Ética nos cursos de computação

Rodrigo Barbosa e Silva
6 min readMay 21, 2018

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Com a crescente presença de soluções computacionais nos mais diversos aspectos da vida humana, com a consequente influência de pessoas que constroem estes artefatos tecnológicos — empresários, investidores, cientistas da computação, analista, programadores/as -, e com a profusão de notícias negativas sobre usos de dados pessoais para influenciar eleições e para cometimento de crimes, a ética na computação voltou ao enfoque de grupos organizados e setores acadêmicos no mundo. Este crescente interesse não implica em acreditar que a computação, enquanto campo, esteja tomada de atitudes irresponsáveis perante a sociedade; trata-se de assumir que esta computação, ainda que misteriosa para grande parcela populacional, é cada vez mais pervasiva e constituinte das relações sociais, culturais e históricas das sociedades modernas.

Expressões como Big Data e inteligência artificial parecem aumentar o mistério da engrenagem interna da maquinaria computação, entretanto também indicam que os métodos, técnicas e tecnologias estão se tornando mais utilizados em outros campos — quiçá mais democráticos. É longa a história de movimentos sociais que pressionam o campo da computação por mais abertura, democracia e equidade. Os movimentos feministas e movimentos negros estão na vanguarda destas pressões sociais, que também abarcam exclusões culturais e econômicas de outras minorias. As histórias dos movimentos sociais na computação são vitais para quem a tem como atuação profissional e social e deveriam fazer parte dos momentos da formação acadêmica e profissional de todas as pessoas. Embora, por superficialmente parecer óbvio, os eventos acadêmicos de computação atraiam maior interesse para as técnicas do ofício, é importante que não apenas o “como programamos”, mas que o “para quem” e o “por quem” esteja nas preocupações de quem computa.

A responsabilidade ética das profissões é mais perceptível em campos como Medicina e Direito. O Código de Ética da Medicina coloca como primeiro princípio que “a Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza.”. O Código de Ética e Disciplina da OAB, em seu segundo artigo, diz: “O advogado, indispensável à administração da Justiça, é defensor do Estado democrático de direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social, subordinando a atividade do seu Ministério Privado à elevada função pública que exerce”. Em comum, Medicina e Direito compartilham a certeza da elevada distinção da atuação das pessoas que as constituem e o fundamental papel dessas Ciências na vida cotidiana moderna. Argumento que os profissionais da Medicina e do Direito avançam as técnicas das respectivas ciências na seara da relações sociais mais comezinhas da vida das pessoas, expandindo-as para a sociedade como um todo.

A Sociedade Brasileira de Computação tem um Código de Ética que talvez ainda necessite de mais trabalho e aprofundamento. A SBC fala que o código de ética é “voltado para reger o mercado de Informática no Brasil”. O artigo primeiro tem o seguinte “dever”: “Contribuir para o bem-estar social, promovendo, sempre que possível, a inclusão de todos setores da sociedade”. Também é chamativa a delimitação de atuação no artigo quarto: “atuar dentro dos limites de sua competência profissional e orientar-se por elevado espírito público”.

A leitura do código de ética da SBC desnuda uma categoria, no mínimo, tímida quanto à importância social efetivamente desempenhadas por seus membros. Evidentemente, não é apenas pela norma — ou falta de norma — da SBC que a Ética na computação teria lugar, mas claro esta oficialização tímida por um órgão de classe demonstra que as pessoas da Computação, e não apenas a Sociedade Brasileira da Computação, têm uma longa estrada a percorrer no entendimento da importância social, política, cultural e histórica dos métodos e técnicas digitais na sociedade. (grifos artificiais).

Na edição de 22/05/2018, a Stanford Daily Magazine colocou em destaque uma discussão sobre Ética nos cursos de computação de Stanford. Segundo a reportagem escrita por Anna-Sofia Lesiv, as “transgressões da tec-indústria” levantam novos requisitos para a formação de profissionais éticos na Ciência da Computação. O interessante é notar uma movimentação do curso de computação de Stanford que, se não explica, dá pistas sobre a emergência da discussão de ética nos bancos escolares. Diz o artigo: “quando o departamento de ciência da computação empacotou suas coisas da Escola de Humanidades e Ciências e mudou-se para a Escola de Engenharia em 1985, era a única Engenharia que não tinha um requisito em ética na sociedade”. A matéria destaca que tratava-se do tempo da guerra fria e que questões éticas nas Ciência sempre estiveram presentes em discussões públicas. Também foi o tempo em que o dinheiro militar jorrou nas pesquisas em computação. Havia um crescente entendimento de que computadores teriam um papel muito importante na Guerra. Entretanto, para o professor Terry Winograd, que é um dos pilares de discussões em Ciência, Tecnologia e Sociedade no mundo, o atual ritmo de desenvolvimento e a pesquisa “baixo nível” (ou seja, fundamental) ocasiona que “ética continue a ser uma preocupação periférica para muitos cientistas da computação e pesquisadores hoje”. Em uma interpretação pessoal, a partir da leitura da reportagem, ética é algo que “pode” estar na preocupação das pessoas da computação, mas esse “estar” ainda não é considerando um “fazer”. Neste sentido, a matéria expõe:

“Atualmente, o campo da ciência da computação é o lugar de muitas outras áreas cinzentas do que existiam antes. Sem a orientação firme do corpo docente de Stanford ou uma educação ética rigorosa, os alunos podem se formar com excelentes habilidades técnicas, mas não estar preparados para responder aos dilemas morais que podem enfrentar em suas carreiras mais tarde”.

