Do que você é capaz?

rené de paula jr
4 min readFeb 10, 2017

Eu confesso: desisti. Tentei, até e sim, valeu imensamente a pena: Spinoza é de tirar o fôlego. O problema é ter fôlego pra ler o cara em alemão e, pra completar, nessas letrinhas diabólicas da foto aí acima, singela e merecidamente chamadas de Fraktur. Pois é, Fraktur quebra qualquer um.

O trechinho aí da foto começa assim: a alegria, por si só, não é ruim, mas sim boa; tristeza, por outro lado, é ruim por si só, e a alegria é boa porque é um afeto que aumenta aquilo do que o corpo é capaz. Daí pra frente vem uma demonstração implacável, geométrica, euclidiana do que parecia ser quase senso comum, e de demonstração em demonstração Spinoza vai construindo a sua Ética com a força de um tratado matemático. É impressionante e, como eu me impressiono rapidinho, me dei por satisfeito depois de algumas páginas, me conformando com o fato de que não, eu não era capaz de digerir o que eu tentei abocanhar.

Por que eu quis degustar Spinoza? Entre outras coisas por ter ouvido alguém atribuir a ele uma frase mais ou menos assim: “de que adianta querer entender a alma se nem sabemos do que o corpo é capaz? ”. Bela frase, e acredito que seja mesmo dele; se dissessem que era do Jabor ou do Drummond acho que eu teria desconfiado. Acho.

Se você, por outro lado, ouvir por aí a frase “de que adianta querer entender a tecnologia se nem sabemos do que pessoas são capazes? “, não se engane: a frase é minha, eu acabei de inventar, e inventei depois de ler mais um artigo de futurologia prevendo o fim das fronteiras, o colapso disso, a morte daquilo, tudo por conta do que a tecnologia digital seria capaz.

Pois bem: não. Eu, como diria Houaiss, capaz de escrever dicionários, discrepo.

Basta olhar em volta para ver que Trumps e Putins e Erdogans e Le Pens e Dutertes contrariam alegremente toda e qualquer futurologia inocente que você engoliu nos últimos anos.

Claro, quem não gosta de sonhar com Humanidades 2, 3, 4, 5 ponto zero? Quem não quer se sentir às portas da Era de Aquarius? (Talvez quem é pisciano, mas a piada é besta). Nosso ciberotimismo pueril foi atropelado não por Neros e Calígulas ou Gengis Khans que surgiram do nada numa nuvem de enxofre, mas por figuras populares eleitas pelo voto de milhões de pessoas normalérrimas e absolutamente hostis às belas ideias que os cibergurus associam ao digital: globalização, abolição de fronteiras, diversidade, tolerância, generosidade, colaboração, altruísmo, democracia e por aí vai. O digital é sim capaz de tudo isso, mas tudo indica que as pessoas não.

Quem nunca viu, aliás, algum ciberapóstolo citar “Information wants to be free”?

É bacana, não? Inspira, não? Pois bem: expirou. Informação não quer nada, só pessoas podem querer, e pessoas nunca querem o que a gente quer que elas queiram. OK, certamente vão querer o free=grátis, mas vão resistir ferozmente à ideia de free=livre.

Quer um exemplo? Tenho bilhões: é só somar a China, a Rússia, a Turquia, a Venezuela, Cuba… ali informação não é livre, nem nunca será, e abstraindo a Venezuela e Cuba, onde realmente ninguém pode querer nada, esses países vão bem, obrigado, e dão uma banana pro sonho iluminista ocidental. Ao que tudo indica, nem todo mundo quer o que nós, ciber-românticos teimamos em querer. A cada manchete de jornal fica mais distante a ilusão de que haja valores e desejos realmente universais.

Trumps e Putins não são múmias ressuscitando um passado anacrônico, eles talvez sejam os pioneiros modernérrimos de um futuro onde o digital é capaz de mil perversidades.

Eu nunca entendi de onde vem essa crença de que tecnologia é capaz de refazer a gente (e o mundo e a história) à sua imagem e semelhança. Eu sempre digo (inutilmente, como sempre) que somos nós é que adotamos à tecnologia à nossa imagem e semelhança, e digo isso por já ter visto de frente e também dos bastidores o nó que milhões de usuários conseguem dar em qualquer coisa que você invente. Pode usar essa frase à vontade também, só não diga que é do Dalai Lama.

Sempre digo também (em vão, claro) que a tecnologia mais fascinante não é software nem hardware, é peopleware, mas parece que ler planilhas Excel ou tourear CPU’s paga mais do que ler coisas que ensinem a pensar.

Estou lendo agora um livro que está me ensinando a repensar tudo o que eu achei que soubesse, um livro que desbanca o mito de que gente é uma massa amorfa que você pode transformar em qualquer coisa. O livro se chama Tábula Rasa (Blank Slate), e o autor é o Steven Pinker, e agora que o livro está no finzinho estou até com dó de acabar. Aprendi muito, e aprendi sobretudo a entender melhor a tal da natureza humana. Recomendo fortemente a leitura, se é que isso vai fazer diferença num mundo onde dá pra Lulas e Trumps serem presidentes sem jamais abrir um livro.

Sei que é otimismo demais da minha parte recomendar livros de seiscentas páginas, mas serei sempre um Dom Quixote sonhador incapaz de virar Sancho Pança.

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