Para Santiago Sob a Chuva (Parte 1 de 4) — Aprendizados de quem se põe à caminhar

Renata Mello Feltrin
6 min readJan 12, 2023

Chegamos em Lisboa, Portugal, com sol e pegamos o trem para Braga. No caminho, faltando meia hora para o destino, ela chegou e nos encontrou pela primeira vez: a chuva. Veio forte, escorria das nuvens densas e escuras que vinham se formando lá fora. Nas janelas do trem, as gotas corriam grossas e rápidas, intensas. De carro, entre Braga e Valença, continuou a nos acompanhar, e quando saímos pra jantar, mais fraca, permanecia por ali. Quando planejei a peregrinação que iríamos fazer, a maior atenção foi sobre a época, já que enfrentar chuva era a única coisa que eu não gostaria que acontecesse. Escolhemos o outono, período normalmente com chuvas escassas. Dez dias antes de embarcarmos, comecei a checar a previsão do tempo e não acreditei no que vi. Chegando perto da viagem, todos os dias sinalizavam chuva intensa, em todas as cidades mapeadas para passarmos. E assim, antes de partir eu me sentia ansiosa e frustrada.

Era a segunda quinzena de outubro de 2022, eu e meu marido Rogério caminharíamos a partir da Valença em Portugal, por 125km em 6 dias até Santiago de Compostela na Espanha. Faríamos o trecho final da rota pelo Caminho Português Central, que sai de Lisboa e tem 610 km no trajeto completo. O desejo de fazer essa peregrinação surgiu em abril de 2016, quando estivemos pela primeira vez conhecendo a cidade. Lembro do impacto que a cidade medieval, entre muralhas, causou em mim. Não me esqueço dos sinos da catedral tocando a cada meia hora, e de ver a chegada dos peregrinos a partir de um ângulo privilegiado: a janela da nossa pousada, que ficava bem na rota do caminho, na parte histórica da cidade. À noite, fomos à missa dos peregrinos e me emocionei ainda mais. A catedral lotada e a cerimônia final do turíbulo gigante que todos esperam realmente é algo difícil de descrever sem viver. Naquele momento, prometi a mim mesma que um dia faria o famoso Caminho de Santiago de Compostela: chegaria peregrinando naquele mesmo lugar. Era só uma questão de tempo.

Foram 6 anos de espera e o tempo chegou. Eu estava preste à viver uma das experiências mais intensas e marcantes da minha vida. É bem verdade que não estava indo peregrinar por um pedido específico. Não tinha um milagre a requisitar, não estava em busca de nenhuma resposta para algum problema existencial, não estava angustiada, nada disso. Mas uma coisa eu estava: curiosa. O que seria essa caminhada? O que faria em mim? Quem seria eu depois dela? Terminaria igual? Seria fácil, difícil? Só vivendo para saber; e no fundo eu queria mesmo era isso: viver intensamente essa experiência, fosse ela o que e como fosse.

Começar pode ser mais difícil que terminar

Dormir antes da manhã de início do caminho foi um momento cheio de ansiedade e expectativa. Tantos meses de preparo e finalmente estávamos ali, na linda cidade murada de Valença no norte de Portugal, prontos para começar nosso propósito. Como quase tudo na vida, começar algo inédito, cuja dinâmica você não conhece, mesmo que você se prepare antes, é um desafio. De verdade, olhando para trás hoje acho que começar foi mais desafiador que terminar.

Saímos na rua e era como se fosse mesmo madrugada: tudo escuro, ninguém em lugar nenhum, nada aberto. Fomos até a Igreja que havia perto da pousada. Quem sabe ali poderíamos pedir uma benção para a peregrinação e conseguir o primeiro selo na nossa credencial peregrina rumo à Compostela? São necessários pelo menos 2 selos por dia adquiridos ao longo do trajeto para demonstrar a veracidade da caminhada e percurso. Igreja também fechada. E novamente começou à chover. Decidimos começar então o percurso e tomar café em Tui, próxima cidade.

