[TRANSCRIÇÃO] Cumé que fica?! — T1E4: O primeiro antropólogo do Congo

Retomadas Epistemológicas
8 min readJan 31, 2022

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[SONORA]

Kabengele Munanga

Um jovem negro que nasceu em plena colonização em 1940, em plena colonização belga. Fomos colonizados pela Bélgica. Na data em que eu nasci não existia ainda um país que chama República Democrática do Congo. Era uma colônia belga. Não era um país. E nesse contexto da colonização que fui educado por meus pais, nasci em uma [inaudível], eram todos analfabetos, no sentido ocidental da palavra analfabeto. Eles tinham história e conheciam e tinham conhecimento, mas eles não era alfabetizado. A educação que eu recebi era uma educação realmente colonizada. A educação que estava totalmente na mão dos missionários católicos. A primeira coisa que eles começaram a ensinar pra gente no processo de alfabetização era o quê? Era trabalhar os textos do catequismo, da bíblia, de deus. Para mostrar que os africanos não tinham religião, não tinha deus, não tinha lei. Era negação total. Os colonizadores estavam lá dentro do contexto das missões civilizatórias como obra de gratidão para a humanidade para dar para nós, aquilo que o mundo não deu para nós. Que era o quê? O conhecimento, a ciência, a tecnologia, a cultura, a história, que a gente não tinha porque a história que era ensinada para a gente era a história das nações europeias. Era muito um processo de alienação total, onde você introjetava, anturalizava, a ideia de que você mesmo, negro, é inferior ao branco.

[NARRAÇÃO]

Nascido na República Democrática do Congo, antigo Zaire, em 1942, com pais que não acessaram a educação formal, Kabengele Munanga foi o primeiro antropólogo do seu país. Viria a se tornar um dos mais importantes antropólogos e intelectuais negros brasileiros.

Esse é o “Cumé que fica?!”, um podcast do coletivo Retomadas Epistemológicas dedicado a contar histórias de importantes pensadores e pensadoras que produzem dá margem para o centro. Eu sou Gabriella e vou conduzir essa narrativa com vocês.

[NARRAÇÃO]

Kabengele embarca no mundo das Ciências Sociais em seu próprio país. Onde descobriu a Antropologia. Muitos de seus colegas não queriam ingressar na disciplina. A ciência que havia sido feita para compreender porque nossos corpos negros eram inferiores. Sem saber por qual intuição, Kabengele escolhe a Antropologia. E se torna, o primeiro antropólogo pela Universidade Oficial do Congo. A ciência que encontrou era ainda a ciência do colonizador, onde se reproduz o que os outros nos dizem, sem brechas para contestar ou discutir. Chamava atenção de seus professores por ser tão focado e não discordar, fazendo os questionar se ele estava mesmo aprendendo. O pensamento ali se dava como feito para reproduzir, não para discutir e debater. Sai do Congo para iniciar seu mestrado na Bélgica.

[SONORA]

KABENGELE MUNANGA

Comecei meu mestrado na Universidade de Louvain, universidade católica, uma das mais importantes universidades da europa. Uma das mais antigas da europa. E quando terminei o mestrado comecei o doutorado e por questões políticas após a ditadura militar a bolsa foi confiscada e eu voltei para o Congo sem a possibilidade de concluir meu doutorado. Eu conheci um professor brasileiro, Fernando Mourão, já falecido e que era diretor do Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo. E saí do Congo para fazer meu doutorado na Universidade de São Paulo. Fiquei dois anos. 75–77. Voltei de novo, a ditadura não me deixou tranquilo. Tive que sair de novo. Me auto exilar e comecei a trabalhar no Brasil, como professor visitante da Universidade Federal do Rio Grande do Norte num curso de mestrado, que eles acabaram de criar. Ciências Sociais depois, saí de lá, em 1980. Entrei na Universidade de São Paulo onde fiz toda minha carreira, passando por todas as etapas, professor tutor, livre docente, associado, até professor titular. Ocupei o cargo de diretoria, fui diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, durante seis anos. Fui vice-diretor do Museu de Arte Contemporânea da USP. Fui diretor do Centro de Estudos Africanos.

