Não-monogamia e melodrama: novas formas de amar e dinâmicas dissidentes de afeto são compatíveis com as novelas brasileiras?
Não que eu precise de motivação para dissertar sobre esse tema, que me é tão caro enquanto alguém que ao mesmo tempo é noveleiro e não-monogâmico. Mas o fato de estarmos quase entrando na última semana de Família é Tudo (2024) me deu um arcabouço mais robusto de argumentação. Afinal, Daniel Ortiz, autor conhecido pela infinidade de triângulos amorosos em suas obras, tem, nesta reta final, o grande desafio de fazer com que os personagens dolorosamente divididos entre dois amores façam suas escolhas, priorizando uma das pontas do triângulo e imediatamente preterindo a outra. Esse desafio não é novo para Ortiz, que já fez o mesmo em Haja Coração (2016) e Salve-se Quem Puder (2020–21).
Triângulos amorosos e suas variações — quadrados, pentágonos — não são uma criação original do autor, que fecha sua produção mais recente com quase 21 pontos de média geral (longe de ser um sucesso, mas igualmente longe de ser considerado um fracasso, visto que elevou a média do horário em dois pontos). Um mocinho dividido entre dois amores é uma receita clássica para o aparecimento da expectativa do público, principalmente quando não se tem uma resposta óbvia de sua escolha. Claro, isso é capaz de gerar frustrações proporcionais à magnitude da expectativa, o que faz parte do processo democrático e é sina de todo autor, que tem de optar entre agradar gregos ou troianos.
Ainda que os personagens sejam retratados sofrendo em suas “escolhas de Sofia”, acabam chegando a uma conclusão no fim das contas: foi assim com Electra (Juliana Paiva), escolhendo Murilo (Henrique Barreira) em detrimento de Luca (Jayme Matarazzo); será assim com Lupita (Daphne Bozaski) quando ela decidir entre Júpiter (Thiago Martins) e Guto (Daniel Rangel), sendo Mila (Ana Hikari) o prêmio de consolação para o preterido pela mocinha guatemalteca. Na cena do dia 18/09, Lupita sofre ao confidenciar para Júpiter, com quem está namorando, que está dividida e não esqueceu totalmente Guto, seu ex. Independentemente das percepções do público em relação a quem merece o amor de Lupita ou de quem tem mais química — o que são visões totalmente válidas e pessoais — há de se convir que nenhuma das decisões seria descabida, pois ela teve uma construção com ambos os personagens. Júpiter, que começou a novela achando-a feia e esquisita por causa do padrão de mulher pelo qual se atraía, passou a ver beleza nela, “por dentro e por fora”. Já Guto, apaixonado à primeira vista, foi perdendo a timidez e a insegurança, criando coragem para se declarar para a amada.
Não há problema em uma personagem — assim como qualquer pessoa da vida real — perceber que gosta mais de um interesse romântico do que do outro. A questão é que naturalizamos isso como o único caminho possível. Não só enquanto sociedade, mas também enquanto difusão midiática, que submerge na cultura para ser construída e vira vetor dessa mesma cultura. O próprio texto da novela indica isso com clareza: Júpiter afirma que só quer Lupita se ela o quiser “por inteiro”, não tendo interesse em nenhum outro homem além dele, o que, curiosamente, vai contra o comportamento que teve ao longo de toda a primeira metade da novela, quando enganava várias mulheres bonitas, somente para seduzi-las. Na cena seguinte, Lupita confidencia a Chantal que acha que Júpiter tem razão em suas palavras, reafirmando que, independente da decisão que tomar, terá que se jogar nos braços do escolhido “por inteiro”, anulando toda a história que viveu com o outro parceiro.
