Sandra, vestido e salto alto

Rômulo Cabrera
6 min readMar 10, 2018

Então não mexam com os meus decotes”, disse Sandra à médica e à mastologista que a atenderam em novembro passado. Ela não suportava a ideia de que pudesse ter uma das mamas mutilada. Já passara por um primeiro câncer anos antes, e este, agora, a deixava estranhamente tensa. Estava tão nervosa que o envelope pardo que segurava, contendo o laudo e as imagens da mamografia, esfarelou em suas mãos em questão de minutos. Sua insistência fez com a médica prometesse que apenas o nódulo seria retirado.

“No momento do diagnóstico do primeiro câncer, da primeira cirurgia, isso também era uma preocupação. O contato com esse monstro desconhecido me fez não questionar, não dizer qual era a minha vontade, como eu me sentia com relação às coisas. O que foi diferente agora: eu sei o que eu não quero e consegui dizer isso para minha médica”, revelou-me Sandra, em um papo que tivemos há poucos meses em sua casa, em Suzano. Se antes se sentia como num barquinho seguindo a correnteza, agora seria diferente. Ela tomou as rédeas e navegava contra o fluxo, curiosa, questionadora, de vestido e salto alto.

Sandra Gonçalves fazia 48 em 24 horas. “Teve uma época, entre todas as minhas atividades, que eu tinha oito empregos” disse, enquanto um papagaio resmungava num corredor próximo dali — Nathaly, dá um jeito no Loro, por favor! Formada em Letras pela Universidade Mogi das Cruzes, Sandra atuou como professora do Estado entre 2005 e 2013. Se desdobrava entre as salas de aula, o piano, as três filhas, Narany, Naliny e Nathaly; e sua mãe que, quando viva, dizia “filha, você consegue vir tomar café comigo?” — veja só, minha mãe tinha que agendar comigo! Mas logo, Sandra não teria aonde ir, não teria o que fazer, porque seu corpo já não a obedeceria como antes.

O primeiro câncer

Em 2008, Sandra descobriu um “carocinho” no seio, mas só fora ao médico um ano depois. O diagnóstico era que “poderia ser leite empedrado”, uma vez que o nódulo não tinha textura de tumor. “O que achei um cúmulo, já que minha filha tinha 10 anos e a possibilidade de ser ‘leite empedrado’ era quase nula”, conta. No entanto, o médico fora tão convincente que Sandra deixou até mesmo de fazer os exames que ele pedira — para desencargo de consciência, nas palavras dele. Mas o nódulo continuou crescendo. “Procurei outra profissional no posto de saúde do meu bairro e ela disse que ‘era coisa da minha cabeça’. Dois anos depois, me consultei com outra profissional que disse que eu estava ‘procurando doença’. Só que aí o nódulo já estava do tamanho de um limão, deformando meu seio, e eu aparentemente não conseguia que ninguém me ouvisse.”

Num exame preventivo de câncer de colo uterino, quando questionada se fazia o autoexame de mama, Sandra contou os recentes episódios para uma enfermeira que deu uma guia para que ela fizesse a mamografia. Uma imagem de compressão foi feita do nódulo e, no dia 30 de outubro — é até sugestivo descobrir em outubro — , os resultados apontaram “achados mamográficos altamente suspeitos”. “Por que você está chorando?”, perguntaram. Sandra sabia. “Há um histórico de câncer na família. Minha mãe teve — meu pai está — e algumas tias já tiveram também”. Sandra foi encaminhada para o Hospital Pérola Byington, em tempo recorde, e em poucos meses estava na sala de cirurgia. Em fevereiro de 2014, o nódulo foi retirado da mama de Sandra que tão logo começou as sessões de quimio e radioterapia.

Posso usar salto alto?

“Perdi o cabelo, que era enorme.” As fotos espalhadas por toda casa são prova disso. Sandra diz não saber como aguentou até agora — talvez fossem as letras. “Eu tenho uma mania de escrever sempre que algo me incomoda. Por isso fiz um diário de bordo”, disse. Ela administra uma página no Facebook, onde relata dia a dia sua luta contra o câncer. “Essa é uma coisa recorrente, o querer voltar no tempo, saudade de alguma coisa que já foi e que você precisa. É como o ar para respirar. Eu não aguento ficar parada”.

