Dualidade Moral: por que fãs de futebol perdoam ídolos criminosos e julgam anônimos?
um olhar crítico sobre as normas morais que regem a idolatria
1.Introdução
2. O Futebol como Religião Secular
3.Cultura da Masculinidade e da Idolatria no Futebol
4. Rituais de Purificação e Redenção no Futebol]
5. Conclusão
6. Referências
1. Introdução:
A cultura do futebol é um espaço onde, muitas vezes, a idolatria se sobrepõe ao comportamento ético. Um fascinante intrigante que observamos é a maneira como torcedores, de modo geral, está disposto a perdoar jogadores envolvidos em crimes, como o goleiro Bruno, Cuca e Robinho, enquanto se mostra mais firmes e críticos em relação a outros casos de violência.
Primeiramente, há uma forte identificação emocional entre os torcedores e seus ídolos, o futebol não é apenas um esporte; ele carrega uma carga simbólica que envolve pertencimento, orgulho local e uma conexão intensa com a trajetória dos jogadores. Quando um jogador se destaca, ele não representa mais apenas o si mesmo — ele se torna o símbolo de algo maior, seja o clube, a cidade ou até a comunidade de fãs, cria isso uma disposição uma disposição emocional para perdoar suas falhas pessoais, especialmente se ele continua desempenhando bem em campo, outro ponto importante é a separação entre a vida pessoal e a performance esportiva , para muitos torcedores, o que importa é o que o jogador faz dentro das quatro linhas, independentemente do que acontece fora deles, essa visão dicotômica, que separa a moralidade da vida pública da privada, facilita o perdão, pois os feitos esportivos acabam por “compensar” os erros cometidos na vida pessoal, essa dinâmica acaba criando uma lógica de que o talento de um atleta vale mais do que seus comportamentos infracionais.
No entanto, precisamos questionar o papel do machismo estrutural nessa questão, muitos dos crimes cometidos por jogadores que foram perdoados pelos fãs estão relacionados à violência contra mulheres, o que nos leva a reflexão sobre como a sociedade, em geral, apesar desse tipo de crime . Em contextos profundamente patriarcais, a violência de gênero é frequentemente minimizada, naturalizada ou até justificável, assim, quando figuras como Cuca, Bruno ou Robinho estão envolvidas em crimes dessa natureza, há uma tendência em relativizar suas ações ou até buscar “explicações” para os seus atos. Além disso, as próprias instituições do futebol — clubes, federações e a mídia — desempenham um papel fundamental nesse processo de perdão, quando essas entidades dão a oportunidade de reabilitação para esses jogadores, isso envia uma mensagem poderosa: o sucesso no esporte pode superar o comportamento criminoso, ao trazer esses jogadores de volta aos campos, os clubes e a mídia constroem uma narrativa de redenção e expiação, facilitando o perdão por parte dos fãs.
Por outro lado, quando outros violentadores não pertencem a esse contexto de idolatria ou fama esportiva, a sociedade tende a ser mais rígida em suas abordagens, o que revela a desigualdade de tratamento.afinal, estamos falando de um espaço onde o poder e a riqueza de um jogador muitas vezes se sobrepõe à moralidade, a predisposição dos torcedores de futebol para perdoar seus ídolos, as infrações não são fruto de uma escolha consciente ou isolada, mas sim resultado de um conjunto de fatores que envolvem a idolatria esportiva , a separação entre a vida pública e privada , o machismo estrutural e a narrativa de redenção promovida pelas instituições do futebol. Essas dinâmicas fazem com que, no contexto do esporte, o perdão seja confidencial, especialmente quando os crimes cometidos envolvem violência contra mulheres, perpetuando a impunidade e a desigualdade de tratamento entre os crimes, o futebol, como manifestações culturais, reflexões não apenas o esporte, mas as estruturas sociais, políticas e simbólicas mais amplas que moldam as sociedades. Ao observarmos casos emblemáticos de jogadores envolvidos em crimes graves — como o goleiro Bruno, Cuca e Robinho — e o perdão oferecido por parte dos fãs, é essencial recorrer à antropologia para compreender as raízes profundas desse comportamento coletivo.
