As expectativas acerca de transição entre novelas e o que elas revelam sobre o telespectador brasileiro
Hoje é domingo, dia 8 de setembro de 2024. O dia de hoje, como poucos domingos durante o ano, marca um interstício que deixa o telespectador brasileiro — pelo menos aquela parcela que não lança mão da arrogância para dizer que “as plataformas de streaming mataram a telenovela/a TV aberta” — numa tremenda angústia. Afinal, o dia anterior, o ontem, foi o “sábado de reapresentação do último capítulo da novela” e o dia seguinte, o amanhã, será a “segunda-feira de estreia da nova novela”. No dia de hoje, o caso é ainda mais especial e só acontece duas vezes por ano: é o vazio da “novela das 21h”, da hora mais nobre do horário nobre, o crème de la crème teledramatúrgico.
Pensei em categorizar tal evento como uma hiância. Hiância é um conceito psicanalítico que descreve o período intervalar entre o que inexiste e o que está prestes a existir, característico do momento anterior à emergência das diferentes dimensões do sujeito que operam sobre ele. De fato, há semelhanças entre um domingo como esse e o fenômeno da hiância psíquica. De forma cômica, comparo o desamparo originário da criança — que, incapaz de explorar o mundo sozinha e de nomeá-lo, depende de uma figura de acolhimento que lhe confira mundo — com esse dia que nos sentimos desamparados: com saudade da novela que acabou e ansioso pelo início da que virá, tendo no meio apenas aquele momento levemente constrangedor no Domingão do Huck, em que os elencos das duas produções interagem. Ainda assim, no entanto, é um pouco forçoso trazer esse conceito de hiância aqui. Primeiro, porque no caso da teledramaturgia, há algo anterior, como já dito: no caso, a novela que terminou. Segundo, porque a existência do que está por vir está sendo antecipada através de teasers e trailers, de numerosas formas de divulgação de parte do material que já vem sendo produzido e gravado ao longo de pelo menos seis meses.
Factualmente, não existe esse momento de indeterminação quando se trata da transição de uma novela para outra. Sim, há o fato já supracitado de que a história da novela seguinte já vem sendo contada desde antes. Mas há de se notar também que a novela que está se encerrando ou já se encerrou continua afetando não só os desafios criativos da sucessora, como também as expectativas do público e da emissora — ou seja, há historicidade no processo. Prova disso se deu na passada de tocha anterior entre novelas das nove. Walcyr Carrasco, à época, escrevendo Terra e Paixão (2023–24), foi informado de que teria que alterar sua trama, porque o remake de Renascer acabara de ser confirmado e sua história corria o risco de ficar muito parecida com a de sua sucessora, que não poderia ser mudada, por ser a reatualização de um clássico de 1993, de Benedito Ruy Barbosa. Evitando que fossem exibidas ao público duas histórias em que o pai odeia o filho cujo parto culmina na morte da esposa, Carrasco foi pressionado a trazer de volta à vida a mãe de Caio (Cauã Reymond), Agatha (Bianca Bin/Eliane Giardini), o que acabou trazendo mais louros do que deméritos, transformando aquela novela que minguava nos 24 pontos numa obra de índices satisfatórios, fechando com 27 pontos de média geral e capítulos finais que ultrapassavam os 30 pontos.
Mesmo após as alterações no roteiro, Terra e Paixão e Renascer, contavam com algumas semelhanças perceptíveis — as disputas por terras, os conflitos armados, a violência marital em diferentes âmbitos, a figura autoritária do coronel/fazendeiro, que ora põe a mão na massa para fazer suas vilanias, ora designa seus capatazes para tomar as atitudes que movimentam a trama. Isso tudo além do principal, que fortalece os outros pontos citados: é difícil diagnosticar precisamente, mas arrisco dizer que nunca, na história da Rede Globo, duas novelas rurais foram exibidas em sequências no horário nobre, principalmente às 21h. E isso deveria ser apenas uma constatação de ineditismo, não uma crítica. Afinal, novelas urbanas passam aos montes, mostrando sempre os mesmos lugares e pouca reclamação é vista. Fato é que o público demonstrou certa saturação relacionada à ambientação rural e ao contexto agropecuário que dão o tom dos conflitos de ambos os títulos. Lembrando que isso também ocorre por dois outros motivos: o primeiro, porque se trata de duas obras duramente criticadas pelo público e pela crítica especializada; segundo, porque a ambientação também foi explorada nas duas últimas novelas do autor Mário Teixeira às 18h, Mar do Sertão (2022–23) e No Rancho Fundo (2024).
