A Jornada do Herói no mundo pós-Covid-19

Rodrigo Bandeira
10 min readApr 23, 2020

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Histórias sobre os desejos que ganharam potência de ser com a presente crise

Entre mer et maquis — Jean-Michel Folon

A literatura, diferente dos textos técnicos, conecta e engaja pessoas na medida em que é capaz de mexer com as emoções. A parte do nosso cérebro que lida com as emoções é muitas vezes mais potente e rápida do que a parte que lida com o pensamento lógico. Sobre este tema, vale conhecer o livro ‘O Animal Social’ de David Brooks.

Assim, se o nosso objetivo é tornar ainda mais viáveis aqueles nossos desejos cujo tempo chegou, nada mais acertado que lançar mão de uma fórmula milenar para contar histórias emocionantes.

Pensando nisso, senti interesse pela estrutura narrativa que o antropólogo norte-americano Joseph Campbell chamou de A Jornada do Herói em seu livro ‘O Herói de Mil faces.’

A seguir, destaco alguns de seus elementos que poderão ser úteis aos que quiserem se aventurar a escrever as fábulas do vir a ser.

A NARRATIVA DA JORNADA DO HERÓI

De modo geral, a construção de uma história tem como elemento chave o argumento central, que é o que se deseja falar, a história a ser contada, onde se pretende chegar.

A história em si, ou a escrita narrativa literária, requer um enredo, que antecipa o que vem a seguir, criando sentido e expectativa no público e os ganchos são usados para ligar a história ao argumento central. A narrativa é a arte de ter atenção aos pequenos detalhes, surpreender e criar expectativa para que a história seja gostosa de ler.

Quanto aos personagens, suas características, traumas, sucessos e tentativas frustradas determinarão suas jornadas ao longo da história.

A Jornada do Herói ou monomito, estrutura narrativa proposta por Campbell, mistura o conceito junguiano de arquétipos, forças inconscientes da concepção freudiana e a estruturação dos ritos de passagem por Arnold van Gennep.

Resumidamente, a Jornada do Herói sugere um enredo em que uma série de acontecimentos se encadeiam levando o personagem principal (o herói) de uma situação conhecida até sua própria superação. Este vídeo do TED-ed e o verbete na Wikipédia são boas fontes para conhecer um pouco mais sobre o assunto.

Os elementos fundamentais para a construção de uma história com base na estrutura da Jornada do Herói, são:

Mundo comum: uma contextualização da situação (mundo) em que o personagem principal se encontra antes da história começar.

Desafio: personagem deve resolver uma situação problema que o chama para aventurar-se para além do conhecido.

Mentor: porque naturalmente sente medo, o personagem resiste em lançar-se O encontro com um sábio (ajuda sobrenatural), que o informa e treina para a aventura, permite que aceite lançar-se.

Fronteira: o personagem cruza o limite (primeiro portal), abandonando o mundo normal para entrar no desconhecido.

Provas: o personagem é então submetido a (i) uma série de testes, encontra aliados e enfrenta inimigos, de forma que aprende as regras do mundo desconhecido, (ii) vence o maior teste, mas, em seguida, (iii) é derrotado, enfrenta a morte e renasce.

Recompensa: após enfrentar a morte e perder o medo, o personagem recebe uma importante recompensa (o elixir).

Nova vida: após ter obtido reconhecimento por sua bravura, o personagem retorna ao mundo normal, usando o que aprendeu para vencer os desafios da volta, e supera-se, assumindo uma nova vida.

Elixir: ao regressar com o elixir, o personagem ajuda a todos no mundo comum, resolvendo as tramas da história.

UM EXERCÍCIO PESSOAL

Escolhi alguns dos temas que considero terem ganhado potência de ser a partir da presente crise para um exercício de aplicação da estrutura narrativa da Jornada do Herói para uma nova história a ser contada.

Em outro post, contei uma história que trata da redução das desigualdades e da brecha digital, das periferias e da privacidade, aborda também a solidariedade e a colaboração além do tema das mudanças no tecido das relações sociais.

