‘A fofura não liga para o julgamento, e é enfurecedora para o poder.’: Entrevista com Maya B. Kronic e Amy Ireland — Clarice Pelotas (2024)

Clarice Pelotas
26 min readMay 26, 2024

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Nota da tradutora: a entrevista original está disponível aqui.

Quaisquer dúvidas, sugestões ou críticas podem ser encaminhadas para o meu email: lesbicavampirica@tutanota.com

Espero que gostem.

Com amor,

Clarice Pelotas.

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Circuitos de Fofurização e a Trajetória da Fofura no Espaço da Possibilidade, do livro Cute Accelerationism (por Inigo Wilkins).

Em primeiro lugar, eu gostaria de agradecer à Maya e à Amy por terem aceitado a entrevista. Aqui no Brasil ainda existe pouco material traduzido sobre aceleracionismo mas existe um interesse crescente sobre o tema.

Maya B. Kronic (MBK): Obrigada por ter nos chamado! Uma das coisas que nós insistimos a respeito no Cute Accelerationism é que o aceleracionismo é plural, aceleracionismos, cada um surgindo de um conjunto de encontros, desejos, compulsões, perversões … Estamos animadas em ver quais formas o aceleracionismo tem tomado no Brasil. Temos aprendido, através do trabalho da Urbanomic com Fernando Zalamea, de nossa tradução recente de Inferno Verde de Alberto Rangel e do livro de Éric Alliez sobre Ernesto Neto (Corpo Sem Órgãos, Corpo Sem Imagem), que os países latino-americanos possuem uma relação muito singular com a modernidade. Zalamea retrata-os como uma zona fronteiriça ‘naturalmente propensa à mistura e à hibridização — o que Fernando Ortiz Fernandez chama de ‘Transculturação’ — e como um ‘lugar privilegiado de oscilações gnoseológicas e trânsitos criativos’. Talvez nós devamos esperar por um aceleracionismo antropófago … ?

1. Vocês gostariam de fazer uma apresentação primeiro? Sobre quem vocês são, seus trabalhos, como a ideia do livro surgiu etc.

Amy Ireland (AI): Eu encontrei Maya pela primeira vez em um dos eventos de lançamento de #Accelerate: The Accelerationist Reader em Londres em 2014. Conversamos sobre To Live and Think like Pigs de Gilles Chatelet, Maya fez um set e no fim da noite me deu uma bala. Eu achei ela bem tímida e fofa, e totalmente diferente de como eu imaginava que uma editora de filosofia deveria ser. Pouco tempo depois eu fui convidada para o chat secreto sobre aceleracionismo de esquerda que à época estava sendo rodado no finado Circles da Google o que me levou eventualmente a conhecer Helen Hester, Diann Bauer, Patricia Reed e Lucca Fraser. Junto com Katrina Burch, que eu já conhecia de Londres, formamos as Laboria Cuboniks e escrevemos Xenofeminismo: Uma Politica Pela Alienação (o ‘Manifesto Xenofeminista’) muito em resposta às críticas que diziam que o aceleracionismo de esquerda era masculinista e excluía as mulheres. O manifesto xenofeminista é tanto um esforço para refutar essa má compreensão (nós estávamos todas envolvidas nisso afinal de contas!) junto a afirmação concomitante de que o interesse do aceleracionismo de esquerda em cooptar ideias do Iluminismo como o prometeanismo e o universalismo tornava-o intrinsecamente antifeminista, quanto para realizar uma crítica amigável ao aceleracionismo de esquerda sob uma perspectiva queer e feminista (nós acreditamos que eles tinham a aprender uma coisa ou outra de nós). Como resultado, o manifesto xenofeminista ocupou um lugar realmente interessante na história do pensamento feminista. Razão e universalismo, a crítica das políticas folk, e um interesse positivo em tecnologia e epistemologia que não é comumente visto como algo amigável ao feminismo. Sublimamos muito do pensamento universalista no aceleracionismo de esquerda ligando-o ao trabalho de Rosa Maria Rodriguez Magda e Fernando Zalamea sobre a transmodernidade, e isso, para mim, é o aspecto mais interessante e mais inapreciado do que nós fizemos. Dito isso, eu sou uma ciberfeminista de coração, e muito do que as Laboria Cuboniks escreveram no manifesto Xenofeminista é um pouco racionalista e estatista de mais para mim. Eu também amo o trabalho de Nick Land, o que foi um grande problema para vários dos leitores do manifesto, que não viam o lado feminista de sua filosofia. O Cute Accelerationism é como uma continuação das aspirações queer e feministas que eram cruciais no manifesto xenofeminista, mas de uma forma que é muito mais coerente com a minha própria filosofia.