Com o fim de Renascer, ansiosamente aguardado por muitos noveleiros tanto da internet, quanto do sofá, uma série de expectativas começaram a surgir e a esmagar Mania de Você, a nova aposta da Globo, criada e escrita por João Emanuel Carneiro, o que, honestamente, me preocupa. Não está em jogo aqui, devo apontar, a competência do autor, que já escreveu muita coisa brilhante, como A Favorita (2008–09), Avenida Brasil (2012) e Todas as Flores (2022–23), e já colheu suas laranjas podres, como A Regra do Jogo (2015–16) e Segundo Sol (2018). No entanto, tais expectativas do público de que ele sera o redentor do horário das 21h são perigosas, aposto eu, porque são baseadas em uma mera sinopse, algumas entrevistas e uma dezena de chamadas, apresentando os personagens principais — Viola (Gabz), Luma (Agatha Moreira), Rudá (Nicolas Prattes), Mavi (Chay Suede), Mércia (Adriana Esteves), Molina (Rodrigo Lombardi), Ísis (Mariana Ximenes), Berta (Eliane Giardini) e Michele (Alanis Guillen) — mas mais ainda porque as expectativas estão majoritariamente atreladas ao quão diferente Mania de Você pode ser de Renascer.
Mas o que essas expectativas — não só em relação à mudança Renascer → Mania de Você, mas também em relação às próximas passagens, de Família é Tudo (2024) → Volta Por Cima (2024–25) e No Rancho Fundo (2024) → Garota do Momento (2024–25) — revelam sobre o público que hoje consome telenovelas? Apostando na afirmativa de que nenhum afeto é neutro ou apolítico, listo aqui alguns fenômenos sociais que podem ser percebidos através da suposta “esperança” do telespectador.
Nosso olhar às mídias é intoxicado pela xenofobia e pela aporofobia
As novelas de Manoel Carlos são eternas queridinhas do telespectador brasileiro, o que quase sempre reflete os números do IBOPE da Grande São Paulo. Claro, Maneco tem seus méritos: suas novelas, sobretudo as dos anos 1990 e início dos anos 2000 são ágeis, dinâmicas, bem dirigidas, recheadas de conflitos que nos deixam curiosos pelo desfecho, além de contarem com um texto brilhante, um elenco primoroso e personagens muito torcíveis. Mas é necessário reparar que existe um elitismo característico, não somente da época de exibição dessas obras, mas também da ambientação e das temáticas. Para quem consegue observar isso, opor-se a determinados pontos problemáticos da obra e continuar apreciando seu conjunto, não há mal algum. Contudo, o que mais se vê pela internet é o clamor do retorno de uma novela à la Manoel Carlos, não pela qualidade diegética do autor, mas justamente por essa ambientação e por “esses conflitos fúteis de gente rica do Leblon” (sic), em oposição a “ver mato e roça” (sic).
Reforço aqui que uma novela ter uma ambientação “regional” (vulgarmente falando, visto que existe a péssima mania do telespectador em perspectivar o eixo Rio-SP como “local neutro” de contação de história, enquanto o Norte, o Nordeste e o Centro-Oeste seriam o “regional” pitoresco) não a exime de críticas. Novelas podem ser boas ou ruins, independente de onde se passam. Todavia, é evidente que novelas que se passam fora do eixo Rio-SP começam em desvantagem perante ao nariz torcido do público, que revira os olhos diante do sotaque ou do figurino. Realmente, quando o sotaque é malfeito, inverídico, inverossímil ou simplesmente desrespeitoso, as críticas são muito bem-vindas. Porém, essa não é a questão, e vem deixando de ser cada vez mais, ao passo que reparações históricas são feitas e a Globo passa a escalar atores nordestinos para novelas passadas no Nordeste, por exemplo.