Em Mania de Você (2024–25), acontece algo parecido, dessa vez num quadrado amoroso entre Mavi (Chay Suede), Viola (Gabz), Rudá (Nicolas Prattes) e Luma (Agatha Moreira). Na trama de João Emanuel Carneiro, Luma implora a Viola para que a amiga não volte a se relacionar com seu ex, Rudá, estipulando esta como a condição para que elas continuem a amizade e a parceria na gastronomia. Claro, a situação aqui é diferente da construída por Ortiz: primeiro, porque na novela das 21h, houve uma traição, um adultério explícito; segundo, porque, seja motivado pelos cortes exigidos por Amauri Soares, seja pelo defeito do próprio autor, o romance de Viola e Rudá foi muito mal construído, deixando dúvidas ao telespectador acerca da genuinidade do sentimento do caiçara e da química dos mocinhos. No entanto, isso não torna tão menos absurdo assim o pedido de Luma, especialmente porque esse clamor para que a amiga reprima seus sentimentos não foi feito de igual maneira para Rudá. Ou seja, será que só a amiga é assim tão safada?
Traições são um mote central atemporal nas produções de ficção — não só novelas, mas também séries e filmes — pois, convenhamos, ninguém gosta de ser enganado pelo parceiro, pela pessoa que confia tanto e na qual deposita uma série de expectativas, sejam algumas pessoais, e outras construídas por papeis sociais dificilmente negociáveis. A questão é: ainda que tenham sido descobertas novas formas de amar e de se relacionar com o outro de desejo, abordar essas formas é uma receita para o assassinato do melodrama e do gênero folhetinesco?
Essa pergunta não tem uma resposta certa, definitiva, universal, assim como quase nenhuma pergunta que envolva as relações humanas e o funcionamento da sociedade. Inclusive, apesar de ter minha opinião sobre o assunto, por ser um noveleiro não-monogâmico, além de um aspirante a roteirista que toca nesses assuntos espinhosos nos projetos que desenvolve, estou aqui também abrindo o debate ao leitor, para que ele interaja, a partir de suas próprias percepções e experiências.
Para tal, começarei descrevendo um pouco do que é o melodrama e do que é a não-monogamia, para assim refletir, ao final do texto, se esses universos são conciliáveis.
O melodrama
O gênero melodramático tem muitas origens, a depender do seu contexto artístico — há o melodrama da ópera, o do teatro, o do cinema e o da televisão. Focaremos mais nos três últimos. O melodrama se consolida como um gênero teatral na passagem do século XVIII para o século XIX, com René-Charles Guilbert de Pixérécourt (1773–1844). procurando enfatizar ações de dramaticidade exagerada, alternando elementos de tragédia e comédia e lançando mão de artifícios como combates e danças para a construção de cenas.
Se é que essa frase faz algum sentido, o melodrama é, por natureza, antinatural. As reações emocionais e sentimentais tidas pelos personagens no teatro melodramático não precisam ser verossímeis ou identificáveis a partir da nossa vivência cotidiana: a proposta é justamente que os nervos estejam à flor da pele e que o amor e o ódio estejam elevados à décima potência. Mocinhos e vilões desabam de chorar, gritam, quebram coisas, gesticulam, trocam tapas na cara, engajam em brigas físicas, depois se matam ou escolhem se perdoar e fazer as pazes, em cenas emocionantes. Existiu, durante um período histórico, um rechaço ao melodrama, considerado prato cheio para interpretações canastronas de personagens arquetípicas ao extremo — temos visita, Molina (Rodrigo Lombardi)?
A história do melodrama no cinema acaba por se bifurcar, pois considera-se que existe “o melodrama para o público masculino” — os filmes de ação, que resgatam os elementos de combate, de dança — e “o melodrama para o público feminino” — filmes de romance e de drama, com conflitos familiares, grandes paixões, traições e crimes passionais. A nível Brasil e América Latina, destacam-se também os melodramas de caráter político, em que discussões sobre a constituição das bases fundantes da nação, as disputas identitárias e as representações culturais são retratadas de forma a levar o público, intimamente formado por vários desses temas discutidos, às lágrimas. O cinema brasileiro aposta na crescente narrativa de que o afeto é político e o telespectador, lacrimoso.