Talvez porque sua origem foi também bem pessoal. Cute Accelerationism nos pegou de surpresa. Maya e eu mantínhamos uma amizade desde 2014, em grande parte por aplicativos de mensagem, já que eu vivia na Austrália e Maya no Reino Unido. Mas algo estranho aconteceu, simultaneamente para nós duas, no final de 2019, quando percebemos de repente que éramos mais do que apenas melhores amigas. Demorou um tempo até que admitíssemos isso uma para a outra, mas a gente se amava, e se apaixonar uma pela outra veio junto de uma explosão de criatividade para ambas — era como se estivéssemos possuídas por demônios fofos. Uma das consequências dessa explosão toda foi uma piada sobre como nós havíamos nos livrado das nossas peles de exterminadoras e nos tornado ‘aceleracionistas fofas’. No inicio de 2020 nós prometemos ao Minority Report, uma webzine/revista de arte em Melbourne, que escreveríamos um texto sobre o aceleracionismo fofo para uma das suas edições, mas de alguma forma se passaram três anos sem que nós conseguíssemos claramente colocar e articular o que exatamente o aceleracionismo fofo era de uma forma rigorosa filosoficamente. Eu acredito que isso ocorreu pois estávamos vivendo aquilo de uma forma tão intensa e pessoal que nós não possuíamos meios de recuar e fazer um balanço do que estava acontecendo. Assim como o imprevisto de se apaixonar abalou tanto as nossas vidas e nos deixou completamente sem chão, na mesma época Maya estava explorando seu gênero e experimentando com a fofura de uma forma extremamente corpórea e sensorial. A filosofia não é nada se não é vivida! Mas como o aceleracionismo fofo, assim como todo aceleracionismo, é uma filosofia transcendental, não basta apenas escrever sobre a experiencia pessoal ou empírica — deve-se compreender quais as condições que fazem aquela experiencia possível. Então tivemos de esperar que o caos de estar sem chão diminuísse e que todo o vislumbre se assentasse antes de finalmente sermos capazes de recuar e teorizar os mecanismos que se escondem por trás dos processos de fofurização que nos tomaram totalmente.

MBK: Sim, por muito tempo não estava claro o que essa coisa era: de início era simultaneamente uma piada boba e um pensamento extremamente sério, cuja vastidão naquele momento nós ainda não conseguíamos mensurar. Então existia uma certa urgência, mas também uma certeza de que algo estava saindo disso, de alguma forma, em algum ponto, era só deixarmos acontecer.

Nós fomos convidadas para fazer uma apresentação audiovisual no Unsound na Cracóvia em 2023, e compilamos uma versão do texto para ela, que eu performei, infelizmente sozinha, por conta de problemas com o visto de Amy. O livro realmente só apareceu no último minuto, em alguns meses bastante agitados durante os quais fizemos uma grande quantidade de novas pesquisas, definimos as coordenadas filosóficas, finalizamos o texto e escrevemos extensas notas finais. Tentamos manter o texto principal o mais suave, curto e doce possível. Ele contém partes que remontam a nossa explosão inicial em 2020. as notas finais são esse inconsciente descoberto posteriormente. São basicamente nós tentando entender o que fizemos, preenchendo o plano de fundo da coisa e identificando todos os tipos de ligações inesperadas revisitando o trabalho que havíamos escrito no passado.

