Humanitas: amor, loucura e comédia

Renata Amorim
6 min readJun 5, 2024

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DE ASSIS, J. M. M. Quincas Borba. Terceira edição. O Estado de S. Paulo — São Paulo: Klick Editora, São Paulo 1997.

Resenha literária

“Há, nas coisas todas, certa substância recôndita e idêntica, um princípio universal, eterno […]”

Nesses termos, Quincas Borba descreve Humanitas. Sim, aquele amigo que, muito provavelmente, você conheceu em Memórias Póstumas de Brás Cubas. Mas, aqui, não vamos nos ocupar dele, vamos falar de um terceiro, que é amigo de Quincas. Ele se chama Rubião…(pausa para conter o riso). É um nome que soa gracioso, mas ele não é nenhum palerma. Infelizmente, a perspicácia também não é um de seus dotes mais notáveis. Mas vamos a ele.

Pedro Rubião de Alvarenga é um humilde professor primário de Barbacena, no interior de Minas Gerais. Por sorte ou capricho do destino, tornou-se o último discípulo de Quincas Borba e entendedor final de sua filosofia. Depois de acompanhar os últimos desvarios do amigo, tomou notícia de que havia falecido na casa de Brás Cubas por uma febre. A partir de então, Rubião dá seguimento a uma trama de sinuosos desafios, talvez explicáveis pelo Humanitismo.

O Humanitismo é uma filosofia concebida por Quincas Borba. Alguns aspectos podem remeter ao Estoicismo, como a sua resignação perante os processos da vida que têm a morte como supressão, a fim de alimentar o princípio indestrutível humanitista — sim, humanitista, e não humanista como você pensou. Mas é mais plausível a interpretação dessa nova doutrina como uma sátira do autor às correntes filosóficas em voga no séc. XIX, como o Positivismo e o Darwinismo Social (GUIMARÃES, 2019). Ambas pautavam ideias de aprimoramento da sociedade através da eliminação de sujeitos menos adeptos ao ambiente. Trata-se da conhecida lei do mais forte.

Ao se tornar o herdeiro universal dos bens do amigo, nosso protagonista também parece herdar não só da filosofia de Humanitas, mas também da sina das típicas personalidades machadianas: as desditas de amores incautos, perfídias de poder e política e as peripécias enigmáticas — que nos deixam na dúvida se aconteceram mesmo ou se foram apenas devaneios do protagonista.

Ele toma posse dos bens deixados e resolve se mudar para o Rio de Janeiro, a então capital do Império. Mas, antes de tudo, teve de atender à condição testamentária: zelar pelo cachorro do falecido, também chamado Quincas Borba. Logo no início da transição, durante a viagem de trem, Cristiano de Almeida Palha, o Palha, como será referido ao longo do romance, aproximou-se de Rubião. Ele e a esposa, Sofia, se apresentam e, depois de uma longa conversa, tornam-se amigos inseparáveis (ou, até que a insanidade e a penúria os separem). O triângulo começa aqui.

Instalado em sua mansão em Botafogo, após algumas ocasiões de socialização, Rubião se dá por vencido pelos olhos de Sofia. Ao mencionar que “parece que ela os compra em uma fábrica misteriosa”, o narrador-autor deixa indícios de um traço típico das mulheres de suas tramas. É perceptível uma fixação pelos olhos furtivos das personagens de Machado. Em suas outras personagens, ele canaliza através dos olhos todo o fetiche feminino, que vai da candura a uma sensualidade capciosa, partindo daí para dar os contornos de personalidade, afetos e desejos delas. Assim o faz com Capitu, em Dom Casmurro, quando fala do olhar de ressaca. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, os olhos de Eugênia denunciam as maneiras plácidas da jovem, com seus olhos “tranquilos e lúcidos”; enquanto Virgília tem como marca o “olhar travesso”. Está provado: os olhos são as janelas da alma, como diz o provérbio popular.

Apesar de ser novato nos círculos sociais abastados, a capital do Império não é um panorama inédito para o nosso amigo. Passagens adiante, ele dá mostras de que já esteve nela durante a juventude, quando assistiu a um enforcamento de um rapaz negro, acusado de assassinato…na Rua dos Ourives. E, nessa roda de reminiscências e ilusões, Rubião vai firmando os pés e o coração nas ruas do Rio de Janeiro, vai se inebriando com os olhos de Sofia e se envolvendo profundamente com o Palha e os novos amigos. Um deles é Carlos Maria, um jovem pedante que desperta o interesse de Sofia; e o Dr. Camacho, dono de um jornal e inserido na política, que vai tentar alçar Rubião a uma candidatura pública.