Ainda que No Rancho Fundo mereça críticas em relação à forma como retrata a região, os costumes e a vestimenta, às vezes parece que a felicidade do público em ver Garota do Momento se passando na Copacabana dos anos 1950 não seja sobre uma interrupção nessa representação de um Nordeste deturpado, mas sim, sobre uma interrupção na representação de qualquer Nordeste. E falando em felicidade, comemora-se muito nas redes sociais o fato de que a fila estimada das produções do horário nobre terá, por um bom tempo, novelas urbanas ou praianas, como é o caso de Mania de Você, que se passa em Angra dos Reis. O remake de Vale Tudo (2025), de Manuela Dias, está confirmado. Gloria Perez e Walcyr Carrasco estão garantidos com produções, sobre as quais não temos nenhum detalhe até o momento, apesar das “brincadeiras” na internet, que intitularam as respectivas obras como Pé de Chinesa (2025–26) e Ovo Frito (2026). Ainda que Bruno Luperi entre imediatamente na sequência, seja com o remake de O Rei do Gado, ou com uma obra inédita, será apenas para 2026–27.
É no mínimo curioso que a sequência de novelas urbanas não cause saturação no público, ainda que elas venham numa sequência de muito mais que duas. Lembrando que esse ode ao que é urbano também não é universal. Remeto à época em que Babilônia (2015) e A Regra do Jogo passaram em sequência e receberam uma enxurrada de críticas pela retratação de favelas em duas obras subsequentes. Claro que produções brilhantes se tornam exceções aos olhos implicantes do público, como foi em A Força do Querer (2017), que retratou tal ambientação e foi elogiadíssima, mas às vezes parece que uma obra precisa ser brilhante em todos os sentidos para se sobrepor à xenofobia e à aporofobia do público.
Nós criamos estereótipos e arquétipos de trama e de personagem
Algo que me incomodou profundamente, assim que saiu a primeira chamada de Volta Por Cima, próxima novela das 19h escrita por Cláudia Souto, foi a quantidade absurda de comparações — e o consequente tom pejorativo de algumas — entre a mocinha Madá (Jéssica Ellen) e a personagem Sol (Jê Soares/Sheron Menezzes), protagonista da primeira novela solo de Rosane Svartman, Vai na Fé (2023). O público nas redes sociais achou de bom tom associar as duas, por serem duas “protagonistas negras batalhadoras”. A comparação é absurda por inúmeros motivos: primeiro, a questão de colocar personagens negros em caixinhas, como se não tivessem complexidades e particularidades próprias; segundo, a pressuposição de que Rosane Svartman inventou esse “tipo” de personagem, seja para aclamá-la ou para apedrejá-la por isso; terceiro, a rapidez do telespectador em fazer essa associação entre Madá e Sol a partir de uma simples chamada de pouco menos de 2 minutos e meio.
Madá e Sol têm muitas diferenças. Sol era uma mulher de 40 anos, mãe de dois filhos, religiosa, seguia carreira artística e sua trama envolvia um trauma muito grande: ela não sabia se sua filha primogênita, Jenifer (Bella Campos), era filha do amor de sua vida, Ben (Isacque Lopes/Samuel de Assis), ou fruto do abuso de Theo (Matheus Polis/Emílio Dantas). Já Madá é uma moça no fim dos 20, chegando nos 30 anos, um pouco mais velha que a filha de Sol, que não tem nenhuma relação aparente com a música e nem com a religião, além de não ter um passado trágico. Ao contrário, seu maior trauma será no decorrer da novela, no contexto da atualidade: verá seu pai, Lindomar (MV Bill) morrer num acidente de ônibus do qual ela será salva por Jão (Fabrício Boliveira).
Vai na Fé divide opiniões nas redes sociais, mas é praticamente uma unanimidade entre o público do sofá e foi um relativo sucesso de audiência e crítica, então, nesse sentido, uma equiparação de Volta Por Cima com a obra dirigida por Paulo Silvestrini, mesmo que errônea, jogaria a seu favor. Entretanto, se isso for o único motivo para que o público dê uma chance à produção dirigida por André Câmara, a quebra de expectativa pode afugentar o público rapidamente, o que será injusto, caso a trama tenha outros atrativos.
O público é facilmente enganado por uma nova ambientação
Acho peculiar que a trama de João Emanuel Carneiro seja considerada tão diferente da de Bruno Luperi, só por não ser uma trama rural ou “regional”. Toda novela, obviamente, tem pontos comuns, afinal, querem se consolidar enquanto verdadeiros melodramas, com tramas que envolvem família, amores, rivalidades, triângulos amorosos, etc. Há as características universais, mas as semelhanças entre Renascer e Mania de Você não param por aí. Inclusive, a obra dirigida por Carlos Araújo é a quarta novela das 21h seguida a ter uma morte no parto que ocorre logo nos primeiros capítulos. Se antes de Maria Santa (Duda Santos), tivemos Agatha — que não estava morta de fato — em Terra e Paixão e Débora (Grazi Massafera) em Travessia (2022–23), agora teremos Cecília (Simone Spoladore), mãe de Luma. A morte de Cecília é o ponto de partida para o desenrolar da história, visto que é em meio ao luto que Alfredo (Fábio Assunção) toma coragem para contar a Molina que ele é o verdadeiro pai de Luma, sendo assim, assassinado pelo vilão.