Em fevereiro de 2016, Sandra descobriu uma metástase óssea na coluna — que me traz muita dor. Ela toma codeína, um fármaco preparado a partir da morfina, a cada seis horas — para ficar bonitinha, sem dor, e para poder usar meu salto alto. No dia em que recebeu o diagnóstico, a médica, surpresa com a reação dela, perguntou: “Você vai receber o diagnóstico assim?”. “Por que, meu cabelo vai cair de novo?”. “Não”, respondeu a médica. “Posso usar salto alto?”. “Pode”, ao que Sandra disse: “Tudo bem então”. A metástase óssea está bloqueada e o “tratamento é de perder de vista, já que o câncer nos ossos não tem cura”.

Apaixone-se por si

Durante todo o tempo que esteve em tratamento, Sandra passou a se fotografar diariamente “porque todo dia eu estava diferente e fui me apaixonando por mim”. “É curioso, mas eu comecei essa história de tirar fotos para deixar lembranças para as minhas filhas, porque minha mãe se foi e eu quase não tenho lembranças dela.”

No ano passado, Sandra começou um projeto de resgate da autoestima para pacientes com câncer: o “Apaixone-se por si”. Ela e outras mulheres fizeram uma sessão de fotos, em setembro passado, que foram expostas por dez dias no Suzano Shopping. “O projeto está lançado”, contou. “E esse é o objetivo: resgatar a autoestima, não só das mulheres com câncer, porque a mídia pinta um modelo de beleza que a gente sabe que é impossível de atingir por êne fatores, inclusive genéticos. E elas são lindas, só não perceberam isso ainda.”

E, curiosamente, foi numa campanha promovida em outubro, ensinando as mulheres a fazer o autoexame de mama, que “eu percebi outro nódulo no seio direito — e eu estava fazendo exames”. No dia 18 de dezembro, Sandra se internou para retirada do nódulo…

Na semana seguinte

“Saí de casa domingo, linda, maravilhosa e sorridente, como sempre. Mesmo voltando mutilada, sem um pedaço de mim, voltei da mesma forma: linda, maravilhosa e sorridente — e tentando achar algo de bom nessa lasqueira toda. Confesso que não está fácil. Sou humana. Desmontei. Chorei. Quando achei que tinha chorado tudo, chorei de novo, mas estou respirando. Vou ficar bem, sempre fico. Preciso e tenho que ficar e permanecer de pé. De Sandra, vestido e salto alto.”

Por meio do ultrassom, o médico responsável pela cirurgia de Sandra encontrou outro nódulo na mama direita. “Apareceu de novo e mais agressivo”, ele disse. Sandra teria que passar por uma mastectomia, procedimento cirúrgico de remoção completa da mama. Temiam que o câncer voltasse mais agressivo, haja visto que este veio com uma infiltração no sistema linfático. ‘Conversei com ele [médico] e chorei muito, tive um treco”, disse-me Sandra, que agora não conseguiu segurar o choro. “Pensei em tudo. Porque eles têm feito de tudo para eu estar bem, tem feito de tudo para bloquear o câncer. Como é que eu, por uma questão estética, vou atrapalhar o trabalho deles?”.

Na quarta-feira, um dia após voltar do hospital, Sandra foi ao salão do amigo cabeleireiro e pediu que cortasse seu cabelo. “Eu não vou querer ficar com o cabelo de qualquer jeito e preferi cortar curtinho. Já adianta, não choca tanto na hora que cair, e eu não fico agoniada com o cabelo fora de lugar”, revelou

Recentemente, em mais uma de suas publicações nas redes sociais, Sandra escreveu:

“Mesmo enfrentando o monstro, vivo. Estou de pé. Teimosia? Sei lá. Este monstro me mostrou que preciso aproveitar cada instante. Sinto pelos queridos que, sem dor de enfermidade alguma, se fecham em seus casulos. Com dores de alma. Que pena. Não sabem o quanto de vida têm em si mesmos. O quanto lhes está a disposição para viver. Torço para que acordem e saiam, gritem, corram, vivam! Enquanto podem.”

As bases de Sandra são tão fortes que, mesmo em tempos de tempestade, ela se equilibra e requebra — de vestido e salto alto.

Rômulo Cabrera é mestrando em Jornalismo e documentarista nas horas vagas. Se você curtiu, deixe aquelas palminhas de lei, comente, compartilhe com os amigos e faça essa história chegar a mais pessoas.

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