“E se eu me perder?”: os caminhos de Juliana Diniz

Ricardo Evandro S. Martins
10 min readNov 29, 2024

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Ensaio sobre o mais novo livro da escritora cearense Juliana Diniz, “Sob o sol de Lisboa” (Editora Patuá). Por Ricardo Evandro S. Martins. Belém, 29.11.2024.

Juliana Diniz. Foto de Jamille Queiroz

Sob o sol de Lisboa (Patuá, 2024) é o mais novo livro da escritora e professora cearense Juliana Diniz. Diferentemente de suas obras anteriores, como O instante-quase (7 Letras, 2016), O mergulho (Megamini, 2017) e Memória dos ossos (Dumar, 2018), este seu novo livro é um ensaio literário.

A forma de ensaio é antiga. São famosos os Ensaios de Michel de Montaigne, em que se reflete sobre temas filosóficos, existenciais, afetos, virtudes, sentimentos como solidão, tristeza, morte, além de temas históricos. Mas o ensaio de Juliana Diniz acrescenta a esta forma o seu olhar de viajante solitária, de observadora perspicaz, sua experiência de flâneur na capital de um império que, no passado, arrogou-se ser “dono do mundo”, ou de pelo menos de metade da Terra, durante o tempo colonial.

Juliana Diniz realiza uma verdadeira “geografia poética”[1] de Lisboa. Escrito em primeira pessoa e pela sua forma de escrita andarilha, algumas vezes etnográfica, Juliana mostra que é uma “ourives das palavras” — título de um livro mencionado em Trem noturno para Lisboa (2013).[2] Pelo seu texto, é possível até mesmo enxergar a capital portuguesa como se ela estivesse nos narrando em off a nossa “flanagem” de leitor. Como um leve tecido que dança pelo ar, junto à Juliana, percorremos aquelas estreitas ruas, pisamos naquelas antigas pedras, ouvimos as conversas dos turistas, olhamos desejantes o singular azul do céu de Lisboa por entre seus miradouros.

Embriagados de vinho, extasiados de açúcar dos pastéis, estimulados pelo café, exaustos das longas caminhadas, Juliana consegue fazer com que nos aproximemos de sua experiência pelas ruas íngremes de Lisboa, as quais nos conduzem a um tempo desaparecido.[3] Juliana está ciente disto, como ela diz: “Eu respiro e, muito calma, sinto o gosto do açúcar desmanchar na boca, deixo que o corpo ceda ao álcool da bebida, noto a ousadia do vento agitando a minha saia, espero e observo, deambulando como uma tartaruga, na imagem do flâneur traçada pelo Walter Benjamin”.[4]

Mas sua escrita andarilha também é escafandrista. Em Sob o sol de Lisboa, Juliana Diniz mergulha na história contada pelas ruas da antiga metrópole europeia e por uma mulher latino-americana, de um país que já foi sua colônia. Juliana não se esquece disto. E ela também nos lembra da possível relação direta deste passado colonial, escravocrata, com a xenofobia que cresce, cada vez mais, conjuntamente à extrema-direita contemporânea lusitana.

A autora sabe que isto é assim em toda Europa e sente que “(…) a relação dos portugueses com os imigrantes é de uma hostilidade ora velada, ora explícita”.[5] E entre aquelas belas imagens poéticas de Lisboa, dentre tantos documentos de cultura, como o Monumento ao Navegantes, “ode anacrônica ao colonialismo”, Juliana Diniz percebe também a dialeticidade deste passado.

Um fato trágico e incontornável à história de Lisboa é recordado por esse seu mais novo livro. Em 1755 um abalo sísmico assolou Lisboa, destruindo casas, conventos. Mas a cidade logo se reergueu e de modo muito diferente do que era. A partir de suas ruínas, com a reconstrução, Lisboa, então, fica “[m]ais aburguesada, coquette, inspirada pelo temperamento do Marquês de Pombal, que não concedeu tempo às lamentações.”[6]