De forma similar, os folhetins, desde a época da rádio, vêm bebendo dessas fontes. Famosas nos anos 1940, as radionovelas propunham trazer esse sentimentalismo exagerado por meio do sofrimento das mocinhas, figuras puras, ingênuas e inocentes, que precisavam comer o pão que o diabo amassou nas mãos de vilões e vilãs, até finalmente poderem ficar juntas de seus amados mocinhos — viris, fortes e corajosos. As novelas para a televisão, quando ainda eram performadas ao vivo, começaram abordando temas simples, básicos, sem nenhum tipo de compromisso intelectual. Ao passo que o Brasil é acometido pelo grande golpe que instituiu a Ditadura Civil-Empresarial-Militar (1964–1985), alguns dramaturgos passaram a ver necessidade de se explorar temas espinhosos, que satirizassem os militares e denunciassem de forma sutil o que se passava no país, como é o caso de Dias Gomes (1922–1999).
A Ditadura Militar inclusive instaurou uma censura pesada, que faria a “Bispa”, diretor geral da Globo, parecer um libertino. À época, estavam vedadas as representações de traição, cenas de sexo e beijos muito intensos. Também era quase impossível discutir abertamente temas como racismo, aborto, desquite/divórcio, gravidez na adolescência, métodos contraceptivos, religião, política partidária, doenças graves, drogas e homossexualidade. Os autores mais perspicazes conseguiam, entretanto, driblar a DCDP (Divisão de Censura de Diversões Públicas), fazendo com que tais assuntos fossem tratados como alegorias que, no fim das contas, queriam apenas levar o telespectador às lágrimas ou ao riso.
Mesmo em 1988, com o fim da DCDP e da censura, saímos desse período nefasto extremamente censurados, enquanto sociedade e nação. Raras vezes deu-se a sorte de que a teledramaturgia conseguisse propor debates que fossem contundentes e, ainda assim, fossem bem recebidos pela audiência. Isso não significa, de forma alguma, que as novelas não passaram por mudanças extremamente significativas: as mulheres ficaram mais fortes, mais seguras de si, mais empoderadas, menos submissas, enquanto os homens ficaram mais “bananas” e seu machismo, antes tão naturalizado, passou a ser motivo de escárnio ou usado para merchandising social de temas importantes, desde as desigualdades no mercado de trabalho, até a VPI (violência de parceiro íntimo) e o feminicídio; os personagens bons começaram a apresentar mais defeitos e os vilões começaram a apresentar mais humanidade e qualidades redentoras.
Os temas abordados pelas novelas acompanharam, de certa forma, os avanços políticos, históricos e sociais e tentam retratar mais fidedignamente a cotidianidade hodierna — destaco aqui as novelas e séries que ganharam um tom mais naturalista, típico de autores como Manoel Carlos, Lícia Manzo, Manuela Dias, Ângela Chaves e Lucas Paraizo. Contudo, existem elementos do melodrama que continuam atemporais, independente de tom, tema, ritmo, autor, direção ou elenco. Praticamente toda novela tem um casal principal ou um triângulo amoroso protagonista; vilões que cobiçam amor, dinheiro ou vingança e que entram em embates com os mocinhos; uma certa noção de “bem” e “mal”, ainda que um pouco menos maniqueísta; plots de traição, troca de pares, crimes passionais; histórias de conflitos familiares e geracionais; tramas atreladas à mobilidade socioeconômica, onde o pobre queria ascender socialmente, mas o rico não queria ficar pobre; muito choro e sofrimento, cenas de tapas, socos e chutes; cenas em velórios, casamentos e alas de maternidade no final da novela, etc.
Essa fórmula mágica das novelas também envolve compreender esse relacionamento ideal entre os protagonistas no lugar do amor romântico, em que eles terminam juntos, felizes para sempre, amando incondicionalmente um ao outro. Tal lugar é praticamente intocável e raramente é questionado pelos telespectadores, sobretudo quando o casal exala química e não tem outros concorrentes tão merecedores daquele amor quanto aquele par. Para compreender como isso funciona, é necessário ir para a segunda parte da explicação.