Como prometido, para o seu exercício, caso sinta vontade, listarei a seguir alguns temas possíveis que me pareceram bastante férteis e carregados de potencial transformador positivo. Não há qualquer desenvolvimento, apenas anotações dos insights fornecidos por meus cultos e inteligentes amigos, que consultei durante a primeira quinzena deste mês de abril.

ALGUNS TEMAS

Desigualdade: Essa crise vai acentuar as distorções e desigualdades ou vamos conseguir criar um novo sistema, menos desigual? Com a transferência incondicional de renda aprovada pelo Congresso de R$ 600 por três meses, alguns poderão conseguir se segurar com um padrão de vida semelhante ao que tinham antes e evitamos um grande crescimento das desigualdades. A economista Mônica de Bolle estima que o pagamento de R$ 600 por um ano para os 77 milhões de pessoas hoje incluídas no Cadastro Único, custaria em torno de 7% do PIB. Passando esse momento de crise, esta renda que é emergencial poderia passar a ser permanente e, como um mecanismo de redução de desigualdades por meio de transferência de recursos de quem paga imposto para os mais pobres, um imposto de renda negativo, que permitiria a muitos o acesso a bens de consumo, pequenas reformas para melhoria da habitabilidade das residências (humidade, iluminação, ventilação), segurança alimentar etc. com enormes ganhos.

Os invisíveis: Como grande desafio, precisamos alcançar os invisíveis, os que sequer estão incluídos no cadastro único, um antigo desafio da assistência social. Para que as políticas de transferência de renda sejam efetivas, todos deveriam ter conta em banco. Além disso, com conta em banco e celular, os pobres deixariam de perder tempo em filas e ganhariam tempo para descansar, cuidar de casa e se divertirem. Seria a hora das moedas digitais?

Brecha digital: Está nas mãos dos governos investir para fechar a brecha digital na educação, no trabalho e em outras instâncias, prover acesso a um celular com acesso à internet por meio de políticas públicas com capacidade de reduzir as desigualdades de renda ao permitir maior acesso aos serviços públicos. Uma solução rápida para isso envolveria alguma forma de concessão a empresas prestadoras de serviço de provimento de internet e fabricantes de aparelhos celulares que precisariam criar modelos de negócios inclusivos e viáveis.

Periferias: A atenção às periferias, que nunca se teve, agora parece ter melhor chance. Pelos motivos errados, podemos melhorar o cadastramento, o monitoramento das políticas voltadas para essas comunidades. Haverá mais eficiência nos colchões e gatilhos da assistência social.

Governos: Os governos voltaram a ter importância. Para a economia voltar a crescer, o Estado tem sido considerado crucial até pelos adeptos do Estado mínimo mais recalcitrantes. Uma perspectiva econômica liberal keynesiana, em que o Estado tem papel central com incentivos para o crescimento econômico, será fundamental no momento pós crise do coronavírus. No pós-guerra, os EUA vitoriosos tiveram recursos para reconstruir a Europa. Dessa vez, de onde virão os recursos? Da China?

Política: E a velha política, como aquilo que é necessário para convencer pessoas, chegar a consensos e decidir por caminhos a serem trilhados coletivamente? Vamos voltar a nos interessar pela política?

Cápsula de (sobre)vivência pela convivência: Estilo de vida simples e enxuto será uma tônica? Com custo fixo baixo a gente consegue viver melhor e mais feliz? E os nossos recursos entesourados? Seria melhor que estivessem em circulação? E quem tiver ou conseguir para si a tal cápsula de sobrevivência, ou de (sobre)vivência pela convivência, estratégias ou módulos sociais de auto-suficiência/ self reliance, ou a tal casa no campo com água e comida para viver estará mais adaptado para a vida daqui para frente? Como devemos ver uma saída assim à luz do egoísmo?