Não somente isso, mas deixam de perceber outras repetições com outras novelas igualmente ou até mais criticadas. A repetição nos papeis de Chay Suede e Rodrigo Lombardi em relação a Travessia, não só do posto que ocupam, mas até mesmo no nome semelhante — Ari/Mavi; Moretti/Molina — pode ser um motivo de preocupação. Lombardi foi duramente criticado por fazer um vilão caricato no fracasso retumbante de Gloria Perez e os telespectadores temem que ele vá pelo mesmo caminho na obra de João Emanuel Carneiro.
Lembrando que essas repetições não representam nenhum problema concreto, mas podem ser uma dor de cabeça para aquela parcela dos telespectadores que fantasiam com algo muito diferente de tudo o que já foi visto na teledramaturgia, ou ao menos, diferente de tudo o que foi exibido em Renascer, somente baseado na ambientação. Inclusive, certas semelhanças são extremamente positivas. Digo isso pois, ao meu ver, Gustavo Fernández e Carlos Araújo, crias dos gigantescos Luiz Fernando Carvalho e Ricardo Waddington, são dois dos melhores diretores artísticos da Rede Globo. Veremos um diretor que entregou um trabalho cinematográfico impecável passar a tocha para outro diretor igualmente competente.
Os problemas idiossincráticos da obra de João Emanuel Carneiro
Como já disse, acho Carneiro um autor espetacular, que tem mais obras excelentes, que beiram a perfeição do que obras medianas para ruins. Entretanto, até mesmo em suas melhores novelas, há um problema insolúvel: os sofríveis núcleos paralelos. Geralmente, os personagens do núcleo de humor pouco têm relação com o núcleo principal, chegando às vezes a nem interagirem. Eu particularmente gostava do núcleo de Cadinho (Alexandre Borges) em Avenida Brasil, embora isso seja uma opinião impopular, mas os núcleos de humor de A Regra do Jogo, Segundo Sol e Todas as Flores eram indefensáveis. Em sua última novela, o autor conseguiu a proeza de chegar em seu ponto mais baixo na construção de núcleo de humor com os personagens Oberdan (Douglas Silva), Jussara (Mary Sheyla) e Dira (Valentina Bandeira), numa “pseudo-abordagem” do priapismo como causador de uma satiríase que beirava o racismo.
Não só isso, mas o autor também tem um problema na construção de personagens LGBTQIAPN+. Ainda que seja parte da comunidade, o autor confessou que tem dificuldades em criar e manter casais sáficos e aquileanos, sentindo-se pressionado pelo público conservador a intervir com uma “cura gay”. Em Mania de Você, existe o risco disso acontecer mais uma vez: Fátima (Mariana Santos) é casada com Robson (Eriberto Leão), que a subjuga; enquanto Diana (Vanessa Bueno) tem um relacionamento com Hugo (Danilo Grangheia), aparentemente, um parceiro de negócios de Mavi. Tanto Robson, quanto Fátima vão se apaixonar por Diana, mas a princípio, Diana só dará condição para Fátima, já que esta contará com a vizinha para se proteger do marido. Todavia, João Emanuel Carneiro já disse que ainda está em dúvidas se vai colocá-las juntas no final. Não seria surpreendente se ele fizer algum tipo de trisal entre Fátima, Diana e Hugo ou entre Fátima, Diana e Robson.
Em suma, concluo dizendo que Mania de Você, Volta Por Cima e Garota do Momento podem ser — como podem também não ser — excelentes novelas, melhores do que suas antecessoras, mas que a expectativa acerca das obras não está na qualidade, mas na esperança de que a próxima obra seja diferente da anterior. E caso não sejam, a expectativa recairá toda sobre as sucessoras, Vale Tudo, a próxima novela de Rosane Svartman e Êta Mundo Bom 2. Nesse sentido, o telespectador vai vivendo na hiância, tendo dificuldades de apreciar a obra em andamento em prol de algo que não se sabe como vai ser, ficando psiquicamente desamparado como a criança aos olhos da Psicanálise.