Mas a marcha para o moderno futuro do Iluminismo pombalino — o mesmo que expulsou os jesuítas da Amazônia brasileira e que proibiu a língua geral tupi-jesuíta, por aqui, o nheegatu — não passou ileso de críticas. Conforme nos conta Juliana Diniz, “Gabriele Malagrida, jesuíta milanês radicado em Lisboa depois de uma temporada na região que hoje, no Brasil, é o Pará” foi uma das vozes que imputaram culpa aos próprios lisboetas pelo terremoto a que padeceram. Para o jesuíta, foram “(…) ‘unicamente os nossos intoleráveis pecados’ os grandes culpados pelo sismo”.[7]

No seu ensaio sobre Lisboa, Juliana Diniz não fantasia o violento passado do Império lusitano. Segundo diz, “[n]a pacata Lisboa há um sangue que escorre timidamente entre os arabescos dos azulejos, cobrando uma prestação de contas que nunca se deu, das muitas almas condenadas ao fogo e às penas dos autos de fé, das muitas horas de trabalho roubadas em territórios muito longínquos.” [8] Afinal, a história do Império português também é a história da barbárie contra aqueles que um dia foram chamados de “bárbaros” — e, depois, esta violência arcaica de Estado chegaria, inclusive, em outra proporção, a vitimar o próprio povo português, por boa parte do século XX, durante o período da ditadura de Antônio Salazar.

Mas em Sob o sol de Lisboa, a escritora cearense tenta, ao mesmo tempo, enxergar a capital de Portugal sob uma melhor luz: “Não sei se os lisboetas entendem que a cidade nunca foi verdadeiramente portuguesa, é antes uma espécie de porto ou ponto de partida, um lugar onde a noção que temos de viagem foi inventada.” [9] E, neste porto, Juliana Diniz realiza seu “exercício de ver”[10], uma tarefa que não se reduz ao sentido da visão, pois também é uma tarefa de corpo, mesma matéria que faz o mundo — “feito do estofo mesmo do corpo”, como dizia Maurice Merleau-Ponty.[11]

Diferentemente do Brasil, “em tudo, terrivelmente imenso”[12], Juliana Diniz não vê Lisboa como uma “(…) cidade marítima nem fluvial, mas um sítio de transição”. Sabe-se que o aeroporto da capital de Portugal, hoje, é a porta de entrada à Europa pelos americanos — de todos nós, os do Sul, do Centro e do Norte. É uma cidade-porto, uma cidade-portal, uma cidade-trânsito, mas que, no tempo de Napoleão, foi “a última fortaleza da confiança europeia”.[13]

Falando em “fortaleza”, Juliana Diniz é da capital do Estado do Ceará. Uma das maiores cidades de um dos maiores países do mundo, a cidade de Fortaleza é “previsível em suas esquinas”, razão pela qual, em Sob o sol de Lisboa, Juliana confessa que precisou “de paciência até assimilar a sinuosidade das curvas e o desafio das ladeiras da capital portuguesa”. Ao contrário de sua cidade natal, Juliana encontra em Lisboa uma cidade imprecisa, com “um norte impreciso, curvo, nunca se sabe quantos caminhos as colinas preenchidas por sobrados irão oferecer”. [14]

Sob o sol de Lisboa também trata, portanto, da partida da autora em busca de si mesma numa outridade — em dialética, na condição de mulher, tendo sido, ela mesma, tornada como o Outro, como já disse Simone de Beauvoir.[15] Apesar de ter feito de Lisboa o jardim de suas “expectativas mais doces”, na sua metódica errância, cartógrafa de sua perdição, Juliana Diniz tem consciência de que é uma flâneuse — neologismo criado Lauren Elkin, em que define a forma feminina do flâneur, enquanto “uma ociosa, uma observadora errante”; uma forma de vida pela qual uma mulher clama: “Me deixem sentir a vida passar por dentro e a minha volta (…) A cidade estimula, põe a gente a andar, a se mover, a pensar, a querer, a se envolver. A cidade é a própria vida.”[16]

E por ser flâneuse, em sua caminhada solitária pelas ruas sem iluminação, sem festa, “que à noite só oferecem um silêncio sonolento”, Juliana sente “medo de olhar para os becos e encruzilhadas do trajeto. Pequenos portões que podem dar para um pátio interno ou para um buraco de onde sei que não sairei jamais, esquecida da luz da tarde, da expectativa que o ato de flanar alimenta.”.[17]