O espaço privado da casa: Voltamos ao primitivo, à caverna. Estamos de volta à casa, e de volta à ‘casinha’ também. Voltamos a olhar para dentro. É tempo de autoconhecimento, o que é muito bom e bem-vindo. Mas, também, por outro lado, estar recluso em casa pode ser mau para a democracia na medida em que, no espaço da casa, só nos preocupamos com a sobrevivência, ficamos egoístas. Vale consultar ‘A Casa e a Rua’ do antropólogo Roberto Da Matta.

Home office: Os horários de trabalho e os benefícios estão sendo questionados e renegociados e, na esteira dessa mudança, há custos sociais que antes não estavam tão claros e que agora apareceram, tais como a distância da família e o tempo gasto nos trajetos (mobilidade urbana). Com o home office como novo espaço de trabalho, quanto custa ficar longe da família?

Escolas: Acompanhando os estudos dos filhos em casa, as famílias estão valorizando as escolas e os professores e começam a diferenciar mais claramente o papel da escola de socializar e o de ensinar. Se os pais passam menos horas trabalhando fora de casa, talvez os filhos não precisem passar tantas horas na escola. O ensino formal a distância (diferente do que estamos tendo agora que é um ensino remoto, segundo Priscila Cruz) será um aliado como um complemento ao presencial.

Homeschooling: Será que chegou a hora do home-schooling?

Higiene: Devemos lavar mais as mãos. Aprimorar nossos hábitos de higiene. Lavar tudo. “Nunca achei que ia dar banho em saco de batatinha.”

Presencial vs. online serviços e entretenimento: Vamos valorizar mais os encontros presenciais? A base será o online e o presencial, o complemento, mas mais valorizado e de qualidade? Com um cenário de até dois anos sem festas, jogos de futebol, shows etc. como será o entretenimento daqui para frente? Os eventos ao vivo estavam fazendo sentido. Juntar-se é muito humano. Não pode acabar. A crise da saúde transformará a vida das instituições de arte, que terão que aprender a conviver com uma queda drástica na receita com a venda de ingressos.

Arte: A arte terá/ voltará a ter um papel importante nas nossas vidas, no dia a dia? A arte será a nossa grande inspiração para superar esse momento?

Economia de baixo carbono: Uma economia de baixo carbono e alto valor agregado é possível? Chegou o momento de abraçarmos essa agenda?

Mudanças climáticas: As pessoas terão mais facilidade para entender as mudanças climáticas, quando 2–3 bilhões de pessoas estiverem sofrendo?

Tráfico de animais silvestres: Uma campanha contra o tráfico de animais silvestres para remédios e alimentos gourmet devem ganhar força e esse atividade pode diminuir? Haverá diretrizes como uma possível proibição a mercados vivos como o de Wuhan que representam um grande risco à segurança global. Na China são mortos milhões de animais (esp. aves) todos os anos para deter a contaminação por novos vírus.

Preservação das florestas tropicais: A preservação das florestas tropicais por abrigarem populações de patógenos que podem criar pandemias é uma agenda a ganhar centralidade? Devemos parar de desmatar? Parece-me uma boa história a ser contada. Com a parada na economia os céus ficaram mais limpos e seria melhor seguir assim. Entendendo que o vírus não veio para isso, mas podemos escolher esse caminho. Como disseram Brenda Brito, Natalie Unterstell e Ilona Szabó, estudos recentes mostram a relação entre o avanço do desmatamento e a transmissão de doenças infecciosas em diversos países pelo mundo.

Poluição: Vimos que as águas estão mais limpas. Vamos perceber que estávamos acabando com o planeta e mudar o curso?

Proteína animal: A produção de proteína animal é um problema que devemos evitar? O momento nos faz ver com mais contrastes essa necessidade? Pode ser um momento para se falar contra o tráfico de animais silvestres, que, ao que tudo indica, está ligado ao surgimento do vírus no mercado vivo em Wuhan. E os antibióticos e agrotóxicos usados sem controle? Seria a hora de controlar melhor isso?

Solidariedade: Tem havido maior solidariedade entre as pessoas, dentro das famílias? Isso permanecerá? Daremos mais valor a isso? Seremos mais solidários, empáticos e compassivos? Vai crescer e ocupar um espaço em que hoje só vemos egoísmo e ganância? Perceberemos que o individualismo não resolve? Que é preciso respeitar as normas coletivas para que todos sejamos mais felizes?

