“The Lobster” (2015): a distopia chega ao nosso amor online

Renan Simão
4 min readJun 19, 2016
Solteiros = loosers

Em 26 anos, já quis ter a frieza no Tracy McGrady, o jeito do Messi andar em campo, a ironia do Zach Galifianakis, o cabelo do Bob Dylan, o estilo de escrita do David Foster Wallace. Quando elogiavam a minha voz, lembrava do Nick Cave. Até esses dias me peguei andando tipo o Klay Thompson.

Não tem jeito, esses aleatórios minimodelos de vida, constrangedores de se expor, estão em nós, mesmo que implícitos. Na TV, internet, filmes, música, personalidades. Isso fica ainda mais claro em nossa família, amigos e pessoas próximas que admiramos.

Agora, imagine essa condição nata de assimilação de identidades direcionada à pessoa que queremos como um amor, único e inabalável. E de forma mútua e doentia em um hotel e seus arredores.

“The Lobster” (Yorgos Lanthimos, 2015) é um filme sobre relacionamentos em um mundo distópico. É tão absurdo e improvável em uma perspectiva realista que, se o entendermos como alegoria, encaixa-se em uma crítica a um mundo hiperconectado e muitas vezes insensível, o atual. Uma metáfora sobre as necessidades amorosas de nossa sociedade nos anos 10.

Acompanhamos David (Colin Farrell), o único personagem com nome na história. Ele dá entrada num hotel pois foi rejeitado pela mulher após mais de 10 anos de casamento. Quem narra a saga é uma mulher.

Logo saberemos que a estadia exuberante à beira-mar dita regras específicas aos hóspedes. Você está ali para encontrar um cônjuge. Se não completar a tarefa em 45 dias, vira um animal (o irmão de David já se transformou em um cachorro e o acompanha). Você ganha mais tempo no hotel se tiver um bom aproveitamento nas caçadas na Floresta — mate um solitário selvagem que vive por lá e tenha mais chance de encontrar o seu verdadeiro amor no hotel. Não é permitido fazer sexo ou se masturbar.

Uma série de acontecimentos mostra a obsessão por encontrar alguém, não só uma pessoal legal, mas a sua paixão. (Segundo a governanta do hotel, os animais também podem ter companhias, mas amar, nunca). A fixação é tanta que os mais triviais defeitos transformam-se em “características definidoras” das pessoas.

O caso mais simbólico é do Cara que Manca (Limping Man). O viúvo amava sua mulher, também uma manca. Mais à frente na história, ele quebra seu nariz de tempos em tempos para criar uma semelhança com o maior aspecto de sua nova companhia, a personagem Moça do Nariz que Sangra (Nosebleed Woman). Eles se apaixonam. Se o acaso não nos ajuda com as aparências, vamos dar uma chance a ele mutilando o nosso próprio corpo.

O humor negro está em cada cena, e as atuações são pensadas a desnaturalizar conversas e situações. Como bem diz a Juliana Cunha, o corpo exerce função primordial na narrativa, nunca erotizado e utilizado como caminho mais curto para seguir uma ordem subliminar de realização pessoal e da sociedade. É o que sobra quando o pragmatismo dos sentidos dá lugar às sutilezas dos sentimentos, aqui banidos.

Acontece que há pessoas vivendo fora do hotel, na Floresta. Esse é ponto em que “The Lobster” passa de uma crítica óbvia às pessoas querendo se amar a qualquer custo para analisar o outro lado. São os ressentidos por não participar desse jogo, por mais injusto e doentio que seja.

Com o grupo de desiludidos escondidos na Floresta, não há tempo para nada. Ao contrário do hotel, “você pode ser solitário até o dia que morrer”, diz a líder (Léa Seydoux), mas não é permitido flertar — eles cortarão a sua boca. Em vez disso, masturbe-se o quanto quiser. A conversa é permitida, mas só para assuntos úteis, nada de amizade. O entretenimento fica com os fones de ouvido que tocam música eletrônica para cada um, separadamente. (A única crítica que não concordo do filme: qualquer gênero musical pode engajar grupos, a sugestão de alienação é um estereótipo).

Se levarmos em consideração o tamanho da mágoa da facção clandestina de solteiros por não cultivar amor e assim repeli-lo, suas normas ditatoriais denotam um sentido de sobrevivência. Mostram que, apesar de estarem em um espectro oposto ao do mito do amor romântico, o colocam como modelo do que não fazer. Ou seja, ainda dentro do modelo. Não diversificam as formas de relacionamento e jogam o mesmo jogo que privilegia a homogeneidade das relações, talvez sem perceber, como defesa.

David escapa da tentativa um assassinato de uma amada que testa seus sentimentos brutalmente e foge do hotel.

Já entre os solitários, através da dádiva de uma miopia em comum, David encontra um possível amor (Rachel Weisz, a narração do filme). Conversando em público somente por meio de sinais, o casal desenvolveu sua própria língua. A felicidade não dura muito e a moça termina cega como retaliação do grupo.

A partir daí o filme entra num thriller mais trágico do que cômico em que a questão principal para a fuga do casal é: vale a pena inventarmos características definidoras em nós mesmos para legitimarmos um suposto Grande Amor? Precisamos encontrar mais e mais pistas em comum, a ponto de forjá-las, para termos certeza de que não estamos perdendo tempo?

Pensei nos encontros pela internet em muitos momentos. Mais especificamente sobre o quanto nos apegamos às tags do cotidiano para nos certificarmos dos recortes afetivo-editoriais que podem estar nos relacionamentos. São inevitáveis, mas apegar-se a elas para preencher algum esboço de sentimento pode ser desperdiçar chances com pessoas interessantes que não estão em nossos moldes. Não há lugar seguro.

Do meio para o final do filme, a interação entre os personagens não tem a força do início, o casal leva os resquícios de um amor sincero ao desfecho em aberto e só o que eu conseguia pensar era nas metáforas do filme.

Se “The Lobster” não quer emocionar, pelo menos faz com que repensemos sexo e normas afetivas de maneira eficaz. Podia ser mais, mas não é pouco.

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Renan Simão

Jornalista. University of Sheffield MA. Assessor de comunicação da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.