Lisboa é ensolarada, sim, mas também é um lugar de histórias ocultas, amores impossíveis, arruinados, de saudades que precisam de arqueólogos, de escafandristas de sentimentos materializados em objetos vendidos, perdidos como tesouros sem valor, numa caravela naufragada: “Quem sabe os arqueólogos também sejam capazes de escavar o invisível, assim como os objetos que se pode tocar e espanar, um pouco como os escafandristas da canção do Chico Buarque, a revirar, em lentos movimentos aquáticos, os desvãos da alma de amantes submersos há muito tempo.”.[18]

Talvez junto aos restos das ruínas do terremoto de Lisboa, a escafandria de Juliana Diniz encontra, então, entre sebos e antiquários, a memorabilia de gente desconhecida, objetos, livros raros, os quais formam uma coleção de coisas que não temos como trazer conosco nas malas da volta para casa. No seu inventário de coisas que não serão trazidas como meros suvenires, Juliana encontra nas feiras de antiguidades um verdadeiro sítio arqueológico.

Agora, então, Lisboa não é apenas um porto, “sítio de trânsito”, tampouco se reduz a um espaço, criado no tecido temporal, para se reviver um passado melancólico. Lisboa é um lugar de experiência com as manchas, cheiros, com a oxidação, com marcas de vida, cujas angústias e sonhos frustrados podem estar escondidos nestes objetos, como “(…) [m]oedas e cédulas antigas. Revistas de moda. Broches oxidados. Livros com manchas e cheiro de décadas. Pares de brinco com detalhes em pérola. Um quimono chinês com uma marca de cigarro.”[19]

Sob o sol de Lisboa é o diário de campo de um mergulho no vistoso, ao mesmo tempo que etéreo, ar de Lisboa. Um mergulho nas profundezas do espaço-tempo, manejando poesia, reflexão e uma certa melancolia, tendo um objetivo: um caminho de volta, talvez para casa, talvez para o amor, mas certamente para si mesma; não à mera mesmidade de si, idêntica; mas um retorno a uma diferença a qual implica uma alteridade — um “si-mesmo considerado… outro”, como diz Paul Ricoeur.[20]

Essa si-mesma, que é outra, demanda algum grau de perdição, de errância própria às andarilhas, próprio a todos os viajantes — como nos versos de Fernando Pessoa, viajar é “ser outro constantemente/Por a alma não ter raízes/De viver de ver somente!/Não pertencer nem a mim!”[21]. E esta é uma outra preocupação presente em Sob o sol de Lisboa: “E se eu me perder? (…) E se, pelos caminhos, houver algum imprevisto, e as comunicações se tornarem inaudíveis, incompreensíveis?”, pergunta Juliana. E uma resposta é dada a ela: “É só seguir o caminho da água”.[22]

Mesmo munida de seu escafandro, ainda sim Juliana Diniz não está satisfeita. Simplesmente “seguir o caminho da água” não dá garantia do correto retorno de onde se partiu, pois, afinal: “É um trabalho ingrato esse de seguir o rumo das águas, porque não há nada mais imprevisível do que os caminhos de um mistério.[23] Há sempre o risco de não se sair do lugar. Como ela diz em Sob o sol de Lisboa: “A água é uma divindade indecisa. Se todas as vias forem invariavelmente para o mesmo mergulho na gravidade, distribuindo-se em múltiplas rotas, é uma escolha arriscada, tomada às cegas, que nos leva de volta a nosso lugar.” [24]

Esse é o fardo, ou melhor, o fado, o destino dos viajantes, dos mergulhadores-andarilhas. Nunca se sabe para onde se irá, para qual caminho se deve nadar no fundo do mar de memórias e perspectivas. À deusa pagã Fortuna estão nossos caminhos, nossos amores — ou à Trivia ou ao Exú, deusa e orixá das encruzilhadas. Por outro lado, de modo concreto, uma hora tem de se voltar. Na vida cotidiana, no fim das férias, da viagem, deparamo-nos com o “cumprimento do dever, voltar. É um ritual que conclui a partida, vivido com uma sensação oposta à chegada, entristecida pelo ângulo do sol que se põe.”.[25]

Enquanto “a chegada tem gosto de laranja.”[26], pergunto-me ao terminar de ler Sob o sol de Lisboa qual seria, então, o gosto da partida? Do retorno?

