O véu islâmico — quebrando o tabu (parte II)

Rebeca Benício
8 min readMay 21, 2019

--

Deixando de lado a história e seus fatos, vistos na parte I, agora quero compartilhar com vocês a jornada que me levou a tirar o véu. Aviso: é válido lembrar que o que estou prestes a descrever aqui são as minhas opiniões particulares, resultadas da minha experiência de vida.

Antes de mais nada, acredito que seja importante contar para vocês um pouco de quem eu sou e de onde eu vim, então aguentem só um pouquinho.

Como grande parte dos brasileiros, eu nasci em uma família católica e até fiz primeira comunhão. Quando criança, e mesmo no início da adolescência, eu nunca vi sentido nos rituais da igreja e sempre senti que tudo aquilo era meio forçado em mim.

Por volta dos meus 13 anos a minha mãe deixou o catolicismo e passou a seguir a doutrina kardecista (pela qual tenho muito respeito e sobre a qual leio muito hoje em dia). Na época eu também não me interessei muito e fiquei muito feliz por não ter mais que acordar cedo no domingo para ir à missa e por não ter mais nenhuma “obrigação religiosa”.

Foi assim que vivi até os 19 anos, quando entrei na faculdade de Letras e fui cursar matérias da habilitação de língua árabe. Ouso dizer que todo mundo tem ao menos uma curiosidade a respeito do Mundo Árabe; vocês mesmos devem estar lendo este texto porque querem entender um pouco mais sobre o que é usar o véu e o que isso implica dentro da religião. Eu não era diferente. Todo o mistério, a história e a cultura milenares me fizeram mergulhar nesse universo durante a faculdade.

Então, em 2013 eu fiz a minha primeira viagem internacional para o lugar dos meus sonhos: o Egito. Parece meio romântico e meio bobo o que vou dizer, e é até um pouco difícil descrever a sensação, mas quando pisei no Cairo pela primeira vez, eu soube que pertencia a este lugar. Acho que essa citação do escritor egípcio Naguib Mahfouz define muito o que sinto a respeito daqui:

Home is not where you were born. Home is where all your attempts to escape cease. [Lar não é onde você nasceu. Lar é onde todas as suas tentativas de escapar cessam.]

Um ano depois (em 2014) eu voltei para o Cairo e decidi me converter. Fui até à mesquita de Al-Azhar, que contém a maior e mais prestigiosa universidade do Egito para estudos islâmicos. Lá eles são preparados para receber estrangeiros e, após responder uma série de perguntas sobre a religião (obviamente eles fazem uma checagem para saber se você realmente sabe onde está se enfiando), e de decidir por manter o meu nome de batismo (você pode optar por ter um nome islâmico), eu fiz a minha shahada: o primeiro dos cinco pilares do islã, é uma declaração dizendo você acredita em um Deus único e que Muhammad (pbuh) é o mensageiro de Deus.

Convertida, voltei para o Brasil e fui, aos poucos, mudando alguns hábitos que coubessem na minha rotina, como deixar de comer carne de porco, por exemplo. O véu só veio um ano e meio mais tarde, quando me mudei definitivamente para o Cairo, em janeiro de 2016.

Foi aí que as coisas começaram a acontecer.

Quando penso nos motivos que me fizeram tirar o véu, eu me lembro muito do início. Eu tinha acabado de me mudar e queria muito fazer parte desse novo mundo, queria me misturar na sociedade egípcia. Com o véu eu conseguia isso. Eu passava despercebida e me sentia aceita, pertencente.

Não considero que ter escolhido usar o véu por um motivo diferente do aspecto religioso tenha sido “errado”. Conhecendo outras mulheres aqui, eu entendi que usar o véu também é uma forma de criar uma barreira entre nós e as outras pessoas e isso é muito útil no dia a dia, especialmente sendo uma estrangeira que não fala a língua muito bem.

(Pode ser que algum muçulmano lendo isso discorde fortemente de mim, mas no final do dia só a mulher sabe os motivos pelos quais ela usa ou não o véu.)

Mas, sem me adiantar muito, vamos passar para um evento que acontece todos os anos na minha vida: visitar o Brasil. Eu sempre procuro passar uns 2 meses por ano em São Paulo, e nesses últimos 3 anos eu vivi e senti muitas coisas que me trouxeram uma outra perspectiva.

Toda vez que eu chegava ao Brasil, começava a me sentir perdida. A sensação era a de que quanto mais eu absorvia a cultura árabe mais eu perdia a brasileira. Eu não sabia muito bem como me comportar e nem como adaptar o uso do véu para a realidade do Brasil.

Eu só passei por uma situação delicada durante uma das minhas viagens, num geral era sempre seguro usar o véu para sair na rua. O incômodo vinha mesmo de dentro de mim. Parecia que eu tinha que me justificar o tempo todo e comecei a perceber que o véu não tinha espaço naquele lugar e na minha rotina, e ao mesmo tempo eu me sentia muito culpada por isso.

Ao longo desses 3 anos eu até adaptei o véu e passei a usar o turbante, o que me fazia sentir um pouco mais próxima de algo que, até então, eu não entendia bem o que era.

Há uns 7 meses voltei a fazer terapia e, mais uma vez, me voltei para o autoconhecimento. Eu tinha acabado de chegar da minha última viagem e tudo aquilo ainda estava vibrando muito em mim. Assim como eu chego perdida ao Brasil, também volto para o Cairo me sentindo fora de sintonia.

Aos poucos eu entendi que estava passando por uma crise de identidade, mas não só do tipo “preciso descobrir quem eu sou”, mas também de “preciso descobrir qual é o meu papel como muçulmana dentro das sociedades pelas quais eu transito”.

