fabregas.

Escrever um Diário de Bordo pode ser um incrível caminho para aprender sobre si mesmo, sobre a vida e sobre o que fazer com isso tudo. Mas a maior beleza na filosofia do José é que o propósito dele sustentar um Diário de Bordo (por anos), precisava ser maior que escrever sobre si mesmo e sobre o que/como ele via a vida: ele precisava escrever o que ele faria com tudo aquilo.

E se você esforçar para se colocar nos sapatos do seu José, fica fácil entender o tanto que isso faz sentido: para ele e para você.

PS:

[logbook 01 ~ 02/01/16]

Por essas e outras, começo hoje esse logbook.

Um canal de apreciações, desabafos, aprendizados e devaneios sobre a vida, o universo e tudo mais. Sem pretensões estéticas.

É um exercício de atenção.
Um registro para a vida não passar e eu perceber que ela passou despercebida.

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Thiago Raydan

Escrevo sobre educação, autoconhecimento e desenvolvimento humano.