Do amor à necessidade, três prostitutas de classes sociais diferentes contam por que fazem programa

Revista Babel - USP
8 min readJan 22, 2020

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Sonhos, curtição, maternidade e cocaína: Maria, Lorena e Roberta vivem em universos distintos e têm diferentes visões sobre o sexo pago.

Eram só sete da noite e a pele de Maria* já retraía na noite fria de São Paulo. Os doze graus e o vento ruidoso da Rua Augusta, no centro da cidade, cruzava suas pernas descobertas enquanto esperava seu primeiro cliente. Com roupas justas, a jovem, de 18 anos, se prostitui desde os 17 nas boates da região e num cabaré de luxo em Moema.

A motivação para isso é meramente pessoal: de família classe média e estudante do primeiro ano de um curso da Universidade de São Paulo (USP), ela quer juntar R$ 100 mil durante os quatro anos de faculdade para cursar inglês em Toronto, no Canadá, e dar entrada em um apartamento na capital paulista assim que se formar. Para isso, Maria trabalha três vezes por semana. Às terças-feiras e sábados, frequenta as casas de prostituição, e aos domingos faz serviço de vídeo chamada em um canal erótico.

“Tiro por semana cerca de mil reais. Se for cliente antigo, faço até desconto”, afirma ela, que é descendente de japoneses. “Ruim é quando aparece homem pão duro. Não me submeto a ganhar pouco. Tenho meu valor”, completa. Encostada na parede de um bar com quartos ao fundo, onde o entra e sai de homens é constante, a jovem de olhos puxados conta que é comum rapazes a avaliarem de cima a baixo sempre que aparece caracterizada.

“Já teve gente que perguntou se meus peitos são naturais, outros que disseram que gostam do meu jeito de menina. Parece que ser oriental e novinha são atrativos que valem mais que meu corpo”, acredita.

Amante da mitologia grega e da cultura inglesa, Maria gosta de estudar e divide seu tempo entre duas personalidades. Durante o dia, veste roupas largas, não se maqueia, lê clássicos da literatura, faz aulas de idiomas e vai à academia. Às vezes, arrisca até engatar um romance pelo Tinder. Mas à noite se transforma: usa batom vermelho, blusa decotada, mini saia e suspensório fluorescente. “Sou uma puta nerd. Amo tudo o que eu faço”, diz rindo.

Maria revela que pretende seguir na prostituição “enquanto aguentar”, pois lhe rende um bom dinheiro por mês. Pensa ainda em seguir carreira na indústria pornô e ser uma “grande atriz”. “Acho que levo jeito para a coisa”, imagina com um sorriso no rosto. “Mas meu medo é minha família me ver”, pondera. A universitária guarda consigo o sentimento de culpa por não contar aos pais sobre sua escolha. Ela nasceu sob a rigidez de uma família oriental, religiosa, e assegura que seus pais jamais aceitariam.

“Eles acham que eu ainda sou a menina virgem, recatada e do lar que só estuda e escolheu esperar. Me sinto suja quando penso neles”, desabafa ela, que mora em um apartamento na região central de São Paulo sozinha e longe dos parentes — moradores da região metropolitana da cidade.

Além dessa angústia, Maria convive também com o medo de atender homens violentos. “Teve um dia que deitei com um cara drogado e ele insistia em fazer sexo de um jeito que eu não faço. Inventei que ia pegar um brinquedo erótico, sai do quarto, chamei o segurança e sai pálida de tão assustada”, relembra.

O estupro

A jovem não é a única que se depara com situações tensas. Lorena, de 23 anos, se prostitui há sete meses e já foi vítima de estupro. Numa madrugada de janeiro deste ano, no Alto de Pinheiros, região nobre de São Paulo, ela entrou num Golf preto com dois homens para ir a um motel da região. Chegando no local, um deles apontou a arma em sua cabeça. “Relaxe que é um fetiche”, disse o abusador. “Desculpa, mas nós não conversamos sobre isso”, retrucou Lorena, negando a ideia. “Quer ir por bem ou por mal?”, ameaçou o outro rapaz.

A partir daí, a prostituta conta que sentiu na pele pela primeira vez o que é transar sem consentimento. Mesmo assim, ela nunca desistiu do ofício. A jovem mora na periferia paulista e, diferente de Maria, não usa o dinheiro dos programas para bancar sonhos e tampouco tem uma família estável como a da colega de trabalho. Grande parte do que ganha é usada para ajudar nas contas de casa, já que é a única da família que pode trabalhar.

