Mário Liberato e nós

Ricardo Sabóia
5 min readAug 20, 2021

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Revisitando uma personagem e nossas representações

Li, recentemente, uma reportagem interessante sobre a novela Roda de Fogo. Nela, reconstituíam-se as relações entre a trama, que foi ao ar de agosto de 1986 a março de 1987, e a emergência da Nova República. Quando exibida originalmente, eu tinha oito anos, guardando poucas lembranças além dos protagonistas e das famosas cenas em que o empresário corrupto Renato Villar (Tarcísio Meira, ator recém-falecido vítima da covid) sofria de fortes dores cerebrais, tudo ao som de uma sonoplastia extravagante.

A lembrança, porém, não faz justiça à qualidade da novela, que passei a rever na plataforma de streaming Globoplay. Consta que Roda de Fogo, escrita por Lauro César Muniz e Marcílio Moraes, não foi um enorme sucesso de audiência (os números começaram a crescer, porém, após uma fase inicial de rejeição do público) e, mais de três décadas e sete presidentes depois, calhou de estar temporalmente entre duas produções consideradas antológicas para se pensar o Brasil pós-ditadura: a alegórica Roque Santeiro (lançada um ano antes) e a urbana Vale Tudo (exibida um ano depois). Numa leitura que muito recomendo, “O Brasil Antenado: a Sociedade da Novela”, da pesquisadora Esther Hamburger, Roda de Fogo não ganha muito destaque, sendo citada como parte de um conjunto de tramas que, entre os anos 1980 e 1990, “multiplicaram as referências a símbolos nacionais” e aos modos do Brasil se retratar e se pensar na TV.

Há em Roda de Fogo, porém, um bom elenco e personagens com inegável apelo histórico. Maura (Eva Wilma) é uma guerrilheira traumatizada que retorna ao Brasil em 1986, pelas bênçãos do protagonista. Este, por sua vez, é casado com Carolina D’Ávila, uma ambiciosa quatrocentona que sonha em ser futura primeira-dama do país, encarnada com toda pompa oitentista (leia-se mangas bufantes e ombreiras) e muito talento por Renata Sorrah, naquele que me parece um de seus grandes papéis na televisão. Um triângulo amoroso surge quando Villar conhece a juíza Lúcia Brandão, vivida por Bruna Lombardi, inflexível nos seus julgamentos e na convicção de uma democracia a ser construída sem qualquer leniência com os criminosos, até se ver apaixonada por… Renato. Uma das melhores é o General Hélio D’Ávila (Percy Aires), que consegue sintetizar toda a decadência e anacronismo de costumes que as Forças Armadas representavam ou deveriam ter dali por diante no novo Brasil. Numa cena, o milico escuta de Carolina, sua sobrinha: “Um general na Presidência [das empresas, o texto é propositalmente ambíguo]? Ora, tio Hélio, que coisa mais fora de moda!”.

E há Mário Liberato. Deste, de quem eu tinha muito pouca lembrança, recordo dos sussurros que vez ou outra chegavam aos meus ouvidos: ele era “homossexual”, gostava de homens! E que era o vilão da novela. Liberato é vivido por Cecil Thiré, também em grande atuação. Amigo e advogado de Renato Villar, torna-se ao longo da trama seu antagonista. Vive num apartamento com o mordomo Jacinto (Cláudio Curi), com quem compartilha segredos, uma relação de confiança e devoção, gestos de intimidade discreta e, às vezes, não tão discreta.

O advogado revela-se, na trama, ambicioso. Fala francês, tem “bom gosto” (leia-se, costuma ser retratado ouvindo música clássica), veste ternos que, considerando estarmos ali nos anos 80, apresentam corte na medida. Ao assumir o papel de vilão, porém, Liberato revela-se sem limites e, não raramente, é apresentado como sádico, perverso, sem escrúpulos. Numa das cenas, é sugerido um gozo da personagem ao ouvir o relato de uma tortura psicológica submetida à personagem da ex-guerrilheira, encomendada por ele para atingir o rival (e objeto desmedido de sua admiração) Renato. Sadismo, perversão, desvios de caráter apresentados quase como inatos, convenhamos, era indissociável, algo muitas vezes lembrado por algumas personagens, de Mário “ser o que é”, ou seja, homossexual.