2. O Futebol como Religião Secular
A religião secular busca compreender as funções culturais contemporâneas, como o futebol, fornecer estrutura simbólica e emocional na vida das pessoas, modificando ou complementando formas tradicionais de religiosidade. O antropólogo Victor Turner (1920–1983) argumenta que o conceito de “comunitas” — uma experiência de união social e transcendência das divisões cotidianas — é central para entender tanto a religião quanto o o estádio, nos estádios, assim como o futebol em templos, os torcedores se reúnem em rituais que transcendem fronteiras sociais e culturais, gerando um senso de unidade e pertencimento e Clifford Geertz (1926–2006) observa que eventos rituais reafirmam valores culturais, e o futebol, enquanto ritual secular, desempenha função semelhante, especialmente em competições importantes , se os eventos se tornam sagrados onde a paixão pelo clube é celebrada, e os ídolos ocupam papéis semelhantes às figuras sagradas, as coisas feitas são vistosas como “milagres”.
O conceito de identidade coletiva é essencial para entender o futebol como religião secular, o sentimento de pertencimento a uma comunidade de torcedores tem um paralelo claro com a pertença religiosa; a liderança ao tempo cria um “nós” em oposição a “eles”, semelhante ao que ocorre em muitas tradições religiosas, as comunidades criam fronteiras simbólicas entre o “puro” e o “impuro”, evidente na identificação dos rivais como “inimigos” e na defesa incondicional de ídolos, mesmo diante de ações condenáveis, assim, ídolos, mesmo manchados, são vistos como parte “pura” da comunidade futebolística, facilitando sua reintegração e perdão. Diferente das religiões tradicionais, a religiosidade secular do futebol é construída sobre símbolos e experiências humanas, contudo, ela gera seus próprios “deuses” e mitos, com jogadores lendários sendo venerados como santos, e suas histórias transcendendo a realidade do jogo, rituais estruturados, como a entrada em campo e os cânticos das torcidas, reforçam a natureza ritualística do futebol, essas experiências são comparáveis às cerimônias religiosas, onde cada elemento possui significado emocional e simbólico profundo. O conceito de futebol como religião secular também explica a facilidade com que os torcedores perdoam seus ídolos, cujas falhas são vistas como “pecados” passíveis de redenção. Assim como nas religiões tradicionais, onde os pecadores podem ser perdoados, os jogadores recebem “redenção” por meio de suas performances.
Além disso, o futebol promove uma narrativa de ressurreição e redenção, onde jogadores em desastres podem ser “salvos” por seu retorno triunfal ao esporte. Essa lógica de redenção, aliada à idolatria do torcedor, cria uma base simbólica para o perdão, onde ídolos, ao demonstrarem arrependimento (mesmo que superficial), podem ser aceitos de volta pela comunidade. O retorno ao futebol é, assim, tratado como um ritual de reintegração.
3.Cultura da Masculinidade e da Idolatria no Futebol
O futebol, como características culturais globais, é profundamente moldado pela noção de masculinidade, refletindo traços de uma cultura que valoriza atributos associados ao masculino, como força, competitividade e resistência. Esses elementos são fundamentais na construção da idolatria no futebol, onde os jogadores são vistos como representações máximas da masculinidade, influenciando a forma como são perdoados, mesmo diante de crimes graves, para compreender a cultura da masculinidade no futebol, é necessário considerar a construção histórica do futebol esporte como um domínio quase exclusivamente masculino, Raewyn Connell (1944) introduz o conceito de masculinidade hegemônica, que descreve a valorização de características masculinas, como agressividade e domínio, em detrimento de outras formas de masculinidade ou feminilidade, essa cultura cria um ambiente onde os jogadores são elevados ao status de heróis, não apenas por suas habilidades atléticas, mas por encarnarem valores masculinos dominantes, já Pierre Bourdieu (1930–2002) argumenta que o corpo masculino no esporte torna-se um veículo de poder simbólico, manifestando-se na idolatria dos jogadores como exemplos de virilidade.