Vestidos com as capas de chuva, fomos até o lugar em que vimos a primeira seta amarela, sinal que indica o percurso do caminho. Começamos a seguir a direção que ela apontava, mas aí nenhuma outra seta mais apareceu. Andamos, andamos, andamos e nada. Voltamos para o mesmo lugar e repetimos em círculo o percurso. Procura no Google, não acha, aparece um carro, pedimos informação: “vai até o fim da muralha, na pousada no final vira à esquerda e desce as escadas depois disso.” Chegamos no local e vimos uma seta amarela mas que apontava pra um túnel escuro sem saída. Voltamos para trás.

Amanheceu e mais gente passou a circular nas ruas. Seguindo novas orientações voltamos àquele ponto do túnel ao lado da pousada. Com mais luz vimos que outra seta amarela no fundo do túnel apontava para o lado, demos 5 passos a mais do ponto que havíamos chegado antes e ali estava a saída. Uma enorme e larga escada nos tiraria dos muros de Valença e nos levaria até a ponte para chegar em Tui. Quase não acreditamos! Olhamos no aplicativo que colocamos para registrar o percurso no começo da caminhada: havíamos na primeira hora caminhado 5km sem sair do lugar, em círculos. Naquele momento entendi o primeiro aprendizado da jornada que estava apenas começando.

É mais que um passo após o outro, é sobre confiar sem ver

Caminhar não é apenas sobre um passo após o outro, é muitas vezes sobre confiar no que você não vê. Como na dinâmica da vida, nem todas as perspectivas e caminhos são claros do nosso ponto de vista. Seguir sem saber de tudo, sem precisar dominar todas as informações mas confiando no processo e nas realidades que concretizam a vida, construídas, direcionadas e até mesmo validadas por outros indivíduos de boa índole é chave. Confiar é sobre seguir mesmo sem ver. E isso você também pode chamar de fé. O caminho sempre esteve lá, nós não estávamos ainda no caminho.

Naquele começo não estávamos entregues ao processo, não havíamos entendido a dinâmica, nem compreendido que grande parte do caminhar era sobre confiar em quem veio primeiro, e pintou uma a uma milhares de setas amarelas por centenas de quilômetros, de forma generosa, para que naquele momento pudéssemos apenas seguir crendo no processo. Havíamos acabado de compreender que a dinâmica de apenas seguir as indicações amarelas, sem precisar de nenhuma ajuda de GPS, internet, ou qualquer outro recurso, nos ensina que confiar sem enxergar é um ato precedido pela generosidade e honestidade de outros. E que essa dinâmica está na base da nossa humanidade.

Quando vivemos momentos e situações de muita dificuldade em confiar é não só porque sentimos falta de honestidade no outro, mas também de generosidade. Na generosidade cabe cuidado, atenção, entrega, doação. Quantas pessoas, em suas realidades de angústia e confusão, poderiam seguir mais fácil se outros com generosidade fornecessem o que é preciso e possível à elas?

Cruzando o rio e a fronteira

Começamos a avançar sobre a ponte, dia já claro, o visual incrível do rio e de Valença ao fundo, as setas uma atrás da outra nos mostrando o caminho. Quando chegamos lá do outro lado, já era Espanha. O que eu viveria nos próximos dias em solo da Galícia me ensinaria muito mais, me modificaria em alguns aspectos para sempre. E agora eu seguia confiante mesmo sem fazer idéia do que viria e mesmo sob à chuva.

Sobre a Autora: Renata é casada com Rogério Feltrin desde 2005 e juntos percorreram 125km do Caminho de Santiago na Galícia entre 19 e 24/10/2022. São pais de Carolina 9 anos e Mariana 12 anos, que atuou como ilustradora desse projeto.

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Renata Mello Feltrin

Renata Feltrin é mãe, construtora de futuros e apaixonada por viajar como uma atitude de curiosidade e descoberta sobre si mesma, o mundo, pessoas e culturas.