Numa fase mais avançada da novela (não contarei o contexto para não dar spoiler), contudo, Liberato reivindica à personagem de Sorrah, de quem era grande amigo, não ser enquadrado no que hoje chamaríamos de uma identidade única. Como ler a declaração? Não me parece que pelo imperativo do enrustimento ou mesmo da censura oficial (ainda vigente, mesmo que mais branda, quando a novela foi exibida), mas de um feixe de relações e interesses (sexuais, afetivos, financeiros etc) que ora reforçam sua vilania, ora também o humanizam como vilão. Cabe a ressalva que era totalmente compreensível, num momento em que nossa dramaturgia tinha tão poucas personagens gays, e menos ainda em papéis de destaque, a cobrança no modo como a personagem sugerida como “homossexual” fosse representada, levando a críticas, sobretudo, do ativismo de então.

Representações — Em quase vinte anos como professor de disciplinas como Teoria da Comunicação, Mídia e Cultura de Massa e outras afins, um dos grandes desafios que percebo, quando peço a alunos e alunas que analisem representações midiáticas, é que tentem compreendê-las como culturalmente complexas e, mais importante, contraditórias. É fundamental identificar leituras hegemônicas ou reiterações ideológicas de determinados enquadramentos numa produção que abrange dos quadrinhos à música e aos programas de TV e estruturam boa parte do nosso cotidiano. Contudo, sempre parece mais difícil lidar com as dimensões conflituosas e que transcendem intenções “positivas” ou “negativas”, presentes até mesmo em recursos discursivos como estereótipos e clichês. Do mesmo modo, situá-las numa leitura que não perca sua historicidade nem deixe de considerá-las em relação a outros conjuntos de relações que incluem e extrapolam aquilo que é representado.

O mais interessante em Mário Liberato, assim, além do seu protagonismo (ou antagonismo), é sua ambiguidade, algo que muitas vezes escaparia a personagens gays posteriores (estou me restringindo, nessas lembranças, a personagens masculinos) que, apesar do mérito de serem assumidos, encarnam modelos mais planos, unidimensionais de uma identidade gay. Lembro-me, particularmente, do casal da novela Paraíso Tropical (2007), vivido por dois homens sarados, indiscutivelmente reconhecíveis como “casal gay”. Evidente que tal modo de representatividade de um relacionamento, difícil de se estar, ao menos mais explicitamente, nas telas do horário nobre nos anos 1980 (um contraponto interessante era o casal lésbico de Vale Tudo), é por si um elemento cultural de análise poderoso quando interrogamos nossa TV (e país) já na primeira década do ano 2000, época de Paraíso Tropical. Mas basta olhar que tal “avanço” se dá a partir de um casal que era tão “limpo” e desprovido de conflitos que muitos espectadores questionaram, com razão, sobre a falta de clima, afeto e desejo entre as personagens. Nem mesmo isto costuma aparecer como sugestão.

Seja como for, rever Mário Liberato me fez, sobretudo, tentar buscar na memória as vagas lembranças dele na TV do meu lar, nos anos 80. Não merecemos o rótulo eterno e inflexível de vilões ou desviantes, claro, nem podemos esquecer como isto foi (e é) fonte histórica de dor. Mas também fico imaginando que quando somos maus, somos mesmo ótimos. Pensei, agora, num encontro de Liberato e Félix, outro vilão mais contemporâneo, que me reapareceu ao escrever este texto. Vivido pelo ator Mateus Solano, Félix tornou-se o grande nome de Amor à Vida (2013–14), caindo nas graças do público e protagonizando o primeiro beijo entre dois homens nas novelas globais. Na ocasião, dava uma aula noturna sobre metodologia de pesquisa em Comunicação e, enquanto tentava me concentrar, remoía: preciso correr para casa e ver o beijo, se vão finalmente exibir ou não isso no horário nobre da Globo. São essas rupturas, pequenas ou, em certos casos, situadas entre modestas e inovadoras, que nos marcam no tempo da história. Onde ou como você estava quando veio aquele beijo?

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Ricardo Sabóia

Professor// Comunicação (UFPE/CAA)// Jornalista// Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas// Doutor em Sociologia