Tanto para Amy quanto para mim esse livro parece a continuação de algo, depois de inumeráveis interrupções — venho dirigindo a Urbanomic desde 2007, editando e promovendo o trabalho de outras pessoas e vendo várias linhas de pensamento se desenvolverem e mudarem, enquanto tenho pouco tempo para formular minhas próprias posições. Mas o verdadeiro pensamento exige um encontro; ocorre quando algo acontece que te força a pensar de forma diferente. Eu aproveitei para reformular certas obsessões filosóficas pessoais que toda a minha experiencia na indústria só serviu para confirmar, e para elaborar algumas linhas de pensamento que eu comecei a delinear no ensaio de 2017 ‘Hiperplástico Supernormal’, encomendado pela artista Pamela Rosenkranz para o seu projeto na Bienal de Veneza, Our Product.

Enquanto um livro que foi escrito ‘entre’ nós duas, Cute Accelerationism inevitavelmente se tornou algo diferente do que seria se uma de nós o escrevesse sozinha, e expressa a mais-valia produzida pelo nosso encontro. Isso também nos alertou para a complementaridade curiosa entre nossos respectivos modos de escrita. Amy quase sempre tenta começar tendo uma ideia geral do corpo do texto como um todo, enquanto eu estou sempre tateando em busca de minúsculas dicas sensoriais do que estou tentando descrever, porque sinto vagamente que elas contêm algo sobre o qual preciso escrever. Então com nós duas juntas, no momento em que nos encontramos no meio, já havíamos alcançado a saturação total em todas as escalas, das microsensações aos megaconceitos!.

Por último, Cute Accelerationism foi uma lição objetiva sobre como permitir as coisas que elas cheguem quando estiverem prontas (ainda que eu não tenha sido sempre paciente em relação a isso!). O livro foi publicado em um momento onde — mesmo que isso estivesse no radar cultural por mais de uma década — existe um interesse geral na Fofura enquanto um significante, uma coisa curiosa que existe no mundo, ao qual estamos todes submetides, mas ainda não aceitamos.

2. O que é a fofura e qual seu potencial na aceleração e para o aceleracionismo?

MBK: Poderíamos definir aceleracionismo, em geral, como uma posição para a qual a modernidade tecnocapitalista é irredutível a todas as formações sociais humanas anteriores, vinda do ‘Fora’, com efeitos vastamente imprevisíveis que não podem ‘fazer sentido’ em seu próprio tempo. O aceleracionismo vê o resultado dos distúrbios na sociedade, na identidade humana e na certeza histórica não como uma ameaça à natureza, à humanidade, à tradição ou à ordem social, mas como um vetor de emancipação de todo o conservadorismo, exclusão e chauvinismo que ‘o humano’ e suas categorias concomitantes serviram para reforçar no passado.

O aceleracionismo, portanto, adota o que quer que pareçam ser os aspectos mais transformadores desse processo tanto como um objeto de estudo quanto como uma oportunidade para a participação no desenrolar de um futuro que não obedece às certezas do passado. Ele extrapola os vetores da transformação em configurações problemáticas que se escondem além do horizonte atual da experiência, e então transplanta tais configurações de volta para o presente enquanto forças produtivas (um tipo de ficção científica, ou o que é conhecido como ‘hiperstição’). Ao fazer isso, então, o aceleracionismo procura fazer de si mesmo uma parte da máquina para a intensificação de tendências que não possuem nenhuma finalidade, mas que figuram fora de todas as coordenadas conhecidas.

Embora, como disse Amy, Cute Accelerationism tenha suas origens em nossas tentativas de pensar a forma daquilo que sentíamos ter tomado conta de nós durante um período particular nas nossas vidas ‘pessoais’, isso imediatamente também se tornou um problema filosófico, e que eventualmente nos levou da nossa própria inabilidade de resistir ao devir-fofa, a questão da Fofura enquanto uma força cultural mais ampla. Nós decidimos que a Fofura era um desses pontos intensos onde a cultura humana está interagindo com — e sendo alterada por — algo que nós ainda não temos compreensão. E vimos como ela estava acelerando, intensificando tudo ao nosso redor. Parece estar em todo lugar, infiltrando-se em todos os aspectos das nossas vidas, por vezes sob formas que são totalmente incongruentes, totalmente em desacordo com normas culturais prévias. De onde isso vem? O que isso quer? Existe mesmo um ‘isso’ no singular? Claro, até certo ponto a fofura é uma estética e uma tendência comercial proeminente do século vinte e um que tem sido explorada para vender produtos. Claro, nossa sensibilidade a isso parece ser produto de imperativos evolucionários. E ainda, em sua vanguarda, onde os humanos são compelidos cada vez mais a produzir formas cada vez mais agudas de fofura, usando mesmo seus corpos como material, novas mutações estranhas de desejo estão surgindo, novas formas de vida que não parecem servir nem a Natureza nem ao Capital.

