Corrida capitalista em tempos de exceção: China x EUA

Rodrigo de Abreu Pinto
6 min readMar 25, 2020

A reação demorada de líderes como Xi Jinping e Donald Trump ao COVID-19 deixa claro onde estamos: a despeito do mundo se encaminhar ao fim, o que importa é pelo menos chegar primeiro. Por isso, deve-se ir até o limite — leia-se: até o máximo de mortes antes que alguém o saiba. Nessa corrida para o fim do mundo, o vírus foi inicialmente equiparado aos casos de SARS ou Ebola em que a epidemia foi barrada na fronteira (tal como se acostumaram fazer aos imigrantes), e assim que o perigo retrocedeu, apareceram analistas a dizer que a volatilidade do mercado foi exagerada. Só não diziam que as ações dos governos e organizações internacionais só foram tomadas quando o mesmo mercado se mostrou preocupado, pois se os sujeitos não acreditam, o mercado acredita por eles.

Desta vez, quando o princípio de realidade só lhes foi imposto pelos crashs e circuit breakers, já era tarde. O medo se espalhou e chegamos na paradoxal situação em que todo mundo sabe que os líderes apareceram para dizer que está tudo bem justamente porque não está. É quando montam um teatro em que os personagens, não raro atrapalhados, encenam que as coisas já estão voltando a “normalidade”.

Um morador de Wuhan em quarentena filmou o espetáculo de autoridades chinesas em trajes brancos de máxima proteção que gravam um vídeo oficial com a bandeira chinesa. Assim que terminam, retiram os equipamentos de proteção, conversam, fumam, esfregam o jaleco no carro e um deles não tarda em jogar o uniforme no lixo.

Sabendo que vídeos semelhantes foram censurados pelo governo chinês, isso nos joga uma difícil questão sobre a China. Por um lado, o regime foi pouco efetivo em conter a explosão da epidemia uma vez que o braço forte do Estado reprimiu a circulação de informações que facilitou a propagação do vírus. Por outro, apelaram a medidas extremas e compulsórias que achataram rapidamente a curva da doença, mas que dificilmente seriam aceitas em países propriamente “democráticos”.

Nos últimos anos, essa equação se traduziu no crescimento acelerado do gigante chinês que, a despeito da modernização, permaneceu uma ditadura e sem abrir mão da coordenação do Estado na economia. À medida que a cartilha neoliberal não garantiu o mesmo desempenho aos demais países, não foi a China que aderiu a globalização, mas os países ocidentais que se tornaram mais “chineses” — seja porque elegeram líderes como Trump e Boris Johnson, seja porque agora dependem economicamente da China.

Para quem não se lembra, na saída da crise de 2008, foi a China que puxou a recuperação mundial. Os Estados Unidos se dedicaram a salvar o próprio sistema financeiro enquanto os investimentos diretos no exterior e o consumo de produtos importados diminuíram. A China, por sua vez, assumiu o papel de fiadora da nova ordem internacional, como atesta seus ambiciosos programas de infra-estrutura ao redor do mundo (para se ter uma ideia, o Belt Road é chamado de “Plano Marshall do Século XXI”).

Sabendo disso, os americanos não querem ficar para trás outra vez, o que inclui duas linhas de ação. Primeiro, já anunciaram, além do estímulo monetário, um pacote fiscal para sustentar a demanda que mais parece obra de algum economista de Bernie Sanders. Segundo, estudam estratégias para sair da quarentena o mais rápido possível, caso contrário a China será a protagonista da retomada global. O próprio Donald Trump tem batido na tecla por um short shutdown e não mediu esforços em obter os direitos exclusivos sobre uma vacina da empresa alemã Curevac. Caso em que, diante do America First do presidente norte-americano, os alemães se sentiram ofendidos e o parlamentar Karl Lauterbach retrucou: “A venda exclusiva aos EUA de uma possível vacina precisa ser evitada a todo custo. Capitalismo tem limites.” Será mesmo que tem?

