[TRANSCRIÇÃO] Cumé que fica?! — T1E3: A filha da Dona Glória

Retomadas Epistemológicas
10 min readJan 31, 2022

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[SONORA]

Apresentador 1

A pedagoga Nilma Lino Gomes foi a primeira mulher do Brasil a comandar uma universidade pública federal em 2013. Com presença marcante na luta contra o racismo, Nilma também ocupou o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, ela esteve em Campina Grande lançando um livro e o repórter Leandro Pedro aproveitou a ocasião para entrevistá-la, vamos conferir agora uma entrevista pertinente e atual.

Apresentador 2

O Entre Vistas desta noite, desta semana, é com a ex-ministra Nilma Lino Gomes, só lendo para que você saiba quem é a ministra Nilma. Ela é pedagoga, ela é mestra em educação, ela é doutora em antropologia social, pós-doutora em sociologia pela Universidade de Coimbra. A primeira mulher negra do Brasil a comandar uma universidade pública, quando foi reitora da incrível experiência da Unilab, a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, foi também ministra das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos no governo de Dilma Rousseff. E as vezes, quando eu quero falar com a doutora Nilma, eu falo doutora Dilma, quando eu quero falar com a doutora Dilma, eu falo doutora Nilma…

Apresentador 3

Olá a todos e todas, a gente tá aqui com a professora Nilma Lino Gomes que veio de Minas Gerais aqui em Campina Grande. A gente aproveitou essa passagem para ela lançar um livro aqui, pra fazer um bate papo, uma conversa. A professora que é uma das primeiras mulheres negras, primeira mulher negra a comandar uma universidade pública federal ao ser nomeada reitora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, não é isso? É uma das principais pesquisadoras do assunto, das questões, das lutas das pessoas afro-brasileiras…

Apresentadora 4

Hoje nós estamos aqui com uma convidada muito especial que eu tenho profunda admiração, e eu e sei que vocês também, pra gente conversar um pouquinho sobre processos de pesquisa, de produção… de duas pesquisas dela. Nilma Lino Gomes, professora emérita da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais e também ex-ministra do governo Dilma, aqui conosco…

Apresentadora 5

Agora, nós estamos com a professora Nilma Lino Gomes, ex-ministra da pasta de Mulheres, igualdade racial, juventude e direitos humanos. Professora, é um prazer estar aqui com você, pessoa que inspira nos seus trabalhos e também nas suas lutas. O foco da conversa eu acho que a gente poderia conversar um pouco a partir da sua trajetória não só enquanto ex-ministra que trabalhou nesse campo institucional, mas também como pesquisadora, professora e também de estudante. Como que nesse contexto político brasileiro você enxerga os avanços e os retrocessos, no que diz respeito às questões de combate ao racismo e da igualdade racial e o que um espaço como esse, um seminário como esse significa também, pensando esses resultados, essas permanências, e das continuidades, que tem se travado nesse período.

[NARRAÇÃO]

Mulher, negra, intelectual, engajada, professora, educadora, ministra, professora emérita, filha da Dona Glória. Quando ela entra na sala de aula, ela não está só, ela entra rodeada de um tanto de gente, dos nossos ancestrais. De pessoas que não estão aqui, mas que ela brigou horrores para estar. Ela é a exceção que confirma a regra do racismo.

Ela é Nilma Lino Gomes.

Esse é o “Cumé que fica?!”, um podcast do coletivo Retomadas Epistemológicas dedicado a contar histórias de importantes pensadores e pensadoras que produzem dá margem para o centro. Eu sou Gabriella e vou conduzir essa narrativa com vocês.

[TRILHA DE ABERTURA]

[NARRAÇÃO]

Nilma é uma belo-horizontina que vem de uma família da cidade de Ponte Nova, na Zona da Mata Mineira. Caçula de quatro irmãos em uma família negra e pobre, sempre morou em periferias. Nilma perdeu o pai quando ainda tinha doze anos, e a mãe, Dona Glória, assumiu a casa e a família.

A mãe é a força que move Nilma.