Amor romântico e monogamia
Acredito que não se pode definir precisamente o que é não-monogamia, porque não é um conceito encaixotável, nem uma prescrição que se vende como receita médica na farmácia, como uma solução de todo o mal. Como o nome sugere, no entanto, a não-monogamia é uma contracultura, uma negação de uma estrutura social, política, econômica, psicológica e afetiva que consagrou uma hegemonia no nosso mundo ocidental, em decorrência de três pilares fundamentais, que eu apelido carinhosamente como “Os Três Cs”: Capitalismo, Colonialismo e Cristianismo. Para ter, pois, pistas do que é não-monogamia, é necessário entender antes o que é monogamia. E antes ainda, entender o que é amor romântico, cuja origem é, inclusive, apartada da noção de casamento.
As informações trazidas aqui neste tópico são reproduzidas de parte do curso livre que Andreone Medrado deu para a plataforma da Brava, ministrado no dia 05/09/2024. Divulgação das redes sociais:
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Nos tempos mais antigos, o casamento era uma união entre clãs, famílias, reinos: era um jogo de interesses que propunha que a renda e a influência das famílias dos noivos fosse mesclada e os filhos dessa união eram meros herdeiros aos tronos, em vez do testemunho do “amor marital”. No século III, o imperador Claudio II baniu os casamentos, acreditando que homens casados tinham menos rendimento em combate, pois as responsabilidades familiares os distrairiam e fariam com que se tornassem soldados piores. O padre romano São Valentim continuou a realizar casamentos em segredo, argumentando que este faria parte do plano de Deus. O imperador, quando descobriu tudo, mandou prender e executar o padre, que, no cárcere, se apaixonou pela filha de um carcereiro. No dia de sua execução, o padre enviou uma carta à amada, assinada “do seu Valentim”. Daí, começou-se a prática de enviar cartões no dia 14 de fevereiro, que foi oficializado como Dia de São Valentim pelo Papa Gelásio no século V. Essa data é comemorada ao redor de quase todo o mundo, inclusive em outros países lusófonos como Portugal e Angola — curiosamente, no Brasil, graças ao João Dória (pai), a data comemorada desde 1949 é o Dia dos Namorados, no dia 12 de junho.
Já na Idade Média, o que imperava era a ideia de amor cortês, um amor sublime, puro, idealizado e não consumado. Esse período, retratado pelo período literário do Trovadorismo, também perspectivava o amor como algo trágico, que demanda sofrimento, angústia e provação. O casamento, ainda dissociado do amor romântico, tinha também o papel de regulamentar o comportamento amoroso e sexual, que deveria obedecer um dogma divino de pureza e castidade, sobretudo para as mulheres. Talvez nem precise ser dito que o casamento era uma forma de união legitimada para casais heterossexuais e heteronormativos, dentro de uma estrutura binária, em que só existia “papel do homem” e “papel da mulher”, sendo o primeiro de prover e proteger e o segundo de aceitar o subjugo e preservar o corpo e a alma para o esposo. Tais noções são aproveitadas e refinadas pelo capitalismo que viria a eclodir e a se consolidar durante as Grandes Navegações.
O Renascimento trouxe uma valorização do indivíduo e do conceito de subjetividade como algo internalizado. É talvez o período mais controverso na construção da ideia de amor romântico, pois toda a narrativa que legitima a existência de uma experiência única, pessoal e intransferível, apartada do tempo e do espaço é a mesma que acredita que exista um “amor verdadeiro”. O amor romântico vai se supondo gradualmente descolado do controle religioso, mas a moral cristã continua inculcada no imaginário dos povos ocidentais. Tanto é que no momento em que territórios de América, África e Ásia foram invadidos por colonizadores, as dinâmicas sociais e afetivas dos povos nativos foi totalmente invalidada, como uma blasfêmia, um ode ao carnal e uma representação falsa do amor, argumentos utilizados para animalizar esses povos. Não só isso, mas a noção de que os gêneros — binários — se completam continua fortemente presente.
