[TRANSCRIÇÃO] Cumé que fica?! — T1E1: O único caminho é perseverar

Retomadas Epistemológicas
8 min readJan 31, 2022

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[SONORA]

Sueli Carneiro

Meu pai sempre dizia que a única herança que ele podia nos deixar era a educação. Mas a minha mãe nos alfabetizou para entrar na escola; eu entrei na escola alfabetizada pela minha mãe. O empenho dela foi de uma maneira extremamente contundente e decisiva. Eu sempre repito uma frase que ela incansavelmente dizia para as meninas: “Nunca se permitam depender de um homem para comprar as suas calcinhas”. Ela falava invariavelmente e isso foi um mantra que acompanhou todas nós. Então, eu diria que isso fez da nossa família uma família muito matriarcal, somos todas mulheres de gênio muito forte, mulheres muito difíceis, mulheres mandonas, mulheres autoritárias, cada uma com a sua característica, com o seu jeito… com seu jeitinho — umas com jeitinhos, outras com jeitão, mas somos todas mulheres ‘brabas’, autoritárias e, assim, de pulso forte.

[NARRAÇÃO]

Nascida em São Paulo no ano de 1950, Aparecida Sueli Carneiro é a mais velha de sete crianças. Filha de mãe costureira e pai ferroviário, cresceu em bairros de classe média na maior cidade do país. Desde pequena, sempre foi dedicada aos estudos e apaixonada por futebol, assunto que seria presente em muitos de seus textos.

Sueli iria se tornar um fruto do movimento negro, ums das maiores ativistas e intelectuais do país.

Esse é o “Cumé que fica?!”, um podcast do coletivo Retomadas Epistemológicas dedicado a contar histórias de importantes pensadores e pensadoras que produzem dá margem para o centro. Eu sou Gabriella e vou conduzir essa narrativa com vocês.

[TRILHA DE ABERTURA]

[NARRAÇÃO]

Sueli Carneiro cresceu rodeada por pessoas que moldaram seu entendimento do que é ser uma pessoa negra. Além do pai José Horácio, ferroviário, e da mãe Eva, uma habilidosa costureira, a região que morava na Vila Bonilha, Zona Noroeste de São Paulo, vivia uma negritude efervescente nos anos 60 e 70, quando Sueli, ainda uma adolescente que fazia amizades com jovens negras e negros do bairro e vivia de namoricos no portão de casa.

Uma dessas influências era sua vizinha. A casa de Maricota, como era conhecida a funcionária pública, estava sempre cheia, de outras mulheres negras, de compositores — Maricota era da Camisa Verde e Branca, escola de samba tradicional como um espaço de resistência da população negra — e também do povo de terreiro. A casa da vizinha tinha um clima bem de festa de favela, de churrasco na laje. Maricota vivia em busca de formas de complementar a renda, inclusive com programas, ela morava com as duas filhas, na época, Sueli ainda não conhecia a expressão “garota de programa”, mas, quando a ouviu pela primeira vez, lembrou da primogênita de Maricota.

Logo depois de se formar no colegial — um grande feito para as famílias pobres naquela época — um amigo de Sueli contou para ela de uma vaga para secretária que estava aberta da firma que ele trabalhava como motorista. Sueli e uma vizinha, uma mulher branca, participaram do processo seletivo. Sueli ficou em primeiro lugar na redação, mas foi dispensada na entrevista. A vizinha branca ficou com a vaga e Sueli voltou para casa sem emprego. Por escrito, não dava para perceber que ela era preta.

Apesar dos exemplos de negritude ela sempre conviveu, essa situação foi um dos seus primeiros choques com a realidade do racismo.

Para Sueli, é surpreendente a ausência, ou até uma confusão, de uma “identidade racial” no nosso país. Tudo é jogado nas costas da miscigenação do Brasil. A identidade do povo negro brasileiro é definida pela impossibilidade de defini-la.

[SONORA]

Sueli Carneiro

Nós produzimos uma forma de ciência, uma forma de civilização, que não foi capaz de coexistir, digamos, harmonicamente com diferentes outras civilizações produzidas pela humanidade.

[NARRAÇÃO]

Esta é Sueli, em uma entrevista ao Instituto Serrapilheira.