Ser mulher negra no Brasil, de ontem e de hoje, é sempre ser guerreira. É entender que quando as mulheres negras chegam nos espaços, quando esses corpos com sua produção intelectual, sua poesia, sua cultura, seu olhar sobre raça e gênero, abalam as estruturas.

Ser mulher negra no Brasil é também reconhecer que nunca chegamos sozinhas. Uma mulher negra representa o coletivo, fruto de mães, tias, avós, bisavós, de Tereza de Benguela, de Dandara e de Luísa Mahin. Somos fruto de muitas lutas.

Quando uma mulher negra ocupa um espaço, ela luta por todas, todos e todes. As mulheres negras lutam pela democracia com igualdade racial.

[SONORA]

Nilma Lino Gomes

É o reconhecimento de que, muitas pessoas vieram antes de mim, e muitas pessoas estão comigo ainda, e essas pessoas que revigoram o conhecimento científico que eu produzo. É ser alguém que ocupa literalmente o espaço da branquitude, e tensiona o espaço da branquitude, que é o espaço da ciência. E também é alguém que luta contra o racismo epistêmico, porque, no caso, eu não sou apenas uma mulher cientista negra, eu sou uma mulher cientista negra que trabalha com a questão racial. O conhecimento que eu produzo como uma intelectual negra engajada é um conhecimento que tem como o objetivo sim transformar a realidade social.

[NARRAÇÃO]

Como uma das mais reconhecidas pesquisadoras sobre as questões etnico raciais no país, Nilma sente uma sente o racismo não só em si mesma, mas por todos os lugares que passa. Das periferias as áreas nobres, nas ruas, nas escolas, na universidade. Em muitos dos lugares que frequenta, ela é a única mulher negra ali. O racismo não toca apenas pessoalmente ou profissionalmente, ele está naturalizado em tudo no nosso país. E ela acredita que, o racismo só será superado quando esse sentimento não for só dela, de uma mulher negra, mas quando ele for sentido por todes, independentemente de seu pertencimento étnico e racial.

[SONORA]

Nilma Lino Gomes

Então nós podemos dizer hoje que a lei de cotas é fruto desse contexto: de um contexto de reconhecimento do racismo e da desigualdade racial; do reconhecimento que um Estado tão diverso como o Brasil, ele também tem que superar as desigualdades de toda e qualquer ordem; o reconhecimento dessa luta histórica que várias personalidades já passaram na nossa história lutando por ações afirmativas e pela modalidade de cotas; e também por esse crescimento da discussão em nível internacional que levou a essas resoluções a partir de Durban.

[NARRAÇÃO]

Esta é Nilma, em uma entrevista ao Supremo Tribunal de Justiça, quando ainda era Ministra da Secretaria de Igualdade Racial, em 2015.

Quando ela se refere a Durban, ela quer dizer a Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, que ocorreu em 2001, na cidade de Durban, na África do Sul.

Nilma Lino Gomes (cont…)

Eu penso que nós vamos ter a médio e longo prazo, a representação da nossa diversidade etnica-racial nos diferentes setores da sociedade de fato. Porque nós ainda temos no Brasil, espaços, setores sociais, em que você vê quase que uma homogeneidade do ponto de vista etnico-racial, às vezes de gênero, e muitas vezes socioeconômico, não é isso? E nós somos um país tremendamente diverso, com uma população que nós nos orgulhamos de sermos brasileiros como somos, e ao mesmo tempo não dá pra gente conviver com tamanhas desigualdades.

[VÍRGULA SONORA]

[SONORA]

Patricia Anunciada

O tempo foi passando e Betina foi crescendo, sua avó foi envelhecendo, envelhecendo.. Um dia a avó falou com a netinha: “Betina, sinto que daqui a pouco tempo, vou me encontrar com os nosso ancestrais!”, “Quem são os ancestrais, vó? Ih, acho que já sei, é gente morta, né?”, “Mais ou menos, querida, são pessoas que nasceram bem antes de nós e já morreram, algumas nasceram aqui mesmo no Brasil, e outras viviam numa terra bem longe chamada África. Elas nos deixaram ensinamentos e histórias de luta, a força e a coragem dessas pessoas continuam até hoje em nossas vidas e na história de cada um de nós.”