Claro, muita coisa já foi escrita sobre a fofura e suas várias peculiaridades e paradoxos. Mas partindo da tese de que nós ainda não sabemos o que a Fofura pode fazer, invés de coletar observações empíricas ou tentar algum esforço em história cultural, nós vimos tais peculiaridades enquanto vislumbres de uma entidade que está interagindo com os humanos e transformando-os de uma maneira sem precedentes. Nós tentamos produzir um retrato transcendental dessa Coisa em sua forma mais abstrata. Quanto aos ‘paradoxos’ da Fofura, e se eles forem apenas paradoxos exclusivamente sobre o ponto de vista de nossas próprias restrições culturais? Por exemplo, a ‘fofura agressiva’ — quando você ama tanto algo que você quer apertá-lo até a morte — parece expressar uma combinação impossível entre comportamentos de agressividade e cuidado que são associados a gêneros binários ‘opostos’, mas talvez essa binaridade e essa impossibilidade sejam o que a Fofura põe em questão, partindo de uma perspectiva externa às nossas condições sociopsicológicas.

Então, combinado com nosso próprio encontro com o devir-fofa, uma abordagem filosófica — especificamente, uma abordagem via aceleracionismo, ele mesmo uma mutação da filosofia transcendental — nos permitiu pensar a Fofura de maneira diferente. Os ‘sintomas’ que examinamos incluem uma reversibilidade entre sujeito e objeto e entre papéis de gênero binários que eventualmente levam a sua dissolução, uma reformatação da relação entre sexualidade e reprodução social, uma fragmentação dos investimentos libidinais, uma intensificação coletiva dos gatilhos abstratos sensoriais, e talvez o mais importante de um ponto de vista político mais amplo, uma reavaliação do poder da passividade e da submissão e a renuncia à toda forma de coação masculinista no que diz respeito a defesa da identidade fixa e do ato de evitar comportamentos e afetos ‘vergonhosos’ ou ‘embaraçosos’…. Bem, todos esses sintomas parecem estranhamente familiares a nós. Todos os aspectos importantes do processo incontrolável de apaixonar-se irremediavelmente acabaram sendo os subprogramas da Fofura. E ambos os processos são temporalmente anômalos: eles só podem fazer sentido anastroficamente (via causalidade ‘regressiva’).

3. Como isso dialoga com o xenofeminismo?

AI: Assim como o xenofeminismo, o cute/acc rejeita o humanismo e o determinismo biológico; está intensamente ligado a tecnologia e ao sintético; entende o digital e o material não enquanto reinos separados e antagônicos, mas como componentes integrais de um loop de feedback complexo no qual desenvolvimentos de um lado levam a desenvolvimentos de outro (e vice-versa) e vê o ímpeto por trás da mudança social e corporal como intrinsecamente coletivo. Tanto o xenofeminismo quanto o cute/acc são orientados para um ‘futuro alien’, um destino que não pode ser conhecido por antecipação (o que Maya disse anteriormente sobre o aceleracionismo em geral, ambos buscam a ‘intensificações de tendências que não possuem finalidade alguma, mas que figuram fora de todas as coordenadas conhecidas’) mas seus meios de mover-se em direção a esse futuro alien são bem, bem diferentes.