Sueli Carneiro (cont…)

E, muitas vezes, reduz-se essas pessoas à condição de fonte primária de pesquisa, informantes do conhecimento, mas não reconhece a autoridade da fala dos portadores desses saberes.

[NARRAÇÃO]

O conceito de “epistemicídio” foi criado pelo sociólogo portugês Boaventura Souza Santos, que diz que “o genocídio que pontuou tantas vezes a expansão européia foi também um epistemicídio: eliminaram-se povos estranhos porque tinham formas de conhecimento estranho e eliminaram-se formas de conhecimento estranho porque eram sustentadas por práticas sociais e povos estranhos”; diz o autor na sua obra “Pela Mão de Alice — O Social e o Político na Pós-modernidade”.

Mas foi na tese de doutorado de Sueli Carneiro, que “epistemicídio” tomou toda uma nova dimensão.

Intitulada “A construção do Outro como não-ser como fundamento do ser”, defendida em 2005 no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de São Paulo, a tese aborda a potencialidade do uso dos conceitos de “dispositivo” e de “biopoder”, do filósofo francês Michel Foucault, para entender e analisar as dinâmicas das relações raciais no Brasil.

[SONORA]

Sueli Carneiro

O epistemicídio são todas essas práticas que negam ou que nos nega ou que nos expropria da condição de sujeitos de conhecimento, de produtores de cultura, de conhecimento, de ciência. Todo esse procedimento de negar ao outro, como sujeito cognoscente, produziu uma redução do horizonte de conhecimento possível para a humanidade. A prática concreta é essa, são saberes sepultados.

[NARRAÇÃO]

Muitas pessoas ainda pensam que as discriminações raciais são situações isoladas, momento eventuais. É assim para o senso comum, é assim para a maioria dos intelectuais. Mas não. O racismo é uma dinâmica instaurada no nosso convívio, é uma sistemática que está presente no cotidiano das pessoas negras.

O epistemicídio é mais que a anulação e a desqualificação de conhecimento, é um processo persistente de negação à educação, sobretudo de qualidade. É um mecanismo de deslegitimação dos povos subjugados como portadores e produtores de conhecimento. É como se a pobreza, a carência material fosse tudo que essas pessoas são capazes ser, como se fosse a essência desses sujeitos e sujeitas.

O epistemicídio mata a racionalidade das pessoas e sequestra a capacidade de aprender.

[VÍRGULA SONORA]

[SONORA]

Sueli Carneiro

Excelentíssimo Senhor Ministro, se essa corte entende que pode haver racismo mesmo não havendo raças; se essa corte também entende que o racismo está assentado em convicções raciais, que geram discriminações e preconceitos segregacionistas; se todas as evidências empíricas e estudos demonstram o confinamento dos negros nos patamares inferiores da sociedade e; se a inferioridade social não é inerente ao negro, posto que não existem raças, então essa persistente subordinação social só pode ser fruto do racismo que, como afirma a ementa do referido [inaudível] repito, gera a descriminação e o preconceito segregacionista. Isso requer então, medidas específicas fundadas na racionalidade segregada para romper com os atuais padrões de apartação social.

[NARRAÇÃO]

Essa é Sueli se pronunciando na audiência pública sobre as políticas de ação afirmativa para reserva de vagas no ensino superior no Supremo Tribunal Federal no dia 4 de março de 2010.

Essa audiência, assim como todo o processo da ADPF 186 no Supremo, que culminou num veredito favorável a política de cotas por dez votos a zero, foi um dos eventos que pavimentaram a aprovação da Lei 12.711 em 2012, também conhecida como a Lei de Cotas, que tornou obrigatória a reserva mínima de 50% das vagas em cursos de graduação em Instituições de Ensino Superior para pessoas que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas e pessoas autodeclaradas pretas, pardas e indígenas, em proporção no mínimo igual à essas populações no estado da instituição. Em 2016, a lei foi editada, adicionando também pessoas portadoras de deficiência como beneficiárias das políticas de cotas.

