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Revista Torta
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6 min readApr 26, 2019

A desumanização sob a perspectiva da fragilidade e da força

Por Rafael Junker Simões

Editado por Arthur Almeida, Giovana Silvestri e Rafael Junker

Fonte: Reprodução Revista Piauí

Em Dezembro de 2018 ia às bancas a edição 147 da Revista Piauí. Na capa, um céu azul estrelado com Bolsonaro e dois de seus ministros — Sérgio Moro e Ernesto Araújo, à época já anunciados — representando os três reis magos que, segundo a religião cristã, visitaram e presentearam Jesus após o seu nascimento. Na cena, o presidente eleito, junto aos seus seguidores, levavam granadas, uma serra elétrica e um fuzil para o menino Jesus. Maria e José expressavam aprovação. É uma capa polêmica.

Entre os vários textos da publicação, um em particular é pertinente para o tema central do segundo dossiê da Revista Torta, “a banalização da violência na pós-modernidade”. João Moreira Salles dá vida ao texto “El Salvador: a respeito da força e da fragilidade” , trazendo referências de alguns livros e oferecendo um campo de análise singular sobre a desumanização. Embora o foco de Moreira Salles não seja necessariamente o fenômeno da desumanização, a articulação do seu texto permite a extração de algumas reflexões pertinentes sobre esse tema.

Aqui, essas reflexões serão mais bem trabalhadas e apresentadas sob alguns pontos de vista particulares. Este texto não se propõe a esgotar o tema da desumanização, limitando-se à apresentação de uma das várias abordagens que o tema pode receber. Com essas ressalvas, que faça-se luz*.

O filósofo Paul Ricoeur, em sua obra “O único e o singular”, afirma: “Onde há poder, há fragilidade. E onde há fragilidade, há responsabilidade”. Essa afirmação, presente no texto de Moreira Salles, impõe a todos uma responsabilidade por aquilo que é frágil, aquilo que está passível de acabar, de dissolver ou, para dar precisão linguística, aquilo que pode facilmente deixar de ser.

Foto por Vinicios Rosa | Modelo Gustavo Forcim

A partir daí, surge um outro ponto importante da fragilidade, desta vez melhor trabalhado pelo filósofo católico Jacques Maritain. Ele acreditava que o centro da discussão não deve ser as obrigações que as pessoas possuem ante o sofrimento alheio, mas, sim, os direitos que aqueles que sofrem possuem: o direito de ser. E essa lógica também pode ser aplicada à fragilidade que, por sua vez, deve ter garantido o seu direito de ser.

A fragilidade não está sozinha no mundo. Ela tem, como principal algoz, a força. E essa força, que ignora e subjuga o frágil, sempre com violência, pode ser traduzida em desatenção, em intolerância, em estupidez, em selvageria, em barbárie.

A existência da força não só se opõe à fragilidade, mas também à civilidade. A filósofa francesa Simone Weil, assim a define: “A força é o que transforma em coisa qualquer um a ela submetido. Quando se exerce a força até o fim, ela faz do homem uma coisa no sentido mais literal, pois o transforma num cadáver”. É nessas transformações em “coisa” que está a desumanização.

Durante o filme “Stalker”, do cineasta russo Andrei Tarkovsky, da boca de um dos protagonistas sai o seguinte: “Quando uma pessoa nasce, é fraca e flexível; quando morre, é forte e dura. Quando uma árvore cresce, é tenra e flexível; quando se torna seca e dura, morre. A dureza e a força são atributos da morte. A flexibilidade e a fraqueza são a frescura do ser. Por isso, quem endurece nunca vencerá”.

Simone Weil e o protagonista do filme de Tarkovsky defendem que o ser humano é frágil. A fragilidade é uma condição humana. Portanto, o seu oposto, isto é, a força, é aquilo que desumaniza. Uma vez que a desumanização acontece, as consequências humanitárias surgem.

Exemplos concretos disso não faltam. Os judeus vítimas do nazismo, os negros vítimas do racismo, as mulheres vítimas do machismo, os opositores ao regime vítimas da ditadura, as minorias políticas vítimas da maioria, a direita vítima da esquerda, a esquerda vítima da direita. E essa lista segue, mas, para não estender este texto mais do que necessário, para por aqui.

Foto por Vinicios Rosa | Modelo Maria Eduarda Tarda

É importante destacar que a força e a desumanização não estão restritos somente à essa oposição binária — problemática em vários sentidos — entre um lado e outro do espectro social, mas pode se manifestar em todas as relações humanas.

Uma vez apresentadas as consequências da desumanização pela força, é preciso, também, apresentar as causas, que são muitas. Ainda no texto de Moreira Salles, Simone Weil é invocada para expor a noção de enraizamento que, por sua vez, estaria relacionada à felicidade.

Weil afirma que a sensação de enraizamento, ou felicidade, é uma espécie de acolhimento no mundo, de pertencimento, de sentir-se em seu lugar natural. No entanto, algumas coisas provocam o desenraizamento. E o desenraizamento abre espaço para a força entrar em cena.

A raiz pressupõe uma familiaridade com o mundo que depende de uma certa ordem das coisas. O estabelecimento da família, a constituição das relações, o tempo de trabalho, o tempo de descanso, a ocupação dos espaços, a situação financeira, e por aí vai. Quando essa ordem se rompe por meio da desordem, quando o cosmos vira caos, a sensação de desenraizamento surge e, junto a ela, a força. E depois disso já se sabe o que acontece.

Outra coisa que tem potencial de desenraizar, e está também relacionada à desordem, é o medo. A força é uma das principais aliadas do medo. Aos fãs de “Star Wars”, um exemplo familiar é a situação de Anakin Skywalker, que, antes de virar o Darth Vader, tinha medo que sua esposa Padmé Amidala morresse após ou durante o parto de Luke e Leia.

E foi esse medo que o fez recorrer ao “lado sombrio” da força — que, no âmbito deste texto, é somente força. E, feito isso, Anakin foi desumanizado tornando-se o temido Darth Vader. É claro que vários outros sentimentos existiam e que essa é uma interpretação singular e, em alguns aspectos, redutora da transformação de Anakin.

Para que este texto não seja somente de causas e consequências da desumanização, da força; para que se evite dar uma visão caótica do mundo, o encerramento será com uma citação de Simone Weil, também presente no texto de Moreira Salles que, como já dito, é o núcleo formador e inspirador deste texto.

Weil entende que, como forma de combater a força, é preciso exercer as virtudes contrárias a ela. Essa é a única possibilidade. Se a força oferecer a estridência, ofereça a ela o diálogo, a solidariedade, o cuidado, a atenção e a compreensão.

Nas palavras da filósofa francesa: “Não devemos pensar que havemos de vencer apenas por sermos brutais, menos violentos, menos desumanos do que aqueles que estão diante de nós. A brutalidade, a violência, a desumanidade têm um prestígio imenso […] As virtudes contrárias, para que tenham prestígio equivalente, devem ser exercidas de maneira constantes e efetiva. Quem é apenas incapaz de ser tão brutal, tão violento, tão desumano quanto o outro, sem contudo exercer as virtudes contrárias, é inferior a esse outro seja em força interior, seja em prestígio; e não se sustentará no confronto com ele”.

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* Referência à expressão latina fiat lux, cuja tradução livre é faça-se luz. A expressão remete à criação divina da luz, do universo descrita em Gênesis 1:3.

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