Em outubro do ano passado eu aceitei um trabalho em um colégio internacional aqui no Cairo e, ao passar parte do meu dia com estrangeiros e egípcios que viveram fora, fui entendendo melhor aquele sentimento.

Existem diversos motivos que fazem uma muçulmana chegar à decisão de tirar o véu. Não é uma decisão fácil, independentemente de qualquer situação, e essa escolha é motivada por diversas circunstâncias e sentimentos. Os meus eram os seguintes:

Eu não nasci muçulmana e não nasci em um país muçulmano, então eu carrego uma bagagem de quase 30 anos totalmente diferente da de pessoas que estão inseridas nessa cultura, e isso não se desfaz do dia para a noite.

Ao usar o véu, eu sentia como se estivesse colocando uma etiqueta em mim mesma que dizia: “esta pessoa é muçulmana e isso é tudo o que você precisa saber sobre ela”. Afinal, a primeira impressão que você tem ao ver uma mulher usando o véu é exatamente a de que existe uma barreira entre vocês, e nem todos estão dispostos a transpor essa barreira.

Mas há 3 anos era exatamente isso o que eu queria: que as pessoas me identificassem como muçulmana. Porém, hoje, eu não quero mais ser definida apenas por isso. Eu sou muçulmana, mas eu também sou a Rebeca profissional, a Rebeca que tem amigos LGBT, sou a Rebeca que gosta de ler, a Rebeca que é brasileira e que escolheu viver em um país árabe. Eu sou muitas coisas e eu não quero ser definida e catalogada pela forma como eu me visto ou pelo que eu uso na cabeça. No fundo até acho que já sentia tudo isso, porque eu não quis, por exemplo, abrir mão do meu nome, que vem do hebraico e é um nome bíblico, porque pra mim ele é parte de quem eu sou e é parte da minha história, da minha identidade.

Então, tirar o véu foi uma das formas de encontrar o equilíbrio que eu precisava, um meio de sentir que faço parte dessa cultura que eu tanto amo e adotei, mas que eu também não deixei para trás os 25 anos que vivi no Brasil, que não esqueci das minhas raízes.

Além do aspecto da identidade, eu também tomei a decisão pelo aspecto religioso. Eu ainda tenho muito o que aprender sobre o islamismo e sobre as suas práticas, e não sentia que estava aplicando a religião na minha vida como deveria e queria fazer, então o véu passou a ser um lembrete constante da minha “hipocrisia”, digamos assim. Ao ver uma mulher com o véu se pressupõe que ela tenha hábitos religiosos adequados, mas isso nem sempre acontece, afinal somos humanas. Então, eu passei a entender que não preciso do véu para definir se sou uma boa muçulmana ou não, porque ele não define o meu caráter religioso (embora eu não negue a sua importância). Para mim o que importa mais é a forma como eu me comporto, se respeito as pessoas ao meu redor e dou o meu melhor para criar uma boa comunidade e boas relações, ou se estou contribuindo para a sociedade com coisas positivas. Eu não preciso de um véu para me lembrar disso. O que eu precisava era realmente dar um passo para trás e reavaliar a forma como eu estava conduzindo a minha religiosidade e como ela se alinhava com o meu processo de autoconhecimento, e eu não queria algo pesando sobre a minha cabeça (literalmente) no processo.

O processo em si levou alguns meses de muita reflexão, dúvidas e um sentimento de culpa e tristeza. Foram coisas que eu tive que lidar e entender dentro de mim. Conversei com pessoas incríveis que me ajudaram e me apoiaram. Descobri que todo mundo tem uma opinião para dar (nem sempre bondosa), mas tudo se silenciou fora de mim e eu só conseguia ouvir a minha voz interior me dizendo que eu precisava dar aquele passo. Eu respirei fundo e fui. Foi estranho no começo, é claro, principalmente estando em um país muçulmano, mas agora, 3 meses depois, tudo já se ajeitou.

Outro aspecto que foi importante nessa decisão é algo que mencionei na parte I: a importância cultural do hijab. Sob a minha perspectiva, acredito que o uso — ou o não uso — do véu tem se tornado cada vez mais uma questão cultural do que religiosa. O Egito, por exemplo, é um país que tem uma crescente influência ocidental e as coisas têm mudado visivelmente por aqui.

Hoje entendo e acredito que o rosto do islã é múltiplo e as pessoas precisam saber disso. Nós todos não cabemos em uma só caixinha. É importante também que exista esse tipo de abertura para que preconceitos sejam combatidos. Imaginem uma muçulmana com véu e uma muçulmana sem o véu, ambas em uma sociedade ocidental: quem teria mais chances de dialogar?

As coisas estão mudando e as sociedades também, principalmente com o fluxo de imigrantes árabes e muçulmanos no mundo todo, e essa transição pode ser feita com um diálogo mais aberto e sem todos os preconceitos, ou seja, sem os juízos pré-definidos.

É claro que eu não quero dizer com esse texto que eu não aprovo mais o uso do véu e que acho que todas as muçulmanas devem tirá-lo. Muito pelo contrário. Eu acho o uso do véu algo poderoso, que também inspira resistência e representa a nossa conexão com a nossa fé e no que acreditamos, além de representar diversas culturas. E eu também acredito que o véu pode ser uma ferramenta de aproximação e conscientização. Apenas para mim, Rebeca, neste momento da minha vida — e por tudo o que eu já vivi, por todas as minhas experiências, e por como me vejo hoje e entendo a minha identidade e como ela incorpora a minha fé — , o véu não faz mais sentido. E essa é uma experiência minha. Ela é única, porque todos nós somos únicos, mesmo quando fazemos parte de algo maior.

--

--

Rebeca Benício

Paulistana que há 3 anos se tornou Cairota mas que na verdade passa a maior parte do tempo no mundo dos livros enquanto o seu gato cochila do seu lado.