Ao contrário do xenofeminismo, o cute/acc não postula um sujeito político voluntarista como seu agente (coletivo ou não) o que, em minha opinião, o faz mais parecido com a filosofia aceleracionista clássica, e isso por sua vez significa que ele não tem uso para as ideias que fazem o xenofeminismo tão distinto: razão, universalismo, normatividade, hegemonia etc. O papel do sujeito no cute/acc é de passividade ativa: é sobre ser forte o suficiente para deixar as coisas interessantes que estão acontecendo — inclusive a você mesmo — acontecerem (contraintuitivamente, você tem que ser ‘forte’ para fazer isso, pois é sempre mais simples e mais aceitável resistir), ao passo que o sujeito coletivo do xenofeminismo, assim como o sujeito Prometeico do aceleracionismo de esquerda, considera-se capaz de ativamente impor uma vontade política sobre a história. O desejo de ação política pode facilmente colapsar na necessidade de ser um Pai — a análise de Deleuze e Guattari das formas como isso se dá, no Anti-Édipo, é mais relevante hoje do que nunca — e eu penso que o manifesto xenofeminista muitas vezes sucumbe a essa necessidade (isso para não falar no aceleracionismo de esquerda!): essa falação incessante aos seus leitores do que eles ‘devem’ fazer.

Isso é algo que eu sempre considerei problemático sobre o manifesto xenofeminista. Olhando para trás na minha escrita, existem dois textos em particular que parecem fundamentais para essa formulação, na esteira do Xenofeminismo: Uma Política Pela Alienação, do sujeito passivo que aparece em Cute Accelerationism. O primeiro é a minha contribuição para o livro Shangai Frequences (2020) de Mikkel Bindslev, particularmente a seção ‘Zigzags’, que é um tipo de vivissecção traumática prolongada do manifesto xenofeminista, e o segundo é o posfácio que eu escrevi para o Demonologia Revolucionária (2023) do Gruppo Di Nun, ‘A Assimetria do Amor’. Ambos exploram modos de passividade ativa enquanto uma replica crítica, direta e depois indiretamente, ao voluntarismo do ‘ninguém em particular’ no xenofeminismo. Em homenagem ao ‘Big Daddy Mainframe’ de VNS Matrix (do seu ‘Manifesto Ciberfeminista para o Século 21’ de 1991) um dos personagens e antagonistas chaves em Cute Accelerationism é o Administrador Pai [N.T. Daddy Admin] . A fofura é explicitamente anti-Pai.

Por último, ambos são manifestos transfeministas (dentre outras coisas), e embora o aceleracionismo fofo não esteja em contradição com o naturalismo ontológico do manifesto xenofeminista, eu acredito que ele possui teorias mais bem formuladas sobre sexo, gênero e corpo.

https://www.urbanomic.com/book/cute-accelerationism/

4. O livro pretende traçar algum tipo de economia libidinal da fofura? Existe um conteúdo libidinal na fofura?

MBK: Claro, o que mais poderia ser? No livro nós identificamos três circuitos da Fofura. Estes são montagens libidinais que emergem com a ‘descoberta’ da Fofura na história e sua determinação gradual, primeiro na evolução natural, então na economia capitalista e subsequentemente nos microcircuitos de uma cultura ‘pós-moderna’ de rede. (Nós também discutimos o potencial do quarto circuito, em relação às IAs). Tais circuitos descrevem como o desejo, as novas formações sociais, os meios de produção e a economia participam todos na intensificação da Fofura, mas cada circuito também possui seus limites, seus mecanismos de trava, assim como suas linhas de fuga que permitem a Fofura escapar para outro lugar — um novo circuito. O nosso modelo é certamente o mesmo de Deleuze e Guattari no Anti-Édipo: a imanência maquínica dos investimentos libidinais supostamente pessoais nas esferas social, tecnológica e econômica.

AI: Embora o aceleracionismo fofo seja fundamentalmente uma filosofia libidinal, isso não significa que ele seja sobre desejos conscientes, individualizados. Isso se relaciona com o que eu havia dito antes sobre o sujeito passivo da fofura. A agencia da Fofura pertence a ideia feminizada de desejo — desejo que precede o ego e a construção do ‘Eu’, o qual é inserido no processo de desejar apenas em último momento, mesmo que pareça ter sido o agente o tempo todo. O ‘Eu’ é também a parte que ‘impede as coisas de acontecerem’ (para parafrasear o livro). Esse é um argumento ciberfeminista: o ‘Eu’ — o sujeito totalmente formado, autônomo, ‘o humano’ (também conhecido como Homem) — é a parte do processo que olha para o desejo e tenta controlá-lo e contê-lo. É o Um do Zero ciberfeminista. Acessar o poder transformador, libidinal da fofura envolve contornar o ego–com toda a sua culpa, sua autoconsciência, sua vergonha–e deixar as coisas entrarem, permitindo a si mesmo ser vulnerável e bobo, canalizando intensidades, formando novas conexões, experimentando com fragmentos (ou elementos-moe) invés de identidades, deslizando pela superfície infinita da fofura e sem ter nenhuma ideia prévia de para onde isso está te levando. Enquanto sujeitos individuados, autoconscientes, especificamente-encarnados, nós habitamos apenas uma pequena parte de um ‘corpo virtual’ muito maior, capaz de afetos e desejos que estamos apenas começando a aprender como mapear.