Sua mãe, de 57 anos, foi vítima de um derrame cerebral há dois anos e desde então não trabalha. Seu pai alcoólatra foi vítima de um atropelamento de trem ao tropeçar, bêbado, nos trilhos da estação da Lapa, em São Paulo, quando ela ainda era pequena. E o irmão mais velho, de 31 anos, sofre com atrofia muscular desde a infância.

Apesar das dificuldades, o dinheiro que ganha dá para sustentar a família e, num futuro próximo, pretende largar os bordéis para cursar comércio exterior. “Quero parar de fazer sexo por dinheiro, arrumar um amor, trabalhar em um lugar bacana, casar e dar orgulho para a minha mãe”, deseja. No entanto, Lorena lamenta que essa realidade ainda esteja longe de se concretizar: ganha cerca de R$ 5 mil por mês na prostituição e analisa que dificilmente encontrará a curto prazo um trabalho que lhe pague tão bem quanto agora.

Ela revela que não se sente mal com o que faz hoje, mas se incomoda quando “aparece um homem feio, porco, mal educado ou que transa mal”. “Quando é homem bonito e faz [sexo] bem, eu saio no lucro. Me sinto desejada, satisfeita e ainda ganho grana para sentir prazer. Tem coisa melhor?”, brinca.

Quando a legalização é vista com bons olhos

Lorena trabalha duas vezes por semana em um prostíbulo da Vila Olímpia, onde, segundo ela, atende desde homens casados em crise com a mulher até policiais, políticos e celebridades da televisão. Sem citar nomes, ela conta ainda que já atendeu um ator da Globo e um jornalista conhecido da Record. “Tem uns que me pagam só para chorar, desabafar, receber carinho. Tem noite que encarno a psicóloga”, relata.

“Já vi todo tipo de cara. Tem menino de 18 anos levado pelos homens da família para perder a virgindade, o velho solitário, uns gordos suados, os fedidos e policiais que vêm armados… acho que para mostrar macheza”, expõe.

Os entraves fazem Lorena acreditar que violências podem ser combatidas com a legalização da prostituição. Legalizar, na visão dela e na de Maria, é uma forma de aumentar a fiscalização sobre abusos e propinas, além de colocar a mulher prostituta como uma trabalhadora registrada em carteira. “Nunca [os governos] fizeram nada para nos defender. Sou cidadã, estou todo dia na luta e exijo meus direitos como qualquer outra pessoa”, critica.

Os direitos que as jovens apontam são as garantias previdenciárias, acesso à Justiça para garantir o recebimento dos cachês e a segurança, que hoje, segundo Maria, só “dá as caras para cobrar propina de cafetão ou enxugar gelo resolvendo pequenas confusões”.

Évora, de 22 anos, concorda com as afirmações das colegas. Ela trabalha na região da rua Augusta e relata que é comum se deparar com arbitrariedades. “Agressões físicas, brigas e calote de clientes são coisas que acontecem todo dia”, analisa. “Precisamos de leis que nos fiscalizem e nos amparem. A prostituição não vai acabar criminalizando”, completa.

Nesse contexto, Camila Sposito, advogada e integrante da Rede Feminista de Juristas DeFEMde, explica que as prostitutas não têm como se defender de seus cafetões sem prejudicar seus sustentos. “Primeiro porque chamar a polícia ou a Justiça implicará no fechamento do prostíbulo; depois, porque dependem de seus agenciadores para cobrar clientes e fornecer-lhes segurança.”

Assim, a ativista acredita que uma política de regulamentação vai permitir que as prostitutas contem com o Poder Público ao seu lado para se defenderem dos abusos dos cafetões sem que percam os seus sustentos ou caiam nas mãos de policiais mal instruídos. “As condições de trabalho das prostitutas serão regulamentadas pelo Estado e não vão ficar submetidas às arbitrariedade dos puteiros.”