Juliana Diniz não tenta responder a isto. Seu ensaio de poética geográfica sobre Lisboa deixa espaço para que tenhamos nosso próprio juízo de gosto sobre “o retorno”, sobre a chegada. Estar de volta a nossa casa é também uma experiência estética.

Mas tal experiência não se pode esquecer do verso de Max Martins, citado por Juliana Diniz. Poeta paraense, da minha cidade, Belém — a brasileira, não a de Lisboa –, no seu poema A cabana, Max recorda que nossa casa não é lugar de ficar, mas “lugar de onde se ir”.[27] E Juliana Diniz escreve seu ensaio-diário de viagem, caderno de campo de uma escafandrista de memórias, geógrafa da poesia de Lisboa, como um convite para se perder, para a partida, mas também como um mapa de um caminho possível de volta para casa: o caminho de um retorno a uma si-mesma como Outra; “Um mapa do que fui, do meu espírito aquecido pelo sol”.[28]

Notas:

[1] Cf. ONFRAY, Michel. Teoria da viagem: uma poética da geografia. Lisboa: Quetzal Editora, 2019.

[2] Filme dirigido por Billie August, 2013.

[3] Cf. BENJAMIN, Walter. Flâneur. In: Passagens. Belo Horizonte: UFMG, 2018.

[4] DINIZ, Juliana. Sob o sol de Lisboa. São Paulo: Patuá, 2024, p. 23.

[5] DINIZ, Juliana. Sob o sol de Lisboa. São Paulo: Patuá, 2024, p. 63.

[6] DINIZ, Juliana. Sob o sol de Lisboa. São Paulo: Patuá, 2024, p. 28.

[7] DINIZ, Juliana. Sob o sol de Lisboa. São Paulo: Patuá, 2024, p. 29.

[8] DINIZ, Juliana. Sob o sol de Lisboa. São Paulo: Patuá, 2024, p. 29–30.

[9] DINIZ, Juliana. Sob o sol de Lisboa. São Paulo: Patuá, 2024, p. 64.

[10] DINIZ, Juliana. Sob o sol de Lisboa. São Paulo: Patuá, 2024, p. 23.

[11] MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 20.

[12] DINIZ, Juliana. Sob o sol de Lisboa. São Paulo: Patuá, 2024, p. 51.

[13] DINIZ, Juliana. Sob o sol de Lisboa. São Paulo: Patuá, 2024, p. 67.

[14] DINIZ, Juliana. Sob o sol de Lisboa. São Paulo: Patuá, 2024, p. 67.

[15] BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. São Paulo: Difusão europeia, 1970, p. 19.

[16] ELKIN, Lauren. Flâneuse: mulheres que caminham pela cidade em Paris, Nova York, Tóquio, Veneza e Londres. São Paulo: Fósforo, 2022, p. 17;51.

[17] DINIZ, Juliana. Sob o sol de Lisboa. São Paulo: Patuá, 2024, p. 43–44.

[18] DINIZ, Juliana. Sob o sol de Lisboa. São Paulo: Patuá, 2024, p. 30.

[19] DINIZ, Juliana. Sob o sol de Lisboa. São Paulo: Patuá, 2024, p. 74.

[20] RICOEUR, Paul. Si-mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 1991, p. 14.

[21] PESSOA, Fernando. Viajar! Perder países! Disponível em: http://www.jornaldepoesia.jor.br/fpessoa253.html

[22] DINIZ, Juliana. Sob o sol de Lisboa. São Paulo: Patuá, 2024, p. 69.

[23] DINIZ, Juliana. Sob o sol de Lisboa. São Paulo: Patuá, 2024, p. 70.

[24] DINIZ, Juliana. Sob o sol de Lisboa. São Paulo: Patuá, 2024, p. 70.

[25] DINIZ, Juliana. Sob o sol de Lisboa. São Paulo: Patuá, 2024, p. 78.

[26] DINIZ, Juliana. Sob o sol de Lisboa. São Paulo: Patuá, 2024, p. 78.

[27] MARTINS, Max. A cabana. Disponível em: http://www.culturapara.art.br/Literatura/maxmartins/obras1.htm

[28] DINIZ, Juliana. Sob o sol de Lisboa. São Paulo: Patuá, 2024, p. 81.

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Ricardo Evandro S. Martins
Ricardo Evandro S. Martins

Written by Ricardo Evandro S. Martins

Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Para

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