[TRANSCRIÇÃO] Cumé que fica?! — T1E2: Contra todo tipo de monocultura

Retomadas Epistemológicas
10 min readJan 31, 2022

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[NARRAÇÃO]

Intelectual guarani. Anticolonial! Tem mestrado em Psicologia Social. Integra a Articulação Brasileira de Indígenas Psicológes.

Geni Núñez se coloca frente a toda e qualquer forma de monocultura. Frente aquilo que nos emoldura e coopta as nossas subjetividades. As muitas formas de ser e estar nesse mundo nos são roubadas quando monoculturas entram em cena. Desconsiderando a nossa pluriversidade de pensar, amar e ser. Os binarismos perpetrados pela colonização e que se perduram através da colonialidade são limitantes às nossas multi formas de existência. Entre as nossas pluri formas de existir, nossa forma de pensar. Travar um embate frente a outras óticas de pensamento é demarcar a descolonização.

[SONORA]

Geni Núñez

No primeiro momento é importante lembrar que a colonização não acabou. Esse é um ponto de partida importante porque muitas vezes a gente pensa que colonização foi um processo histórico, lá da época de Portugal aqui no país, né. E que ele já acabou. Então, os pensamentos descoloniais, pós-coloniais, eles tentam justamente lembrar que esse processo não acabou e que os efeitos disso são muito fortes até hoje na nossa realidade. Então, uma maneira de descolonizar é descolonizar o pensamento. E uma estratégia de fazer isso, é questionar criticamente qual a real efetividade, das contribuições europeias que partiam de um humano que era um humano branco, heterossexual, sem deficiência, então esse que era o humano ideal. Então quando a gente toma esse conceito de humano e aplica numa prática nós temos aqui um contingente imenso de pessoas fica fora desse ideal de humano. Como por exemplo, população indígena, os povos negros, a população LGBT, as questões das pessoas empobrecidas né. Então descolonizar o pensamento é refletir até que ponto essas ferramentas de um certo contexto se aplicam ao nosso.

[NARRAÇÃO]

A premissa que traz a perspectiva do humano como uno, torna toda e qualquer outra diferenciação como Outro. Nos colocando em condição de Outroridade. Enquanto sujeitos que não podem pensar ou falar. Geni Núñez vem nos dizer que a branquitude e a cisgeneridade nos tornam outros. As hierarquias sociais entre humano e animal, natureza e cultura, hetero e homo, são um produto do pensamento perpetrado pela branquitude.

[SONORA]

Geni Núñez

Esse tema do humano e do animal, né, queria iniciar falando que ele faz parte de um grande quadro, que é um quadro do binarismo, no pensamento colonial, que é um dos traços principais que a gente tem chamado da colonialidade. Tanto esse binarismo que vamos focar mais hoje, quanto outros também, como natureza e cultura, homem e mulher, selvagem e civilizado, então, esses binômios todos são traços principais do pensamento colonial.

[NARRAÇÃO]

A colonialidade coloca em curso a supressão das identidades não brancas. Suprime as crenças de pessoas negras e indígenas como nós. O estado e a igreja são instituições que fazem funcionar essa máquina de moer nosso pensamento e logo a nossa cultura, de assolar a pluriversidade e a multiculturalidade. A falácia da civilização foi perpetrada por essas instituições a partir do racismo e etnocídio.

[SONORA]

Geni Núnez

Antes da Constituição de 1988 para o Estado, oficialmente, indígena era uma categoria… índio na verdade, era uma categoria social de transição né. Então conforme a gente se tornasse civilizado a gente deixaria de ser “índio”. E aí passaria a entregar outra categorias raciais, como branco, negro etc. Então, esse projeto de extermínio indígena, passa também pelo processo simbólico de extermínio das nossas identidades, que é o que a gente chama de etnocídio. Então a expectativa do Estado era de que sendo forçadamente integrados diga-se de passagem, a gente deixaria então de ser indígena né. E o eixo central desse processo etnocida, era e continua sendo, ser cristão, se você é cristão, você é civilizado, dentro desse projeto colonial. E isso tem uma relação muito forte também com a própria pauta, que é nossa pauta central, que é a pauta da demarcação das terras. Porque quando recusam pra gente as nossas demandas e tudo mais, é muito frequente que veem que não é índio de verdade. Que é “índio falso”, que até já usa roupa, e veem também essa questão do modo de vida. Então a igreja, sempre foi muito aliada do Estado nessa retirada das nossas terras né.

[NARRAÇÃO]

A colonialidade engendrou mitos, entre eles o mito da existência de uma história única. Que coloca em voga uma única forma possível de produzir e validar o conhecimento. Ou como prefere chamar Geni Núñez, uma narrativa ficcional.