No texto da ADPF 186, relatada pelo Ministro Ricardo Lewandowski, é possível ler a contribuição da fala de Sueli ao processo: “manifestou-se Sueli Carneiro, do Instituto da Mulher Negra de São Paulo — GELEDÉS, para quem as medidas compensatórias em favor dos negros não representam apenas uma etapa da luta contra a discriminação, mas o fim de uma era de desigualdade e exclusão social. Afirmou, mais, que ‘o mito da democracia racial é fundamentado em uma sensação unilateral e branca de conforto nas relações inter-raciais’”.

Sueli é uma grande crente no poder da educação como um instrumento de afirmação pessoal e social, e em como a educação é primordial para a reparação dos danos que a escravização e a colonização tiveram sobre as pessoas negras.

Pessoas negras criam juntas várias formas de resistir à negação da educação imposta a elas. Seja no ensino infantil, básico ou superior. A educação é um bem maior que o dinheiro, é algo que ninguém pode tirar, um ensinamento familiar.

A educação é um campo da batalha histórica pela transformação da realidade da dominação racial e para tornar possível outra existência para o povo negro.

[VÍRGULA SONORA]

[NARRAÇÃO]

A língua denuncia o falante. Já diz Sueli no seu livro “Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil”. “No termo ‘pardo’ ‘cabem os mulatos, os caboclos e todos os que não se consideram brancos, negros, amarelos ou indígenas’”. Ela ainda completa. “Todos os que não se desejam negros, amarelos ou indígenas encontram uma zona cinzenta onde possam se abrigar, se esconder e se esquecer de uma origem renegada”.

O racismo aprisiona as pessoas em imagens fixas, em estereótipos. Construir a categoria “Negro” a partir da somatória de pretos e pardos foi uma luta extraordinária do Movimento Negro Brasileiro. Foi e é uma luta contra a separação das pessoas negras. Essa luta pode ser vista em várias frentes: na política, na academia e também na arte, como no movimento hip-hop, que tem jovens negros e negras de todas cores a sua frente, de Djonga a Mano Brown, de Negra Li a Karol Conká.

[SONORA]

Sueli Carneiro

A mestiçagem foi um instrumento, foi projeto… Um dos seus principais resultados foi fracionar a identidade negra e impedir que esta unidade de pardos e pretos se assumisse enquanto um coletivo único reivindicante de uma outra forma de inserção na sociedade brasileira.

[NARRAÇÃO]

Essa fuga da negritude e rejeição social da consciência negra é não só vista com bons olhos pela sociedade, mas incentivada. Pensar que “somos todos iguais” ou que “é uma questão de quem é rico ou quem é pobre” são discursos que o branco brasileiro nos ensinou e gosta de ouvir.

Mas as coisas já estão mudando…

[VÍRGULA SONORA]

[SONORA]

Sueli Carneiro

Eu acho que a principal lição desse momento histórico [sobre a audiência no stf] é nos dizer que a momentos da nossa luta que parece que não é possível avançar. Há determinados momentos que a gente tem a sensação de que essa sociedade é incapaz de desejar sinceramente uma verdadeira democracia racial. Mas eu acho que essa batalha pelas cotas, ela nos indica que perseverar é o único caminho que nós temos… per-se-ve-rar.

[TRILHA DE ENCERRAMENTO]

[NARRAÇÃO]

O podcast “Cumé que fica!?” é realizado pelo coletivo Retomadas Epistemológicas, com o apoio da Pró-reitoria de Assuntos Estudantis e do Centro Acadêmico de Ciências Sociais da Universidade Federal de Minas Gerais.

A apresentadora é a Gabriella Cipriano, que também produz o programa, junto com Steffane Santos e Gabriel Nunes da Silva, que também montam e sonorizam. Esse episódio conta com pesquisa de Sofia Nicolau e roteiro de Gabriel Nunes da Silva. A trilha sonora é do Slipstream e os efeitos do Zapsplat.

Agradecimentos especiais à Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis da UFMG e ao Centro Acadêmico de Ciências Sociais; à jornalista Bianca Santana, biógrafa de Sueli Carneiro, cujo os escritos foram de extrema importância para construção desse episódio e; claro, a Sueli Carneiro.

Os áudios usados nesse episódio foram retirados de vídeos públicos disponíveis no YouTube. Todas as referências e a bibliografia completa, você encontra no post desse episódio no Medium do Retomadas Epistemológicas.

Esse é o “Cumé que fica!?”, até semana que vem.

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