5. No Brasil existem alguns esforços teóricos sobre o Devir-travesti do mundo ou ‘ciborguismo popular’, quando pessoas cisgênero passam a procurar por procedimentos para tornarem-se cada vez mais “bonecas”, penso que isso dialoga com o Devir-fofa. O que vocês pensam a respeito?

AI: Definitivamente. A cultura travesti, o ciborguismo popular e a embonecação são todas formas de explorar o corpo virtual. Embora as técnicas que cada um favorece possam diferir, todas estão lutando contra as fronteiras do chamado corpo ‘natural’ e as formas extremamente limitadas de desejo que deveriam acompanhá-lo, mais enfaticamente o desejo heterossexual reprodutivo. Quais outros corpos e formas de desejo nós somos capazes, coletivamente, de produzir? Quais são os afetos e intensidades ainda não imaginados que estão para ser descobertos?

Por exemplo, em Cute Accelerationism, nós falamos sobre ‘flatmaxxing’: como, em grande parte graças às redes sociais, as experiencias contemporâneas do corpo estão sendo alteradas pelo nosso entendimento tácito de nós mesmos do ponto de vista de uma imagem bidimensional — de coisas simples como os gestos aegyo que enquadram o rosto como se ele já fosse uma imagem, até aspirações mais profundas como as do ‘devir-anime’ — assim como as várias forças de desejo que correspondem ao regime bidimensional, como o moé e o nijikon (ter sentimentos amorosos por personagens 2d). O Moé é especialmente interessante porque opera em uma via permutacional que lida com fragmentos libidinais. Tudo o que lhe diz respeito existe anterior a sujeitos e identidades, e por conta disso eu acredito que ele fornece o modelo para o futuro do gênero uma vez que a antiguidade binária finalmente apodreça. A fofura é altamente tecnológica e tem sido assim desde sua emergência no reino biológico como uma modalidade da supernormalização. Todos esses experimentos com formas sintéticas de personificação e desejo, tanto material quanto digital, são apenas uma continuação da trajetória originalmente traçada pela supernormalização fofa.

MBK: Deve estar bem claro que, se ‘trans-’ significa a recusa a aturar qualquer papel padrão que a vida atribuiu a você, isso também significa mais do que simplesmente brincar de ping-pong entre predefinições binárias. Aqui isso sobrepõe a Fofura, descrevendo a abertura de um espaço onde as opções criadas sobre o que vem sendo chamado ‘gênero’ possam se proliferar em uma multitude de possibilidades sensoriais e estéticas, das quais mais e mais técnicas para autoconstrução podem nascer.

As pessoas transgênero estão na vanguarda, elus já formam um desses sujeitos coletivos que, sendo excluídes de serem ‘propriamente humanos’ não necessariamente investem uma grande esperança nessa categoria e na sua preservação, e estão, portanto, preparades para o aceleracionismo. Gender Acceleration: A Blackpaper (g/acc) de n1x [N.T. Nyx Land] já nos atingiu com um aceleracionismo trans feroz em 2018, e quando nós começamos a nossa jornada no cute/acc, se tornou muito claro para nós que indivíduos e comunidades trans na verdade estão fazendo aceleracionismo, e que isso é muito mais interessante do que aqueles que estão pontificando sobre ou fazendo do aceleracionismo um objeto para o debate acadêmico, positiva ou negativamente.