Com a Revolução Industrial e os ideais iluministas de “liberdade de escolha individual”, consolidou-se a ideia de “casamento por amor” — amor esse, como nos explicita a filósofa Silvia Federici, que nada mais é do que trabalho não remunerado. As emoções e os sentimentos se tornaram mercadoria, pois agenciam práticas de subordinação das mulheres e dão margem para uma série de ideais falaciosos, como o arquétipo de “linguagens do amor”: pessoas (sobretudo homens) que têm como “linguagem do amor” os presentes talvez tenham um maior poder de compra e associam seus ganhos financeiros com a possibilidade de comprar o afeto dos seus pares através de bens materiais; pessoas (sobretudo mulheres) que têm como “linguagem de amor” os atos de serviço talvez estejam tentando entrar em conformidade com uma posição subalternizada, de ter que servir a família, fazendo jantares, limpando a casa e cuidando das crianças. Não se deve esquecer também que o Brasil é um país calcado num colonialismo profundo e complexo, em que mulheres negras e pobres — desde as amas-de-leite do período colonial até as babás de hoje em dia — são historicamente relegadas a terem como “premissas” de amor o cuidado com os filhos dos outros (das sinhás → das patroas), até que eles não precisem mais delas e concordem em apagar, inclusive psicologicamente, a importância que elas tiveram em suas criações.
A partir do século XIX — percebam a consonância com o período de popularização dos melodramas teatrais — o período literário do Romantismo passa a difundir o amor como irracional, intenso e trágico, ao mesmo tempo essencial para a vida humana, em que a disposição para as loucuras de amor seriam condição sine qua non para a sobrevivência de um relacionamento. Dentre as loucuras de amor, o ciúme doentio passa a ser sobrevalorizado, pois o ato violento motivado pelo ciúme nada mais seria do que “uma consequência trágica natural de um gesto de amor”.
A Psicologia hegemônica vem num momento posterior, já no século XX, para vincular a ideia de amor romântico ao ideal de realização pessoal, criando um imaginário do que seria um “relacionamento saudável”, o que, combinado com a Publicidade, faz com que o amor romântico e o casamento sejam postos num pilar essencial para a felicidade. Além disso, conforme foram surgindo os movimentos queer, reafirmando a sua existência — sobretudo a partir das lideranças trans e racializadas — a estratégia liberal para enfraquecer os questionamentos feitos por esses movimentos à estrutura social foi a de resumir a luta LGBTQIAPN+ ao simples “desejo de amar quem quiser” (o que de forma nenhuma é desimportante, mas é necessário frisar que é sobre muito mais do que isso), pois a ideia de casamento homoafetivo, apesar de ser uma realização pessoal vital para vários casais, representa também uma adequação a um modelo heteronormativo, higienizado, com bases fundantes numa “relação sacramentada”. Eva Illouz, nesse sentido, atenta para uma tendência perigosa: intimidade e autenticidade estão em negociação nestes relacionamentos, pois são construídos em cima de concessões, podas e reprimendas. Agir “erroneamente” pode incorrer numa das maiores punições — a de ser descartado e/ou trocado.
Também é necessário entender o quanto os movimentos neofascistas e anarcocapitalistas estão, através dos seus membros — conhecidos na internet como redpills e incels (celibatários involuntários) — se aproveitando desse discurso hegemônico para radicalizá-lo, o que é possibilitado graças à nossa estrutura patriarcal e racista. Existe a propagação de algo chamado Valor Sexual de Mercado, que mensura quão atraente uma pessoa é, quão digna de amor e de sexo ela pode ser. Isso pode parecer um machismo conspiracionista de adolescentes desocupados, mas está incutido dentro de todos nós, quando preterimos, em nossa vida afetiva, pessoas não-brancas, trans e travestis, com deficiência, gordas, etc. No meio gay, o mesmo ocorre também com gays que performam feminilidade (“afeminadas”), mais peludos, mais baixinhos e “menos dotados”. Podemos entender que somos um país perdido, quando tomamos enquanto modus operandi do amor da nação a frase que representa a obra de Gilberto Freyre: “branca pra casar, mulata pra foder e negra pra trabalhar”, pois há corpos hiperssexualizados para os quais não se oferta um cuidado para além da cópula e há corpos hipossexualizados que nem ao menos despertam o interesse do outro.