A inclusão de outros núcleos paralelos ao triângulo (que só existe na cabeça de Rubião) confere um grau interessante à história. Maria Benedita, Fernanda e Teófilo são alguns desses personagens acessórios no clímax. Fernanda cumpre um papel mediador em vários momentos. Primeiro, ao redefinir o status amoroso de Maria Benedita e, depois, ao auxiliar nos cuidados a Rubião em uma fase posterior da trama. Maria Benedita contrabalança o possível enredo entre Carlos Maria e Sofia. Teófilo, por seu turno, é mais um daqueles personagens cuja vida é vocacionada ao trabalho. No caso dele, a Política!

Resumindo os desfechos em allegro moderato, Maria Benedita se casa com Carlos Maria, mas a contragosto de Sofia que pretendia casá-la com Rubião. O que se percebe é que ela o repudia, mas busca mantê-lo próximo, tentando empurrá-lo para a prima. E, na medida da infelicidade de Sofia, crescem as esperanças de Rubião. No entanto, logo se dissipam, pelo menos temporariamente. Um bilhete intruso acaba caindo em suas mãos e passa a alimentar encontros, que concorrem com conversações e terminam por insinuar intimidades maiores entre Sofia e Carlos Maria. Mas não passam de mais um equívoco intencional, restando a nós, leitores, a dúvida ou o remorso.

Corta para a psiqué de Rubião. As fantasias com Sofia se tornam tão cotidianas que, em conjunto com as promessas políticas, vão moldando uma megalomania irremediável. Quando ele não consegue mais distinguir a fantasia da realidade, chega às raias da loucura, assim como o falecido Quincas. Após ser internado e perder todos os bens, Rubião retorna ao cenário original dessa história, Barbacena, acompanhado de seu cão, Quincas Borba. Ele compreende e repete o mote de Humanitas: “Ao vencedor, as batatas!”.

Conclusões

A leitura das obras machadianas sempre será uma experiência de grandes ganhos, arrebatadora em cada palavra. Embora se distinguisse dos seus contemporâneos por não adornar o texto com palavras rebuscadas para a época, o texto é profuso em recursos estilísticos e semânticos, mas de uma maneira que não compromete a clareza e ainda nos cativam. É inevitável não querer seguir descobrindo mais sobre o que o narrador vai contar do personagem

A jornada de Rubião pode ser uma alusão ao princípio geral que rege a filosofia de Quincas Borba. Não cabe ser lida como um malogro tampouco como um caso de sucesso ilusório. O romance coloca em cena os processos que permitem a continuação da vida, na qual, mediante as desventuras de alguns, outros conseguem se favorecer. Isso, na prática, resume parte do que é Humanitas. Ainda, é perceptível uma replicação da fórmula do capitalismo levado a termo nas relações sociais, pois em busca de lucro, status e poder, alguns personagens se aproveitam das tendências solidárias do personagem principal, bem como de suas paixões mais descabidas.

Se for admissível uma divagação, vale denunciar mais um traço característico das narrativas de Machado: a loucura ou o mero indício dela. Mais uma vez, o autor nos faz imergir nas ideações do personagem e, de forma sutil, vai plantando a dúvida sobre a possibilidade do que é real ou ilusório. Assim como se vê uma faísca de insanidade em Bentinho, de Dom Casmurro, no saudoso Dr. Simão Bacamarte de O alienista, aqui, a loucura é recorrente e afeta a personagem central.

O fim do embate de relações tendeu para o que estava fadado a ser: aos que se sobressaíram na trama de interesses e afetos, o prêmio foi continuarem suas vidas, ignorando a existência de conflitos, mas agindo conforme a sua lógica de autopromoção. Aos que se embeveceram ou seguiram sozinhos, é reservado o consolo da ilusão, do triunfo imaginário. Como anunciara Quincas, o legado é que “ao vencedor, as batatas!”

REFERÊNCIAS

As fontes foram consultadas apenas para confirmação de marcos teóricos e sociais.

GUIMARÃES, H. S. In: USP. [Livros da Fuvest] Quincas Borba (Machado de Assis). YouTube, 07 de nov. 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=16SzotpYQM8 Acesso em: 13 jun. 2024.

KIYOMURA, Leila. Jornal da USP. “Quincas Borba” expõe novas e velhas formas de exploração. Disponível em: https://jornal.usp.br/cultura/quincas-borba-expoe-novas-e-velhas-formas-de-exploracao/ Acesso em: 13 jun. 2024.

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Renata Amorim

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