[SONORA]

Geni Núñez

Os nossos esforços nos estudos anticoloniais é de mostrar como uma narrativa, dentre tantas outras possíveis, se tornou a única oficial. A única possível. Nesse sentido, todas as narrativas hegemônicas, elas são menos potentes do que as outras, não por um conteúdo a priori, mas por serem hegemônicas. O fato de uma narrativa se impor como única possível sob outras, já faz dela algo que produz violência. Então, a nossa crítica vai muito nesse sentido, essa ficção, eu tenho utilizado esses termos também para descolonizar um pouco o imaginário do que a gente associa quando pensa em folclore mitologia né, essas mitologias coloniais, fazem parte de uma invenção e essas invenções… Eu não tenho nada contra invenções, eu acho invenções, elas podem ser algo muito interessante. Mas a partir do momento que uma invenção ancora e legitima a violência, ela precisa ser problematizada. Então é nesse sentido que nós vamos trazendo essas questões, essas críticas, dentro dos movimentos indígenas e dentro dos nossos trabalhos.

[VÍRGULA SONORA]

[NARRAÇÃO]

O processo continuado de produzir um conhecimento que seja decolonial está atrelado ao ato de descolonizar os corpos. Descolonizar o pensamento envolve ir além da visão binária de mente e corpo. Pensar outros formas de se estar e se apresentar no mundo. A descolonização do pensamento é um processo contínuo, que engloba âmbitos diversos de nossa vida, para além do ambiente acadêmico, mas em nossas relações sociais, em nossas trocas e compartilhamentos inclusive afetivos. Romper com o racismo e a colonialidade nos nossos modos de fazer epistêmico e nos nossos modos de nos relacionar, é um caminho a ser traçado frente ao império de pensamento construído pela branquitude. Uma dessas ideias imperadas pela branquitude é a ideia de posse sobre o outro, sobre as coisas, sobre o mundo.

[SONORA]

Geni Núnez

As emoções elas não são universais. Você se relacionar com determinada situação de determinada forma emocional é datado historicamente, é de um contexto específico. As emoções não nascem com a gente. Desnaturalizar um pouco essa dimensão de que é algo difícil, porque se constrói como algo difícil. Você aprende o tempo todo que é algo difícil. Em Guarani, na nossa própria língua, em que a língua é uma dimensão muito central da cosmovisão de um povo, ela não é só a maneira como a gente narra o mundo, mas é como a gente existe no mundo. Então a língua também é o nós somos. Em Guarani a gente não tem palavra de posse. O que a forma de expressar é assim, por exemplo, eu, minha caneta, o minha não tem em Guarani, vai ter eu, caneta. Eu tô do lado dela, ela está próxima de mim, então ela é minha companheira nesse momento né. Então narrar, pela via de uma proximidade de uma coisa e não pela posse, já ta presente na nossa própria língua mesmo né. Então a nossa própria espiritualidade Guarani não tem a ideia de posse como um pressuposto. E aí não é a posse que eu estou falando apenas no nosso tema de hoje, mas a ideia de compreender que a terra não é nossa posse, que a água não é nossa posse, além de não ser uma propriedade, ela é nosso parente né. A ideia de parentesco ela está muito colada com o afeto né, quando é um parente seu, depende do parente também (risos), tem casos e casos, mas essa ideia de um laço de parentesco mesmo né, eu não preciso que alguém seja parecido comigo genética ou fisicamente para que seja meu parente. Pode ser meu parente porque a gente se relaciona de algum modo. E aí por exemplo, a relação que a gente tem com o ar, é extremamente íntima né, ela é inclusive a condição de possibilidade, para que a gente esteja vivo né. Então nada mais justo do que o ar, o vento né, ser nosso parente. Então essa ideia de que os seres são nossos parentes ela é um enfrentamento anticolonial a ideia de posse né, que vai desde as relações humano — humano até as relações com os outros seres né.

[NARRAÇÃO]

A perspectiva europeia que nos faz encarar as relações e as pessoas como propriedade, compreende uma face da presença da colonização em nossos modos de nos relacionar afetivamente ainda na contemporaneidade. O casamento, a divisão racial e sexual do trabalho e a ética amorosa, são resultado do desejo de dominação sob o outro. Amor nesse entendimento predominante é sinônimo de posse. As formas hegemônicas de se relacionar são constituídas pelo desejo de poder sobre o corpo alheio. Limitando os afetos, as possibilidades de partilha e ceifando um viés de relacionar-se que seja efetivamente libertador. Partindo de uma ótica cis-hetero-sexista de encarar as relações afetivas.

[SONORA]

Geni Núnez

Quando se traz a ideia né de que é possível vender a terra, também se coloca nesse conjunto todo de que nossos corpos também são produtos. E é um produto que rende inclusive economicamente, né. Então a ideia de monogamia parental né, ela é fundamental para restringir a circulação de renda né, então assim, rico, casa com rico, então essa renda circula ali e se eventualmente tiver traições e o fim de outras relações… tinha até um termo que agora tá menos em voga que era muito comum, que era o bastardo né.