Nesse sentido, preterir o outro é fácil, visto que existe um imaginário sobre quais corpos são bonitos, quais mentes são brilhantes e quais almas são puras. No entanto, esse preterimento também não é total, visto que os amantes e as concubinas são parte fundamental da monogamia: engana-se quem pensa que traição é a fundação central da não-monogamia, pois a manutenção do “lugar de esposa” depende da manutenção do “lugar de amante”, e que isso também depende muito de gênero, pois o homem que trai é recompensado com elogios e perdão (vide todo o escândalo Iza e Yuri Lima) e a mulher que trai é punida com agressão física e assassinato, ou, na melhor das hipóteses, com os olhares tortos da sociedade.
Assim, entende-se que monogamia não é simplesmente uma dinâmica relacional ou uma escolha consciente, livre e esclarecida. Ela é um modelo de sociedade que mantém funcionando a instituição matrimonial e a narrativa do amor romântico como algo indispensável.
Não-monogamia, então, seria…?
Muitas dúvidas são suscitadas sobre o que seria não-monogamia então. Muitos confundem não-monogamia com poligamia, aquele modelo de haréns, em que apenas o homem pode se casar com várias mulheres, mas suas esposas não podem olhar para outros homens. Outros confundem não-monogamia com relacionamento aberto, que são namoros quase convencionais, em que há brechas previamente dialogadas para se relacionar com outras pessoas. Ainda tem quem pense que trisal é não-monogamia, ainda que o trisal seja fechado e não permita outras trocas afetivas. Muitos também acham que, se não-monogamia é negação do modelo monogâmico e do ideal do amor romântico, ela implica em uma “defesa da falta de amor”, um “ode ao desapego da modernidade líquida”, ou uma “orgia generalizada sem ‘responsabilidade emocional’”.
Primeiramente, não-monogamia não é sobre quantidade, mas sim, sobre qualidade das relações, sem necessariamente fazer uma separação tão brusca entre amizades e relações afetivo-sexuais. Nesse viés, compreende-se que uma pessoa não-monogâmica continuará a sê-lo, estando ou não num relacionamento e sendo ele um ou mais. Convenhamos que o discurso difundido pela monogamia, de que o amor romântico é o verdadeiro caminho para a felicidade, faz com que as pessoas se sintam pressionadas a estarem num relacionamento, o que é controverso — graças ao capitalismo, a população tem cada vez menos tempo de se dedicar a uma relação, visto que mal tem tempo e dinheiro para conciliar os âmbitos da própria vida (compromissos profissionais, rotina da casa, cuidado com a saúde e a estética, vida familiar, vida social, vida afetiva e sexual, etc.). Entende-se que, quando a não-monogamia propõe desatrelar a realização pessoal da necessidade de estar num relacionamento romântico, ela também permite uma aproximação com a realidade material das pessoas, pois o importante é que todas as pessoas com as quais alguém interage recebam dedicação de qualidade, de acordo com os critérios das partes envolvidas e não dos crivos alheios.
Segundo, a não-monogamia não é sobre anarquia afetiva. A diferença é que ela deixa de ser sobre a obediência às tradições e às convenções sociais — que privilegiam os homens cis, brancos, heterossexuais, etc. — e passa a ser sobre o respeito daquilo que faz sentido entre as pessoas dentro de uma relação, seja ela em que âmbito for. A decisão de se relacionar ou não com outras pessoas só pode ser tomada a partir de si, não podendo obrigar que essa decisão se estenda ao outro: é mais sobre o que se quer ou o que se deseja, e menos sobre o que se pode ou o que se deve fazer. Duas pessoas não-monogâmicas podem, inclusive, optar por se relacionar exclusivamente durante um período de tempo, caso aquilo faça sentido. O principal é que nenhuma decisão tomada pelas pessoas que ali estão se relacionando cause ressentimentos ou seja usada como argumento para chantagens baseadas em “argumentos” que só servem para criar um ideal de amor romântico que, mais que tudo, arranja frustrações e expectativas infundadas: “se você deseja outra pessoa, você não me ama de verdade” ou “se você quer espaço para si ou junto de outras pessoas, é porque não sou suficiente para você”.