A masculinidade exaltada no futebol está ligada ao machismo estrutural presente no esporte e na sociedade, a marginalização e exclusão do feminino são evidentes, como na falta de visibilidade e investimento no futebol feminino, ao exaltar uma forma de masculinidade que valoriza agressão e competitividade, o o futebol reforça uma cultura que relegam o feminino a um papel secundário, a forma como jogadores homens são perdoados, mesmo em casos de violência sexual ou doméstica, revela o funcionamento do machismo estrutural, o patriarcado permite que os homens mantenham posições de poder, mesmo após crimes , no futebol, esse patriarcado se manifesta quando jogadores são perdoados, especialmente por crimes contra mulheres, pois suas identidades como “heróis masculinos” superam suas falhas morais, a agressividade, tanto física quanto simbólica, é central na masculinidade promovida pelo futebol, que é uma performance de poder físico e mental. o esporte canaliza formas de violência que seriam socialmente inaceitáveis fora dele, e essa canalização não é apenas aceita, mas celebrada, transformando ídolos em símbolos de resistência e capacidade física, enquanto comportamentos transgressores são visíveis como extensões naturais de uma “masculinidade incontrolável”, tornando esses jogadores ainda mais admirados.
Outro aspecto importante da cultura da masculinidade no futebol é a noção de masculinidade frágil, embora a hegemonia masculina pareça dominante, ela está constantemente sob ameaça, especialmente quando a moralidade pública questiona as ações dos jogadores. Assim, a defesa de ídolos, mesmo quando envolvidos em crimes, é uma reafirmação dessa masculinidade, refletindo um desejo de proteger valores masculinos sob crítica, no futebol, a defesa dos jogadores é uma tentativa de manter a narrativa de uma masculinidade inabalável, ao perdoarem seus ídolos, os torcedores, em sua maioria homens, também reafirmam os valores masculinos que esses jogadores representam.
4. Rituais de Purificação e Redenção no Futebol
O conceito de purificação e redenção é uma constante em várias tradições religiosas e culturais, com raízes que remontam aos primórdios da humanidade. No futebol, frequentemente considerado uma “religião secular,” esses temas são centrais para a dinâmica da percepção de ídolos após atos moralmente condenáveis, a reintegração de jogadores, como o goleiro Bruno, Cuca e Robinho, é frequentemente tratada através de rituais simbólicos que refletem estruturas de purificação e redenção observadas em tradições religiosas.
Na antropologia, a purificação está ligada à ideia de que indivíduos ou objetos podem ser “contaminados” e precisam ser limpos para serem reintegrados à sociedade, no futebol, essa lógica se manifesta quando jogadores mancham suas reputações, mas buscam, por meio de performances esportivas, restaurar seu status, o retorno ao campo após punições é visto como um ritual de renascimento simbólico, a primeira partida após uma controvérsia é carregada de significado, onde o jogador é “limpo” aos olhos da comunidade, e cada jogada bem-sucedida simboliza um passo em sua purificação. A mídia e o público atuam como agentes nesse processo, redefinindo a narrativa de “pecador” para “redimido” assim, o campo de futebol se torna um espaço sagrado para essa purificação, a redenção, em diversas tradições, requer arrependimento e reparação e no futebol, essa é frequentemente alcançada por meio de um retorno triunfal, onde o jogador demonstra seu valor e talento, a antropologia indica que rituais de redenção muitas vezes envolvem um elemento de espetáculo, onde o indivíduo deve “provar” sua mudança.
Para muitos jogadores envolvidos em escândalos, a reintegração ao futebol é um rito de passagem. Este processo assemelha-se a rituais religiosos, onde o arrependimento é seguido por um período de prova, culminando na reintegração à comunidade. A teoria do “rito de passagem” de Arnold van Gennep pode ser aplicada aqui, com os jogadores passando por fases de separação, marginalização e, finalmente, reintegração, simbolizando a redenção, o papel dos torcedores nesse processo é central. A aceitação do jogador de volta, celebrando seus feitos, atua como uma “comunidade de fé” que concede perdão coletivo. Muitas vezes, os rituais de purificação e redenção não são completos sem esse componente de aceitação pública, e a volta triunfal é vista como um momento de cura, os rituais reforçam a coesão social, evidente no futebol, quando torcedores perdoam um jogador, participam de um ritual coletivo que reafirma a identidade do grupo e sua conexão emocional com o esporte, ao perdoar, a comunidade se reafirma, e o futebol se torna um campo onde a redenção é possível, independentemente das falhas.