Colaboração: A Europa pode se fortalecer com a colaboração da comunidade. Estão sofrendo, mas terão que cooperar além das fronteiras. Estamos todos reunidos por uma agenda coletiva única por termos sido sincronizados a força e nos lançaremos em um processo em modo de super colaboração ou essa crise nos fará ainda mais fragmentados e egoístas? A governança global ficará mais forte? Rotas de escape e planos de contingência podem levar ao egoísmo?

Privacidade: Vamos estar mais expostos à invasão de privacidade (LGPD) ou saberemos como obter os dados de cada um de nós, sem que ninguém tenha sua privacidade invadida? Na China o Estado rastreia as pessoas. As câmeras enviam as informações já processadas. Solução de crimes subiu vertiginosamente. Aqui os governos não têm acesso aos dados e entregamos tudo para as big tech companies. China obriga que os dados gerados lá fiquem lá. Isso pode levar ao fim da internet como a conhecemos para dar lugar a internets regionais ou por país.

Consumo: Nossa relação de consumo pode mudar. Quando sairmos da quarentena voltaremos aos nossos hábitos de consumo anteriores?

Economia compartilhada: A economia compartilhada é a única das ’21 lições para o século 21’ do Yuval Harari que parece mais difícil de emplacar. Vai morrer antes de florescer completamente? Vai encontrar um caminho, mesmo com as restrições e os protocolos? Ou isso tudo vai passar e a economia compartilhada voltará à era de ouro dos últimos anos? Escritórios, espaços de trabalho não voltarão a ser o que eram.

Indústrias locais: O mundo depende das manufaturas. Nafta, EU etc. podem querer desenvolver indústrias locais. Quando a situação voltar à normalidade, as empresas reavaliarão sua dependência em relação aos chineses. Seriam essas as versões das cápsulas de sobrevivência dos países?

Trabalhador vs. capital: Será uma oportunidade para perceber que quem movimenta a economia é o trabalhador? Trará um questionamento do sistema no sentido de oferecer mais ao trabalhador? Isso inclui todos os que não são os ricos detentores dos meios de produção? Percebemos que os trabalhadores é que fazem a economia girar?

Marketing/ marcas: Vai ter um rearranjo de forças no sentido de cobrar responsabilidades? As marcas estão pensando como podem contribuir, indo para além da chamada responsabilidade social empresarial. O modo como as marcas vão agir vai determinar sua relação com os clientes?

Voos: Nos voos pagaremos mais para ter o assento do meio vazio? Quanto?

SUS: Estamos sentindo o que é a falta dos investimentos em saúde. E estamos percebendo a importância do SUS. Até então, algumas pessoas tinham plano de saúde e a ideia era nunca colocar os pés no SUS. Mas não bastam planos de saúde maravilhosos, que deem direito aos melhores hospitais de São Paulo: na hora que estiverem lotados, as pessoas vão depender do SUS, que sempre foi menosprezado. Vamos sentir a falta de um sistema de saúde bem organizado. (Dráuzio Varella em artigo à Exame)

Estádios-hospitais: Estádios que estão sendo transformados em hospitais terão enfim encontrado sua finalidade?

UM CONVITE

Nesses tempos em que parei de me exercitar e de ler livros, está sendo difícil até ajudar pessoas próximas, amedrontadas com a ameaça do vírus. Na convivência com meu filho em modo de estudo remoto, descobri que homeschooling é para gênios (ou masoquistas). Junto com isso tudo, minhas atribuições profissionais diárias também tiveram alguma redução.

Tenho aproveitado a oportunidade para aprimorar algumas competências, sendo uma delas a capacidade de contar histórias que emocionem pessoas em nome de um objetivo comum positivo, ambicioso e transformador.

Com esta divulgação tenho a expectativa de que você possa se inspirar mais do que se aborrecer e que isso nos ajude a sairmos melhores dessa. Vamos em frente!

Obrigado e um abraço

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