Impressionou os americanos fazendo filas em lojas de armas como se antecipassem um conflito de grandes proporções, mas é também uma guerra, embora sem armas, que Estados Unidos e China estão prestes a engendrar — o que não deixa de ser uma continuidade das recentes disputas comerciais que desaceleraram o crescimento global no último ano. Em outras palavras: vale tudo pela dianteira na disputa da produção de celulares, redes de quinta geração, inteligência artificial, carros elétricos e energias renováveis. Não por outra razão, desde que se tornou o primeiro país a minorar o contágio do COVID-19, a China estabeleceu metas de consumo de energia para centros industriais como Zhejiang. A aberração, no entanto, é que as limitações de oferta e demanda ainda não foram normalizadas e as empresas têm operado as máquinas simplesmente para atingirem a meta, sem que ocorra produção propriamente dita. Não é a mesma irracionalidade, afinal, do avanço predatório das empresas agroflorestais chinesas que expulsaram as populações do campo a ponto de forçá-las a meios rudimentares de renda como a caça e venda de animais selvagens nas feiras locais?

Sem embargo das disputas que vão desde guerra híbrida até as crescentes tensões militares, há uma homogeneidade de fundo que diz respeito ao capitalismo predatório comum a Estados Unidos e China. Trump pode até dizer que o COVID-19 nasceu da “nojeira” dos mercados chineses, mas não tem moral para criticar que a proliferação acelerada se deu pelas condições precárias de Wuhan — cidade que se tornou um dos epicentros da indústria moderna chinesa enquanto os gastos com saúde eram adiados em nome das obras de infraestrutura — porque também a expansão capitalista dos Estados Unidos, realizada a partir dos anos 80, acarretou um lastro de destruição que inclui não apenas o aumento da pobreza, mas a destruição da rede de proteção social que então lhes falta para arcar com a pandemia.

Xi Jinping ou Trump, é terrível que uma crise desse porte aconteça ao mesmo tempo que somos governados por líderes tão repugnantes — não apenas pela gestão da crise em si, mas pela força que ganham ao saírem dela. Digo isso porque outras crises já revelaram que as lideranças, em tais momentos, encontram meios ideias para suscitar a união nacional em torno de si. Ou seja, é o momento em que a política recupera a primazia ao passo que, pelas vias do poder ilimitado que assumem para vencer a crise, os presidentes convertem o medo em adesão popular.

Se as medidas extremas que estão tomando só mostram, na verdade, a debilidade em controlar uma pandemia através de políticas menos drásticas, o sucesso dessas acaba legitimando ações que, de outro modo, rejeitaríamos. À medida que o COVID-19 se assenta sobre formas que surgiram na esteira da ascensão dos regimes autoritários — fake news, teorias da conspiração, política do medo, xenofobismo, descompromisso ambiental — a necessidade de crescimento acelerado para sair da crise dará ensejo a acirrá-las ainda mais.

A incompetência, inclusive tecnológica, em resolver a crise climática deveria ter nos ensinado que já não somos nós que marchamos ao futuro, mas esse que se aproxima de nós prenhe de negações. Como reagir, por exemplo ao comentário do especialista da Nasa que disse nunca ter ocorrido uma diminuição da poluição tão efetiva como em Wuhan em meio a quarentena? O problema é que uma quarentena não é uma greve — embora alguns de seus efeitos se aproximem — a não ser que aproveitemos o momento para revigorar o imaginário social-democrata (saúde e educação públicas; pesquisa científica; renda mínima universal), o mesmo que precisaríamos para enfrentar a pandemia com mais dignidade.

Boaventura de Sousa Santos explicou que conforme as crises se sucedem — e assim entramos num estado de crise permanente — nenhuma crise precisa mais ser explicada porque, na verdade, já se tornou a causa que explica todo o resto. Que seja, portanto, também a causa de nossa ressurreição.

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Rodrigo de Abreu Pinto

Nascido em Recife, é formado em filosofia pela FFLCH-USP e em direito pela PUC-Rio.