Outro aspecto relevante é a performance esportiva como ritual de purificação, cada lance bem-sucedido pelo jogador acusado é interpretado como um sinal de aceitação pela “comunidade sagrada” do futebol, o jogo, portanto, atua como uma cerimônia de purificação contínua, onde a glória no esporte “lava” as transgressões pessoais.
No futebol, o jogador deve representar o papel de herói em campo, mesmo que seu “eu” privado tenha sido manchado por escândalos, essa encenação pública, onde o desempenho é visto como prova de redenção, é parte do ritual que facilita o perdão coletivo.
5. Conclusão
A análise do futebol como uma “religião secular” revela como a cultura da masculinidade está intrinsecamente entrelaçada com a idolatria e a dinâmica de perdão no esporte. A masculinidade hegemônica constrói uma narrativa que exalta atributos como força, competitividade e resistência, nesse contexto, jogadores são elevados ao status de heróis, o que, por sua vez, permite que suas transgressões morais, especialmente aquelas relacionadas a crimes como violência sexual e doméstica, sejam frequentemente perdoadas.
A cultura da masculinidade no futebol não apenas marginaliza outras formas de ser, mas também perpetua uma estrutura de machismo que favorece a manutenção do poder masculino e dos ídolos do futebol, muitas vezes, são vistos como símbolos de virilidade, e suas falhas morais são desconsideradas em favor de suas identidades heroicas e isso se manifesta de maneira dramática quando jogadores envolvidos em escândalos são reintegrados ao esporte, refletindo a lógica de purificação e redenção presente em tradições religiosas, os rituais de purificação e redenção são fundamentais para entender como os jogadores buscam restaurar seu status após ações moralmente condenáveis. A performance esportiva atua como um rito de passagem, onde a liberdade pública é crucial para a reintegração do “pecador”, a teoria de Arnold van Gennep sobre rituais de transição se aplica, com jogadores passando por fases de separação, marginalização e, finalmente, reintegração, simbolizando suas facilidades de volta ao coletivo dos torcedores, a torcida, apresentando-se como uma “comunidade de fé,” desempenha um papel central nesses rituais, oferecendo um perdão coletivo que reafirma a identidade do grupo, esses rituais fortalecem a coesão social, mostrando que o futebol não é apenas um espaço para o espetáculo, mas também um campo onde se busca redenção.
Em suma, a intersecção entre masculinidade, idolatria e rituais de purificação no futebol revela a complexidade das dinâmicas sociais que moldam a percepção e o perdão em relação às figuras públicas. O futebol, como um espaço sagrado, permite que a glória esportiva funcione como um meio de purificação, destacando como a cultura da masculinidade influencia a forma como as transgressões são tratadas e como a redenção é buscada, essa análise convida à reflexão sobre as implicações éticas e sociais dessas práticas, desafiando-nos a reconsiderar a natureza do perdão e da idolatria em um contexto marcado por desigualdades de gênero e questões morais.
6. Referências
- Bourdieu, Pierre . A Economia das Trocas Simbólicas . 1990.
- Connell, Raewyn . Masculinidades . 1995.
- Douglas, Maria . Pureza e Perigo: Uma Análise da Noção de Contaminação e Tabu . 1988.
- Durkheim, Émile . As Regras do Método Sociológico . 1895.
- Elias, Norberto . O Processo da Civilização: Um Estudo Sociogenético e Psicanalítico . 1994.
- GOFFMAN, Erving . A Apresentação do Eu na Vida Cotidiana . 1959.
- Geertz, Clifford . A Interpretação das Culturas . 1973.
- HOBSBAWM, Eric . A Invenção das Tradições . 1983.
- Marx, Karl e Engels, Friedrich . A Ideologia Alemã . 1845–1846.
- Turner, Victor . A Proposta de um Novo Paradigma em Antropologia: Comunidade e Rito de Passagem . 1969.
- Van Gennep, Arnold . Os Ritos de Passagem . 1909.
- Malinowski, Bronislaw . Os Argonautas do Pacífico Ocidental . 1922.
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