[NARRAÇÃO]

Essa foi Patrícia Anunciada, do canal Letras Pretas, no YouTube, lendo um trecho do livro “Betina”, uma das obras infantis de Nilma.

Aos sete anos de idade, quando morava na cidade de Sabará, região metropolitana de Belo Horizonte, Marta, e uma colega branca, chama ela de “cabelo de bombril”. Ela conta que chegou em casa assustada, foi até o armário onde a mãe guardava produtos de limpeza e olhou pro bombril. Contou pra mãe e pra irmã, que a ensinaram alguns xingamentos que ela poderia devolver a menina Marta, e assim Nilma o fez, a menina novamente a chamou de cabelo de bombril e ela devolveu com os xingamentos ensinados pela irmã. A menina chorou e contou pra professora, Dona Elza, que ao ouvir a explicação das duas crianças, riu e repreendeu a menina. Foi a primeira vez que Nilma foi ofendida com um xingamento racista.

O cabelo crespo de Nilma é parte importante de sua história e sua identidade. Dona Glória alisava o seu cabelo desde a infância, com um produto que, certa vez, queimou a cabeça dela, que até hoje possui uma na cabeça, onde nunca mais nasceu cabelo.

A relação dela com o cabelo impactou sua produção como pesquisadora, na tese de doutorado em Antropologia, defendida na Universidade de São Paulo em 2002, a autora realizou uma pesquisa em salões de beleza afro em Belo Horizonte. A estética negra é um dos pontos de inflexão que a pensadora traz para o debate das relações raciais no país.

Na tese, posteriormente publicada em livro sob o título “Sem perder a raiz”, Nilma diz: “Na construção da sua identidade, na sociedade brasileira, o negro, sobretudo a mulher negra, constrói sua corporeidade por meio de um aprendizado que incorpora um movimento tenso de rejeição/aceitação, negação/afirmação do corpo. Nem mesmo a família negra que valoriza as práticas culturais afro-brasileiras escapa dessa situação. […] Ver-se e aceitar-se negro implica, sobretudo, a ressignificação desse pertencimento étnico/racial no plano individual e coletivo.”

[VÍRGULA SONORA]

[SONORA]

Nilma Lino Gomes

Quando fui trabalhar na creche comunitária e lá, depois de um tempo, eu desci fazer pedagogia tem haver com essa… minha forma de lidar com a educação. A educação para mim nunca se apresentou como um problema, ela sempre se apresentou como um campo que me fascina. E quando eu fui pra pedagogia era isso, era maravilhoso, a FAFICH, no Santo Antônio, era um outro mundo, aquelas pessoas diferentes. Eu era uma menina pobre, da periferia, daquela família toda assim, aí chega lá e questões políticas, não sei o que e partidos e tal. Então eu entrei de cabeça e na pedagogia eu sempre fui uma pessoa muito atuante.

[NARRAÇÃO]

As suas inquietações como mulher negra, como professora na educação básica e no ensino superior, como pesquisadora, como reitora, como ministra, sempre moveram Nilma, o conhecimento produzido a partir dessas inquietações a tornaram umas das mais importantes e relevantes pensadoras do país.

Estar nos lugares que Nilma esteve e está, ser Nilma Lino Gomes é um grande desafio. É um desafio porque ainda faltam pessoas negras, em especial mulheres negras, em espaços de poder, espaços de decisão. Quando nós, pessoas negras, estamos nesses lugares, nós representamos um coletivo. Nesses momentos nós representamos todas as pessoas negras, e carregamos a pauta da superação do racismo e da desigualdade racial e de gênero. Isso acaba reforçando uma regra perversa, que é a não presença de negros e negras em função da desigualdade racial e do racismo.

A nossa não presença ou a nossa pouca presença sempre será motivo para compreendermos o quanto ainda temos que lutar e avançar para superar desigualdades raciais e de gênero. Para conseguir, que a diversidade brasileira possa estar, de fato, representada.