Terceiro, que a não-monogamia não envolve uma clausura moral em um ideal de comportamento que se diga “saudável” e “evoluído”, mas que esteja fora da realidade material. Ainda que, segundo a perspectiva que eu defendo, não existam afetos “naturais”, fato é que a construção social em torno do ciúme faz dele um sentimento fortemente arraigado em nós, seja pelos motivos que forem. Corpos dissidentes, que estão mais propensos à rejeição na vida afetiva, sentem ciúmes que nem sempre estão associados a sentimentos de posse, mas sim à insegurança e ao medo de perder espaço na vida do outro. Esse sentimento não é um simples “bloqueio”, uma “crença nuclear” ou qualquer “trauma edípico internalizado”, como as psicologias hegemônicas tentam caracterizá-lo: pelo contrário, é um efeito colateral de uma vida de preterimento por estar fora de padrões de beleza, inteligência, e pressuposições de pureza, caráter ou higiene — afinal, se somos um país moralista que considera o sexo não-marital como algo sujo, promíscuo, que se faz às escondidas e, ao mesmo tempo, somos um país transfóbico que relega uma parte considerável da nossa população trans e travesti aos trabalhos de prostituição e pornografia, como poderíamos, hipocritamente, culpabilizar a “psique” de uma pessoa trans que “não se acha digna de amor”?
A questão é que o ciúme compõe o mundo colocado. Por mais que alguns monogâmicos afirmem que os não-monogâmicos os condenem por sentir ciúme, o que acontece na verdade, no meio afetivo não-mono, é um acolhimento do próprio ciúme e uma disposição em trabalhá-lo de uma outra forma. Passou da hora de entender que o ciúme não é pretexto para matar, agredir ou cercear o outro do convívio social, até porque concordar com isso é escolher quem estará apanhando e morrendo mais — mulheres pretas e periféricas.
E finalizando o tópico, é importante frisar que a ideia não é “converter” ninguém à não-monogamia, até porque a conversão é uma atitude cristã. O que está em jogo aqui é evidenciar que existem outras formas de ser e de amar no mundo.
Melodrama e amor dissidente: dá samba?
Essa pergunta não tem resposta definida. Afinal, isso, assim como qualquer mudança social, é um esforço conjunto: precisa ser do interesse da audiência acolher algo diferente daquilo que está acostumada; precisa ser do interesse — e da competência, pelo amor de Deus! — do autor, em abordar de forma respeitosa uma forma diferente de amar; precisa ser do interesse das emissoras darem sinal verde a histórias escritas por e para esse público não contemplado pelo amor romântico tradicional.
Essa mudança demanda que várias outras barreiras sejam quebradas: se até pouco tempo atrás mal tínhamos protagonistas negros e esse avanço está acontecendo, ainda há muito o que ser feito. Claudia Souto, criadora e escritora de Volta Por Cima (2024–25), alegou em entrevista que, antes de ter escalado Jéssica Ellen para ser Madá, desejava escrever a família da mocinha como amarela, sino-brasileira. Até hoje, apenas três intérpretes amarelos foram protagonistas em novela: Rosa Miyake, em Yoshico, Um Poema de Amor (1967); Jui Huang, na controversa Negócio da China (2008–09); e Ana Hikari, em Malhação: Viva a Diferença (2017–18). Protagonistas indígenas então, nunca tivemos. Também é difícil puxar da memória algum protagonista gordo. Em relação aos protagonistas LGBTQIA+ em telenovelas, temos somente Helena (Tamara Restier), da novela da RecordTV, As Professorinhas (1968); algumas das protagonistas da Malhação de Ana Hikari — e, por extensão, de As Five (2020–24) — ; Angel (Camila Queiroz), em Verdades Secretas II (2022), e três das sete protagonistas do remake de Elas Por Elas (2023–24): Carol (Karine Teles), bissexual; Natália (Mariana Santos), lésbica; e Renée (Maria Clara Spinelli), uma mulher trans. Percebam que grande parte desses protagonistas (com a exceção de Angel) dividem o destaque com outros personagens.