15:23

Então a monogamia ela foi feita com esse objetivo de garantir que a circularidade da renda não se esvaísse para outras pessoas né. Então que ela ficasse ali, circunscrita. E aí essa ideia de propriedade, ela ta numa ideia de evolução né. Daí eu até queria citar a filósofa Oyèrónkẹ, ela é nigeriana, decolonial, e ela tem um trabalho muito lindo, em que ela fala justamente sobre essa questão, de que quando os jesuítas chegaram lá, porque embora tenha diferenças do processo de colonização de África e aqui da dita América, que a gente chama Abya Ayala, tem umas semelhanças também né, então ela coloca assim, que quando esse povo todo chegou lá, o que chocou mais esses padres, foi a não monogamia dos povos africanos do que a escravização. Então assim, era moralmente mais repudiante que se tivesse uma parentalidade, uma construção de família não monogâmica, do que moralmente reprovável a escravização.

[NARRAÇÃO]

Considerar formas outras de se relacionar permeia uma forma anticolonial de ser perpassado pelos afetos. E de entender o corpo do outro como seu e não algo a ser marcado enquanto nossa propriedade.

[SONORA]

Geni Núnez

Não monogamia para mim diz dessa postura de não se autorizar a legislar o corpo alheio né. Então nesse caso, não tem nada a ver por exemplo, com quantidade de pessoas com que você namora, com que você transa etc, mas tem a ver com essa postura de não internalizar né, de não colocar em prática na sua vida, esse pensamento de que o corpo da outra pessoa é um território que você poderia legislar porque é amado né. Então eu compreendo que a liberdade a gente exerce sobre si mesmo, não tem como exercer liberdade sobre o corpo do outro. Então é um pouco nesse caminho né, é uma breve definição assim, sobre não monogamia né.

[NARRAÇÃO]

Deslocar a branquitude de seu caráter somente próximo a de cor ou raça, bem como entender que a heterossexualidade não é apenas sobre práticas sexuais, é compreender que a colonização se encontra presente em muitas esferas de nossa vida. Entender a pluralidade e as formas de adotar a artesania dos afetos é desafiar o imaginário colonizador que nos atravessa enquanto indivíduos, é considerar uma forma anti capitalista das relações sociais e consolidar pontes para pensar numa descolonização para além do conhecimento mas presente em diversos campos de nossa vida, inclusive as nossas afetividades.

[SONORA]

Geni Núnez

Pensando essa relação de propriedade, quando a gente lembra que a escravização aconteceu muito nessa ideia de que é possível ser dono de uma pessoa então, essa ideia de que é possível ser dono de outro ser vivo, e não só ser dono desse outro ser mas vendê-lo, é um dos substratos da escravização.E para nós, povos indígenas, é impossível a gente ser dono de uma outra vida, seja uma outra vida humana, seja ser dono da terra, seja ser dono dos rios e das matas. E a partir do momento em que a gente não se autoriza a tratar outras pessoas como objeto inclusive nos próprios comentários a gente observa, “fulano quer roubar meu marido” ou coisa do tipo, como roubar um carro, como roubar uma bicicleta, como um objeto. Essa noção de propriedade, de posse, precisa ser encarada do ponto de vista que nós não devemos nos autorizar a participar desse tipo de premissa de uma propriedade de uma outra pessoa, então, nessa dimensão da artesania dos afetos, a gente pode entender e ir descobrindo qual o tipo de relação que faz sentido pra gente, e é uma resposta que só a gente consegue construir, só a gente consegue dar. Por isso que a monogamia, sendo um padrão e um modelo aplicado a todo mundo é algo que tende a dar errado.

[TRILHA DE ENCERRAMENTO]

[NARRAÇÃO]

O podcast “Cumé que fica!?” é realizado pelo coletivo Retomadas Epistemológicas, com o apoio da Pró-reitoria de Assuntos Estudantis e do Centro Acadêmico de Ciências Sociais da Universidade Federal de Minas Gerais.

O programa é apresentado pela Gabriella Cipriano, que faz a produção junto com a Steffane Santos e o Gabriel Nunes da Silva, que também montam e sonorizam. A pesquisa é da Aline Mendes e da Steffane Santos, que roteiriza esse episódio. A trilha sonora é da Slipstream.

Agradecimentos especiais à Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis da UFMG, ao Centro Acadêmico de Ciências Sociais e a Geni Nuñez.

Os áudios usados nesse episódio foram retirados de vídeos públicos disponíveis no YouTube. Todas as referências e a bibliografia completa, você encontra no post desse episódio no Medium do Retomadas Epistemológicas.

Esse é o “Cumé que fica!?”, até semana que vem.

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