[SONORA]

Nilma Lino Gomes

Acho que a escola de hoje é uma escola que tá sendo tensionada, forçada, a se redefinir. Por que eu tô falando isso? Porque a escola por si só ela não responde a sociedade, a tudo que tem na sociedade. Ela tá emaranhada nessa sociedade, então eu acho que a escola tá sendo forçada, ao longo desses anos, a se redefinir porque a sociedade brasileira tá sendo forçada a se redefinir. Então o campo da educação, o currículo, as teorias, a formação dos professores e professoras. A própria discussão sobre a história da África e as culturas afro-brasileiras, que hoje é uma lei que tem que ser implementada, tudo isso não veio de um movimento de dentro da escola para a sociedade, foi um movimento de pressão sobre a sociedade e sobre a escola porque é uma instituição vital dentro da sociedade.

[VÍRGULA SONORA]

[SONORA]

Nilma Lino Gomes

Uma das minhas reflexões que eu tenho feito ultimamente é a seguinte: não dá para gente entender que a discussão passa só pela escola, ou só pela educação. Enquanto houver pobreza, miséria, violência, tudo isso tem haver com educação. A educação está emaranhada nisso tudo. Então o meu combate, a minha luta contra a miséria é também uma luta para uma educação mais justa. A minha luta contra a desigualdade de raça, de gênero, contra a violência em relação à população LGBT, a minha luta por terra, por território dos indígenas, dos quilombolas, dos povos do campo é uma luta pela educação. Acho que a educação tem que entender isso, porque ficamos assim “a escola, a escola, a educação” como se a educação resolvesse os problemas da sociedade, a educação está emaranhada na sociedade. Então enquanto eu tenho pobreza, eu também tenho educação desigual; enquanto eu tenho racismo, eu também tenho uma escola que não dá conta e discrimina as jovens, os jovens e as crianças negras e negros, entendeu? Então eu acho que, hoje a sociedade brasileira, quem é um educador e uma educadora sério é séria e que se coloca na luta por emancipação, por aquilo que a educação tem que ser: uma educação democrática, pública. E independentemente se eu atuo na rede pública ou não, o fato de ser um educador ou educadora, a gente tem que se colocar essas questões, têm que se colocar! E eu acho que a escola, ela tem que sair da casa de vidro, sabe? Porque tem hora que parece que a escola se coloca numa casa de vidro e fala: “a nossa luta, a nossa luta”, é a nossa luta é central, ela é prioritária, mas a nossa luta não pode se dar sem as outras lutas sociais. Se eu melhoro a sociedade e eu melhorar a escola! Se eu supero o racismo, eu melhoro a escola! Se eu supero o sexismo e o machismo, eu melhoro a escola! Eu melhoro o currículo, eu melhoro a vida das pessoas que estão dentro da escola, tanto professores, quanto funcionários, quanto estudantes, quanto a família.

[TRILHA DE ENCERRAMENTO]

[NARRAÇÃO]

O podcast “Cumé que fica!?” é realizado pelo coletivo Retomadas Epistemológicas, com o apoio da Pró-reitoria de Assuntos Estudantis e do Centro Acadêmico de Ciências Sociais da Universidade Federal de Minas Gerais.

O programa é apresentado pela Gabriella Cipriano, que faz a produção junto com a Steffane Santos e o Gabriel Nunes da Silva, que também montam e sonorizam. Esse episódio conta com pesquisa de Rafaela Rodrigues de Paula e roteiro de Gabriel Nunes da Silva. A trilha sonora é da Slipstream.

Agradecimentos especiais à Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis da UFMG e ao Centro Acadêmico de Ciências Sociais; ao Coletivo Docência Negra, que entrevistou Nilma em 2019 e cedeu a conversa para a produção desse episódio e também a Nilma Lino Gomes.

Os áudios usados nesse episódio foram retirados de vídeos públicos disponíveis no YouTube. Todas as referências e a bibliografia completa, você encontra no post desse episódio no Medium do Retomadas Epistemológicas.

Esse é o “Cumé que fica!?”, até semana que vem.

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