O Vilão Invisível

Ou: por quê a humanidade deveria estudar Humanidades

rené de paula jr
5 min readMar 30, 2016

Se a memória não me trai Buñuel, o cineasta, primeiro bolou o título O Anjo Exterminador para depois fazer o filme com o mesmo nome, filme que, buñuelíssimamente, não tem anjo nenhum. Eu ainda devo ter na estante o delicioso Meu Último Suspiro, suas memórias escritas a quatro mãos com o memorável Jean-Claude Carrière e seria um prazer conferir a anedota, mas deixemos para os robôs o tédio da infalibilidade e fiquemos nós, humanos, com o discreto charme das nossas memórias voláteis.

Sim, eu repeti a palavra memória três vezes e meia, foi intencional. Repetir me ajuda a não esquecer, e não quero perder esse fio da meada enquanto outras lembranças me ocorrem.

Eu tenho uma memória de elefante para coisas que leio, dom inexplicavelmente ausente de outras atividades profissionalmente mais promissoras. Lembre-se disso, por favor, caso eu me esqueça de algo que combinamos num dia X numa hora Y. Agradeço de antemão.

Naquele dia, porém, eu me lembrei do almoço marcado e cheguei na hora exatíssima. Ia ser muito bom rever um bom amigo, e foi bom. No meio do papo algo disparou o gatilho das minhas associações delirantes (um outro dom que nunca ornaria o meu linkedin) e me lembrei de um livro/curso que eu estava devorando com deleite, Mitologias do Mundo. Não me lembro mais por quê me lembrei de cosmogonias obscuras, só sei que num dado momento confessei que, ao me enfronhar nos mitos africanos (são muitos, de muitos povos, uma confusão), fiquei tão desconcertado que quase abandonei a leitura.

O que me provocou desconforto, meu amigo perguntou, mais interessado do que eu podia imaginar?

(Parêntese: eu não sou religioso, pelo contrário, e faço de tudo para evitar assuntos místicos e transcendentes, esse é um território que evito religiosamente).

O tal desconcerto ainda era vívido, e não foi difícil para mim contar porque me era tão difícil ouvir histórias sem uma linha clara entre o bem e o mal, narrativas onde o comportamento modelo se misturava sem embaraço com ações perversas e cruéis, com protagonistas mezzo heroicos mezzo malévolos. Que culturas eram essas onde os valores eram tão promíscuos e imprevisíveis?

Meu amigo sorriu. Ele era um estudioso e admirador das religiões africanas e também amigo e nobre o suficiente para relevar a minha gafe potencialmente ruinosa.

Nada no mundo é bom ou mau em absoluto, ele explicou, e toda ação tem um preço. Ele via beleza nisso, nessa relatividade, nesse pragmatismo, nessa fluidez. Eu ouvi com atenção e desprendimento, mas não consegui relevar meu arraigadíssimo moralismo binário. Eu havia abandonado a religião, pelo visto, não para me tornar um ateu, mas um ex-crente. Meu sistema operacional ainda funcionava na base binária de bem versus mal, certo versus absolutamente errado, virtude e pecado, Trump versus Obama. Que revelação mais imprevista, pensei, enquanto tomávamos o segundo café.

Não, não vou fazer aqui um apanágio de crença alguma, continuo refratário a transcendências e mui crente no bom-mocismo. Meu ponto é o quanto nos esquecemos daquilo que nem lembramos que somos, e que não esqueceremos mesmo tentando: nosso framework de julgamento, nossos valores, valores que de universais têm muito pouco, valores que na próxima esquina, no andar de cima, na baia ao lado, do outro lado da linha são outros. A gente esquece disso.

Falamos a mesma língua, não? Rimos das mesmas piadas, lembramos dos mesmos programas velhos de TV, damos bom-dia sorrindo no elevador, votamos nos mesmos picaretas… ops, não votamos não, nem vamos mais às mesmas passeatas.

(Aí está algo novo na vida nacional: a dificuldade em se pensar como nação diversa, dividida, com sonhos que não combinam. Os últimos anos vêm sendo um descobrimento dramático do Brasil complicado, embolado, tenso. Lá se foram as mitologias açucaradas das aulas tediosas de Educação Moral e Cívica, lá se foram os mitos simples de todos nós, cá estamos na gênese de algo novo com vários Verbos duros pairando sobre as águas. Águas turvas, aliás, e bravias.)

Tech paira sobre as águas, sempre. As turbulências sociais, as tempestades políticas, a estiagem econômica, todas essas complexidades são para tech um tipo desagradável de meteorologia, igualmente imprevisível, igualmente inelutável, algo que, na melhor das hipóteses, só atrapalha. Tech tem claustrofobia na Caverna de Platão e corre para a luz do Sol.

Tech, sabendo ou não, tende ao platonismo: impaciente com esse mundo imperfeito e acidentado, Tech se refugia nos modelos universais, eternos e perfeitos das ideias matemáticas. Números não mentem, não enferrujam, não enrugam, não dão dor de barriga. Como naquele adesivo cristão popular, o Deus Número é fiel. Gente, em compensação, é um pé no saco. Tech não leu Sartre mas também crê que o inferno são os outros.

Tech, para completar e piorar a história, é divina: do nada digital ela cria mundos, plataformas, produtos, protocolos, inteligências artificiais. Desenvolvedores têm um poder que nós, de Humanas, não temos: dão forma e vida à lama indiferente dos bits e bytes. Se eu tenho uma ideia eu escrevo um artigo, se desenvolvedores têm ideias criam a internet.

Se Tech é divina mas tem horror ao que é humano, demasiadamente humano, que mundos Tech cria? Tech cria à imagem e semelhança do quê?

(Eu já banquei Sócrates e sabatinei ideias de desenvolvedores: teu projeto serve para que, melhorar o mundo? Mundo de quem? Melhor de acordo com qual critério? Esse critério se baseia no quê? O resultado é mais ou menos a tela azul do Windows, uma hora os caras travam.)

Esse Tech avesso às questões humanas trouxe avanços fabulosos mas pouco progresso humano, e Trumps e Dilmas e Estados Islâmicos estão aí para provar que o obscurantismo, o populismo e a manipulação sórdida das fraquezas alheias vão de vento em popa, e não era isso o que eu esperava do século vinte e um. Se esse é o tal do futuro, quero meu ingresso de volta. Se vão criar uma super Inteligência Artificial tendo tão pouca inteligência emocional, vou fugir pras montanhas.

Lembrando, porém, do meu almoço tão memorável, talvez meu desconforto com o tal “avanço pela técnica” (esse é o slogan da Audi, Vorsprung durch Technik) seja mais um sinal sutil dessa mania que eu não perco de pensar em progresso versus atraso, de ser no fundo um Iluminista incorrigível querendo iluminar as trevas e talvez eu fique atolado para sempre nesse desconcerto diante de um mundo onde o que eu acho pecado não é pecado pra mais ninguém. Escapei de virar um Sancho Pança mas não percebi o quanto sobrou em mim do Dom Quixote.

Esse devaneio todo nasceu de um vídeo curtinho que assisti, onde um filósofo defende que a rapaziada precisa aprender mais Humanidades, senão aprenderão apenas a criar respostas para perguntas erradas. Aqui está o vídeo, assista: STEM Is Our New Religion, But It’s Probably a False God

Quanto ao Vilão Invisível, eu fiz como o Buñuel: me apaixonei pelo título e produzi algo sem vilão nenhum. Ou você encontrou algum?

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