Talvez seja difícil ver essas formas de amor estrelando o protagonismo na teledramaturgia num futuro próximo, dado que aqueles que estampam os primeiros nomes nos créditos das aberturas pertencem a figurinhas “merecíveis” de amor, que têm, graças a suas belezas e seus corpos padrão, o mérito da verossimilhança quando se tratam das peripécias do amor romântico.
Claro que existem exceções na representação de relações na TV. É como dizem, são as exceções que ditam as regras. No entanto, isso não é uma garantia de que essas “novas dinâmicas afetivas” não venham recheadas de problemáticas. Prova disso são os ‘trisais’ que João Emanuel Carneiro vive montando em suas novelas para operar uma “cura gay” em alguns dos seus personagens, como fez com Roni (Daniel Rocha) em Avenida Brasil (2012). Nesses momentos, vemos que representação é totalmente diferente de representatividade.
O final de Família é Tudo promete mais um trisal, dessa vez entre três homens: Toni Linguinha (Rafael Infante), Kleberson (Aleh Silva) e Haroldinho (Guilherme Canellas) vão ficar juntos, segundo o Purepeople, com direito a selinho triplo. É necessário analisar como isso será abordado — sem tanta expectativa, já que Daniel Ortiz fez uma representação estereotipada de personagens gays durante toda a exibição — mas, de qualquer forma, é um pequeno passo ver, mesmo que com personagens coadjuvantes, dois jovens negros gays afeminados vivendo o amor de formas não-convencionais. Ainda assim, parece que a situação do triângulo amoroso de Júpiter, Lupita e Guto, trazida no início do texto, vai ter um desfecho tradicional, em que ela escolherá um ou outro. Ainda que não tenha nada decidido, principalmente porque o autor depende de enquetes do Instagram para desenvolver seus roteiros, o público tende a torcer para que a guatemalteca termine a história ao lado do personagem de Thiago Martins, o que é provável, visto que ele é o protagonista da trama. Mas é de pensar: não obstante o físico escultural de Daniel Rangel, Guto é feito para ser um nerd de óculos, um personagem franzino, tímido, desajeitado, desinteressante e, por mais que tenha passado por certa transformação de personalidade, continuou tendo a mesma aparência. Claro que a química conta em muita coisa, mas será que a torcida do público (e a provável escolha de Lupita) não é influenciada por esses fatores? E será que não é sintomático que o “prêmio de consolação” do perdedor seja uma personagem amarela?
Creio que seria impossível — e eu opinaria inclusive que nem seria uma boa ideia — que uma novela ou uma série inteira fosse baseada num universo em que as dinâmicas afetivas todas se baseassem na não-monogamia, em toda a sua multiplicidade. Creio que o retrato de relacionamentos monogâmicos é necessário para pautar uma série de debates, positivos e negativos, acerca do que entendemos por romance. Além do que, uma obra de ficção que opere nesse universo, estaria mostrando nada mais, nada menos do que um universo paralelo, totalmente incompatível com a realidade que vivemos. E ser não-monogâmico num mundo monogâmico não é fácil, assim como ser LGBTQIAPN+ num mundo cisheteronormativo e assim sucessivamente.
Todavia, o que podemos aceitar por agora é uma situação de coexistência, em que sejam exploradas outras formas de amar, em conjunto com a tradicional. Não é problema que os personagens optem por um em detrimento de outro, ou que queiram se relacionar com uma pessoa só. O problema é que acreditem que isso é uma regra, um atestado de caráter, como se a exclusividade afetiva representasse plena dedicação ao relacionamento, e que essa narrativa seja passada ao telespectador como a única possível e correta.
Finalizo o texto devolvendo a mesma pergunta do título para o leitor: existe espaço para a dissidência amando nas novelas? Na minha concepção, esse espaço é conquistado por nós mesmos, nós é que ditamos o que queremos ver na televisão. E, como alguém que quer ver isso acontecer, aconselho aos autores e à equipe da Globo: o mundinho não-monogâmico também tem conflitos deliciosos que renderiam verdadeiras novelas, com direito a muito choro e gritaria.