Gabriela Leite

A defesa por leis feita pelas mulheres acima tem respaldo no Projeto de Lei (PL) Gabriela Leite, de 2012, proposto pelo ex-deputado federal Jean Wyllys (PSOL/RJ). O nome da proposta é em homenagem à prostituta Gabriela Silva Leite, vítima de um câncer em 2013, aos 62 anos. Ela ficou conhecida na Boca do Lixo, ponto de prostituição e drogas de São Paulo, e se popularizou pelo ativismo em defesa dos direitos das mulheres.

O PL visa regulamentar a profissão do sexo em todo o País, mas nunca foi para frente. A iniciativa propõe uma aposentadoria especial após 25 anos de trabalho na área, a fim de evitar prejuízos à saúde ou à integridade física, conforme a lei nº 8.213, de 1991. Além disso, legaliza as casas de prostituição, permite a criação de cooperativas e proíbe que terceiros — como cafetões — se apropriem de mais da metade dos rendimentos da prostituta, bem como dá para a trabalhadora o direito de exigir na Justiça o pagamento pela prestação de serviços sexuais. Vale ressaltar que o projeto foi inspirado na lei alemã ProstG, que regula o ofício em todo o território nacional.

De acordo com Jean Wyllys, no documento oficial apresentado à Câmara, o objetivo não é estimular o aumento do número de profissionais do sexo, mas sim reduzir os “riscos danosos” da atividade e “promover a dignidade humana” das trabalhadoras. “A proposta caminha no sentido da efetivação da dignidade humana para acabar com uma hipocrisia que priva pessoas de direitos elementares, a exemplo das questões previdenciárias e do acesso à Justiça para garantir o recebimento do pagamento”, afirma o ex-parlamentar.

Em cima disso, Camila Sposito analisa que o PL Gabriela Leite garantiria às prostitutas a chance de tirar férias e permitiria que elas construíssem sindicatos para defender a categoria. Fora isso, elas contariam com a proteção jurídica contra possíveis casos de violações — hoje invisibilizados e tratados como casos de polícia. “Reclamações poderiam ser feitas na Justiça do Trabalho sobre eventuais infrações trabalhistas, coisa que hoje não é possível”, sublinha.

A advogada considera também que o PL garantiria mais receitas ao Estado, porque, do ponto de vista tributário, formalizar a atividade obrigaria os cafetões a reservarem parte de seus ganhos para arcar com impostos, contador e todo o cumprimento de regulamentação que uma empresa deve ter. “Se eles [os cafetões] não pagarem os benefícios trabalhistas às prostitutas, eles serão submetidos a multas e pagarão valores com juros e correção monetária”, explica.

O mundo que a lei não sustenta

Diferente das outras garotas da reportagem, que trabalham em casas de prostituição, Roberta, de 28 anos, se recusa a fazer programa nesses locais e se sustenta rodando as ruas da Penha, bairro da zona leste, e da Luz, no centro da cidade. De família “miserável”, como ela mesma diz, e usuária de cocaína e êxtase para se manter acordada por até 16 horas, ela se prostitui desde o nascimento de seu filho de sete anos para sustentá-lo e pagar o aluguel de uma kitnet na Boca do Lixo, em São Paulo.

Roberta estudou até o segundo ano do ensino médio, mora longe da família e envia todo mês uma mesada para sua mãe cuidar do garoto em Franca, interior do Estado. Apesar da carga horária puxada e de se viciar em drogas estimulantes para fazer o máximo de programas que conseguir, ela afirma que não tem perspectiva de largar a prostituição e é contra a legalização. Na visão dela, as boates sempre oferecerão à mulher deveres abusivos, mesmo com garantias trabalhistas.

“Tem puteiro onde a puta é obrigada a pedir para o homem pagar um drink para ganhar uma grana extra. E, se não topar, não entra para trabalhar”, afirma. “Aí a menina bebe a noite toda e vai se destruindo até chegar nos 25 com cara de 50, igual a mim”, completa ela. Para Roberta, essas são questões práticas que sempre vão ficar às escondidas nos prostíbulos do Brasil, porque mesmo com proteções do Estado, nenhuma mulher vai se rebelar contra cafetões. “São homens violentos, da máfia, que bota os polícia [sic] na mão e nenhuma lei segura. Se esse papo de lei funcionasse no Brasil, era para o povo viver num paraíso sem corrupção. Com a prostituição não é diferente”, critica.

*Os nomes das três prostitutas foram alterados

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Revista Babel - USP

A revista Babel é uma publicação semestral dos alunos do curso de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo — ECA-USP.