[NARRAÇÃO]

Traçando uma trajetória memorável como professor e pesquisador, Kabengele Munanga se torna referência nos estudos das relações étnico-raciais sobre o Brasil e África. Kabengele se instaura como uma referência pioneira de estudos das relações raciais brasileiras, compreendendo em caráter situados as apresentações do racismo no país: um lugar que passou por intensas dinâmicas de mestiçagem pela ideologia do branqueamento.

[SONORA]

Cada país que praticou o racismo, tem suas características diferentes dos outros. As características do racismo brasileiro são diferentes. Por quê que o brasileiro não se considera como racista ou como preconceituoso em termo de raça? Porque o brasileiro não se olha no seu próprio espelho, para ver as características de seu preconceito racial. Ele se olha no espelho do sul-africano, no espelho do americano. Se vê e olha: “Aqueles lá são racistas, porque eles criaram leis segregacionistas, nós não criamos leis, nós não somos racistas.”

[NARRAÇÃO]

O fenômeno descrito por Kabengele nada mais é do que o mito da democracia racial. A falácia progressiva e continuada, arraigada aos pilares da construção da identidade brasileira da negação da existência do racismo e a inexistência do preconceito racial. O Brasil, seria na cabeça de muitos, um paraíso racial. Paira no imaginário social brasileiro a falácia da não existência de uma das mais cruéis violências, sendo o racismo à brasileira, um crime perfeito.

[SONORA]

KABENGELE MUNANGA

A sociedade brasileira não é uma sociedade com a democracia racial. Porque nós convivemos com vários tipos de preconceito e de discriminação racial que desemboca em uma ideologia chamada racismo. O racismo à brasileira tem suas peculiaridades, um dos problemas é a negação da existência do próprio racismo e que fundamenta o mito da democracia racial brasileira.

[NARRAÇÃO]

A UNESCO em 1960 realizou uma pesquisa no país com o intuito de averiguar se de fato, não havia racismo no Brasil, com o objetivo de usá-lo como modelo para outros países após Segunda Guerra Mundial, confirmando a não existência da convivência harmoniosa entre as raças. O movimento negro brasileiro, desde a década de 1930, já apontava para o império construído pelo mito da democracia racial. Reduzindo a dinâmica racial à luta de classes.

O mito da democracia racial não somente esteve na construção da sociedade brasileira como continua a regular as relações raciais no Brasil. O silêncio do não dito é uma face do racismo à brasileira. O racismo brasileiro desmobiliza suas vítimas, nega a sua história, sua identidade e cria ambiguidades. No Brasil, para os brancos, os racistas são os outros.

[VÍRGULA SONORA]

[NARRAÇÃO]

Em um país tão marcado e alicerçado por um racismo tão sofisticado que arquiteta formas cruéis de ódio racial anti negro, poderíamos pensar vias para erradicação do racismo? Esta, é uma das perguntas que Kabengele nos coloca. Ao apontar para três possíveis vias que consideram a possibilidade de saída: as leis, a educação e as políticas públicas afirmativas.

[SONORA]

Kabengele Munanga

Perante a lei, somos iguais. Fórmula que não funciona porque a lei não tem nenhum efeito diante do racismo que nos torna desiguais por causa de nossas diferenças somáticas. A Constituição brasileira de 1988, considerada como democrática, estipula que qualquer discriminação racial flagrante é um crime inafiançável, sujeito à reclusão. Uma lei progressista cria força repressiva contra as práticas racistas e discriminações raciais. Mas é uma letra morta e que quase não funciona. E mesmo se funcionasse, ele poderia apenas atingir as práticas racistas observáveis e mensuráveis. E jamais os preconceitos raciais que se escondem no terreno em que as leis não atingem, isto é, na cabeça das pessoas, no inconsciente e na subjetividade. Sendo a parte mais profunda do iceberg que nós não enxergamos.

[NARRAÇÃO]

A lei apresenta limitações que não consegue abarcar demonstrações diversas do fenômeno do racismo. No entanto, a educação vem como uma via concreta de enfrentamento e combate para vislumbrar possíveis saídas para a erradicação. A atuação junto a formação dos indivíduos é um trajeto a ser trilhado, em um projeto de Brasil antirracista.