Reprodução: The Stanford Daily Magazine, 21 de maio de 2018. (https://www.stanforddaily.com/the-stanford-daily-magazine/)

Toda essa interessante temática me levou a refletir sobre como está a discussão sobre ética nos cursos de computação aos quais tenha acesso na minha vida profissional e acadêmica. Não acredito que ética possa ser “ensinada”, ou seja, a simples criação de uma disciplina implica na formação “mais ética” na computação, entretanto acredito firmemente que ética pode ser discutida não apenas dentro de algumas horas em algum semestre qualquer, mas em toda a duração da formação acadêmica e na atuação profissional em sociedade. Tive a curiosidade de consultar a grade de três cursos na área de computação que são oferecidos em minha cidade, Guarapuava, e realmente fiquei preocupado: um deles possui uma disciplina de “informática na sociedade”; o segundo possui uma disciplina de “computador e sociedade”; e o terceiro não possui qualquer menção a ética, sociedade ou filosofia, para ficar nas três palavras que poderiam enunciar um pequeno espaço para esta discussão.

Quero novamente ressaltar: a existência de uma disciplina não tem por consequência direta e imediata a “formação” ética, bem como a inexistência dela não implicaria “falta de ética”, mas pelo menos indicaria que dirigentes e formuladores das políticas educacionais estariam minimamente preocupados com este problema na carreira de cientistas da computação.

Pretendo analisar a questão pelo lado positivo: há um grande espaço nos cursos de computação para a discussão de questões éticas, sociais e culturais. Nas observações dos cursos de computação no Paraná, especialmente em Curitiba e Guarapuava, percebo que são ainda incipientes as iniciativas docentes para pelo menos analisar toda a complexidade que o tema carrega. Uma das exceções que merece ser destacada e estudada pela Academia é o curso de Bacharelado em Sistemas da Informação da UTFPR Curitiba. O curso da UTFPR tem, entre disciplinas obrigatórias e optativas, os seguintes enunciados: Prolegômenos ao Computar, Sociologia, Psicologia Aplicada ao Trabalho, Filosofia da Ciência e da Tecnologia, Computação e Sociedade, Trabalho Cooperativo Apoiado por Computador, Inteligência Coletiva e Redes Sociais Eletrônicas, Comportamento Humano nas Organizações, Fundamentos da Ética, A presença Africana no Brasil: Tecnologia e Trabalho, e Responsabilidade Social e Desenvolvimento Sustentável.

Como empresário, acadêmico, entusiasta e militante da computação, eu ficaria extremamente feliz em ter ainda mais contato com pessoas que tivessem interesse em temas como “Comportamento Humano nas Organizações”, “Inteligência Coletiva”, “Responsabilidade Social e Desenvolvimento Sustentável”. Repito: os enunciados não implicam nas soluções das contradições expostas pela vivência social do problema — ética na computação -, mas demonstram a preocupação do corpo docente em propor, expandir e oportunizar os espaços, as horas, para debate da computação em nossa sociedade.

Com este espaço para discussão, resta a nós, enquanto sociedade, realmente observarmos o que acontece dentro da Universidade. Universidade é uma das instituições mais importantes da formação, formulação e continuidade social. Universidade, enquanto momentum, não pode ser simplificada na formação de poucas e insuficientes técnicas para o exercício de uma profissão. Da mesma forma que movimentos sociais constantemente mostram caminhos para uma sociedade que tenda à equidade, é missão de outros participantes da coletividade, e aqui destaco a nós, empresários, o estabelecimento de elevados padrões éticos em nossas organizações e também nas relações comerciais e empresariais. A partir da demanda social, é possível vislumbrar que o período formativo acadêmico também será oportunidade para que Sociedade, pessoas e gente também sejam temas de interesse da Ciência da Computação.

Trata-se de compromisso ético que devemos assumir: presente e futuro da computação demandam uma sociedade mais equânime e preocupada com o bem-estar social e coletivo.

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Rodrigo Barbosa e Silva

Empreendedor, doutor em Tecnologia e Sociedade, pós-doutorando no Lemann Center em Stanford, trabalha por um projeto nacional de desenvolvimento.