"Na Sala dos Espelhos" reúne Kylie Jenner, Bíblia e Susan Sontag

Quadrinho é um convite para analisarmos, através da filosofia e da história, a obsessão por nossa imagem — e a do outro

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OVA UFPE
4 min readAug 17, 2023

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Lucas Bezerra

Não é novidade que elaboramos várias maneiras de aparentar uma vida interessante, saudável e feliz, mesmo que seja mentira (até por que ninguém é interessante, saudável e feliz o tempo todo). Quem nunca tirou várias selfies e, na hora de postar, desistiu porque não se achou mais bonita ou bonito o suficiente?

O que tudo isso teria a ver com a empresária e modelo Kylie Jenner, a princesa Sissi da Áustria, o busto de Nefertiti e Lia, uma das filhas de Labão da Bíblia? Essas discussões — e personagens — estão no ótimo livro Na Sala dos Espelhos: autoimagem em transe ou beleza e autenticidade como mercadoria na era dos likes & outras encenações do eu, da sueca Liv Strömquist. É uma aula ao mesmo tempo densa e bem-humorada sobre o que está atrás de nossas selfies.

Usando como referência nomes como o filósofo Zygmunt Bauman, a escritora e ensaísta Susan Sontag, a socióloga Eva Illouz e a ativista e escritora Simone Weil, Liv traça em quadrinhos, letterings e divagações, um plano geral interessantíssimo sobre a obsessão por nossa imagem — e pela do outro. Ela inicia o livro questionando o porquê de as imagens postadas em redes sociais gerarem verdadeiras tendências (ou trends) e cita, tensionando, o que Kylie Jenner escreveu em seu perfil no Twitter: “Eu não estou aqui para incentivar as garotas a se parecerem comigo. Eu quero incentivar as pessoas e as jovens para que elas sejam elas mesmas e que não tenham medo de experimentar o seu estilo”.

Mas, apesar disso, as pessoas continuam desejando ter os mesmos lábios de Kylie, a mesma bunda de Kylie, os mesmos olhos Kylie, o mesmo carro Kylie, a mesma casa Kylie. Resumindo: a mesma vida de Kylie.

Liv Strömquist e uma selfie (para mostrar o vestido incrível, claro). Acima, capa do livro-quadrinho que discute a era dos likes (fotos: reprodução Instagram)

Por quê?

A resposta que Liv traz no livro é baseada na teoria do desejo mimético, ou seja, nós desejamos o que o outro deseja e isso se sustenta porque o ser humano NÃO SABE o que desejar. Seria muito exaustivo nos questionarmos o tempo todo sobre o que queremos, argumenta a autora se baseando no filósofo e historiador René Girard. Por isso, elegemos um mediador, que pode ser uma celebridade ou alguém do mundo “real”, um amigo — ou mesmo um inimigo, por antítese. “As pessoas simplesmente copiam o desejo do mediador. Dessa forma, o indivíduo não precisa sempre pensar no que deseja, o que é reconfortante. Para despertar o desejo por algo, basta convencer a pessoa de que tal coisa já é cobiçada por alguém com algum tipo de status”.

Sentiu aí também?

Segundo a autora, esta é uma lógica bastante explorada pela indústria, como atrelar objetos a significados “fúteis” que vão além de sua funcionalidade, agregando status de poder e classe. Um aparelho celular não é apenas um objeto para fazer ligações. Uma roupa não serve apenas para proteger nosso corpo do frio. O corpo não é apenas a casca que abraça nossos órgãos, mas é uma máquina de alta performance que não pode fraquejar. E selfie é todo um mundo que podemos desejar.

Você pode pensar: ok, mas alguns desses questionamentos já existiam antes da internet e das redes sociais. É verdade: esses desejos difusos e mediados têm relação com a própria economia capitalista. Nela, “pensamos que tudo é — ou precisa ser — uma curva eternamente ascendente”. Sempre bonito, sempre feliz, sempre disposto, sem rugas, sem dores musculares, sem adoecer, sempre produtivo, sempre inteligente, sempre bem vestido.

A partir daí, o livro segue adicionando camadas e personagens na discussão. As diversas histórias que exemplificam a função da beleza, questionando, inclusive, que tipo de beleza e o que seria essa tal beleza. Kylie Jenner, a princesa Sissi, o busto de Nefertiti e Lia, personagem bíblico são exemplos para compreender as percepções de cada época e perceber como elas se repetem ou não hoje. Afinal de contas, para que serve a beleza?

“A beleza não tem finalidade”, vai nos dizer Simone Weil. De fato, na real, não tem. Mas na economia das redes, na mitificação das pessoas e na óbvia transformação de todas e todos nós em um produto a ser vendido, ela é, hoje, um capital a ser explorado — e perseguido.

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projeto de extensão do Observatório da Vida Agreste (OVA), Curso de Comunicação Social da UFPE/Centro Acadêmico do Agreste (CAA)