[SONORA]

KABENGELE MUNANGA

E nesse sentido só a própria educação é capaz de destruir o que criou e construir novos indivíduos que valorizam e convivem com a diferença. A questão é saber que tipo de educação oferecer. Certamente, uma educação antirracista, multiultural. Ou seja, uma educação pluriversal e não universal, baseada em uma única visão do mundo eurocêntrico. Uma educação que integra todas as histórias, todas as identidades culturais dos povos que aqui se encontram por questões históricas. Uma educação inclusiva que contempla todas as ancestralidades brasileiras: indígenas, africanas, europeias e asiáticas.

[NARRAÇÃO]

O silêncio nos atravessa e atravessou por muito tempo. Quando não nos vemos nos livros didáticos. A nossa história nos foi roubado e nos é negada. Nós não nos vemos no espelho da escola. A nossa auto estima enquanto portadores e produtores de conhecimento nos é cooptada. Nos aproximando da avaliação dos 10 anos da Lei 12.711 de 2012, a Lei de Ações Afirmativas, a Lei de Cotas, a universidade brasileira inicia, ainda a passos curtos, seu processo de ser outra. Estudantes negres e indígenas dentro das universidades estão descolonizando os currículos e retomando epistemologias pluriversais. Construindo um dia após o outro um novo espelho, onde novas gerações olharão e se reconhecerão.

[SONORA]

Kabengele Munanga

Eu acho que qualquer universidade é um projeto de sociedade. Apesar do caráter universal e universalista. Todas as universidades do mundo nasceram como um projeto de sua sociedade. Com o tempo conseguiram se difundir, se globalizar. Nessa globalização que nasceram as universidades colonizadas como no Brasil. Mas para crescer tem que produzir conhecimento de uma ciência que nos liberta. Não que nos aprisione em uma visão ocidental do mundo que nada tem a ver com a nossa história, com a nossa diversidade. Nesse sentido, que se faz a descolonização do conhecimento. Não apenas mudar as teorias e conceitos, mas mudar no nível científico. Se liberta-se. Claro que nós não vamos abrir mão das aquisições teóricas conceituais importantes, mas se [inaudível] a ver com nossa realidade, não tem porque a gente preso a isso. Devemos produzir novos conhecimentos, novos conceitos, novas teorias de acordo com nossa experiência de vida. Os projetos de nossa sociedade são diferentes dos projetos daqueles que criaram as universidades. Você não pode sempre ficar preso aos clássicos, aos modernos, aos pós-modernos, contemporâneos, se são simplesmente os outros, a gente tem que se ver nessa produção do conhecimento. Falar de nós mesmos, do nosso conhecimento, de nossa experiência de vida. Se tornar sujeito do discurso e não ser simplesmente objetos. E como intelectual se colocar em qualquer debate, em qualquer processo de transformação da sociedade, com base na nossa experiência de vida, que é uma experiência intransferível que faz parte do processo de conhecimento.

[TRILHA DE ENCERRAMENTO]

[NARRAÇÃO]

Esse é o último episódio da primeira temporada do podcast “Cumé que fica!?”, realizado pelo coletivo Retomadas Epistemológicas, com o apoio da Pró-reitoria de Assuntos Estudantis e do Centro Acadêmico de Ciências Sociais da Universidade Federal de Minas Gerais.

A apresentação foi da Gabriella Cipriano, que também foi produtora. A Steffane Santos e o Gabriel Nunes da Silva, fizeram a produção, montagem e sonorização dos programas. Esse episódio teve pesquisa e roteiro de Steffane Santos. A trilha sonora é da Slipstream.

Agradecimentos especiais à Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis da UFMG, ao Centro Acadêmico de Ciências Sociais e a Kabengele Munanga.

Os áudios usados nesse episódio foram retirados de vídeos públicos disponíveis no YouTube. Todas as referências e a bibliografia completa, você encontra no post desse episódio no Medium do Retomadas Epistemológicas.

Esse foi o “Cumé que fica!?”.

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