A transição de gênero, sob todas as suas formas, é talvez a aventura aceleracionista emblemática do momento contemporâneo, uma vez que reúne a recusa ao que é dado, a submissão a um processo cujo resultado não pode ser inteiramente previsto, autoprodução, mediação tecnológica e a emergência via redes eletrônicas de meios de produção e propagação coletivos que transpassam as instituições estatais. Os desejos Trans- exemplificam formas contemporâneas radicais de autoconstrução. Cada vez mais visíveis e audíveis nos dias de hoje, elus estão na vanguarda do desenvolvimento de técnicas para a transformação, e atraem todo o medo, raiva e despeito que se poderia esperar por isso. Ao final, no entanto, a euforia e afirmação coletivas irão sempre se provar mais poderosas que o peso do desprezo, da negatividade e da complacência.

O processo de fazer-se fofa — perseguindo um ‘certo’ tipo de versão de você mesma por qualquer meio necessário, hoje usualmente iniciado pela mediação das tecnologias digitais de imagem — é facilmente descrito como ‘trivial’ ou ‘irreal’. Em Cute Accelerationism nós falamos sobre todo um conjunto de métodos de autoprodução como ‘aparelhamento’. Aparelhamento é sinônimo de descoberta gradual do corpo virtual ou do ‘ovo’. Cada nível de organização do corpo, seja do papel social, autoapresentação, roupas, cosméticos, hormônios ou anatomia possui um aspecto estratificado — a gramática rígida dentro da qual é definido um lugar a alguém por mecanismos padrão de desenvolvimento natural ou pelas estruturas discursivas de poder da sociedade. Mas junto ao corpo estratificado, existe sempre um corpo não-estratificado, fluido, ou semelhante a um ovo (informe, pluripotencial), um poço de possibilidades que pode ser acessado para entrar em devires. Nós não estamos dizendo que isso é algo simples ou fácil de fazer, não estamos aqui dizendo que não existem barreiras. Tanto o corpo real quanto o corpo virtual são reais, com efeitos reais. Nós não estamos dizendo que isso não é uma provação difícil. Mas estamos dizendo que nós não podemos confiar naqueles que nos encaminharão para o fundamento da ‘natureza’ imutável, ou que proíbem ou bloqueiam transformações sob o pretexto de que elas ‘vão longe de mais’, são ‘impossíveis’, ‘não-naturais’ ou ‘meramente superficiais’.

Como Amy já mencionou, uma parte crucial da Fofura envolve ‘deixar acontecer’, uma passividade em relação as próprias compulsões, uma paixão que te permite iniciar transformações que podem a principio parecerem irreais ou impossíveis. Ao nível da experiencia vivida, a transição de gênero é profundamente aceleracionista, é um loop de feedback positivo e envolve anomalias temporais. Pense sobre quando você se apaixona: tudo se torna uma bola de neve sob formas que você nunca antes imaginou, e eventualmente você percebe que tudo antes desse momento te levou a ele. Da mesma forma, você só se torna um ovo quando você realiza que sempre foi um, que é o que te faz efetivamente um…e então todas as formas de transformação se tornam possibilidades, mesmo que você tenha de desfazer uma grande estratificação para ativa-las. É uma forma de trabalho, um trabalho de auto-amor, estamos falando disso enquanto uma iniciação, a provação do ovo.

Os devires podem começar com as coisas mais ‘triviais’, pensamentos esquisitos que surgem sei lá de onde — Como seria se eu colocasse uma saia? Se eu cortasse todo o meu cabelo? Se eu vestisse orelhas de gato ou uma cauda? — até que se tornem movimentos lentos em direção a algo que não pode parar no humano, mas que anuncia uma espécie de hiperplasticidade, uma transgeneridade que vai além de todas as questões de gênero. Importante, isso também é coletivo: postar suas fotos sendo fofa é socialmente circular e ratificar suas transformações — é parte de faze-las reais. Por sua vez, sua propagação vai provocar pensamentos estranhos em outros, fazendo eles descobrirem o próprio ovo que estão. A provação é também uma retransmissão de euforia.

Em vez de esforçar-se em busca de agencia, o movimento mais poderoso e corajoso e o que mais demanda de alguém, é simplesmente ceder, mesmo ou especialmente se você não sabe para onde isso está indo, mesmo se o Administrador-Pai disser que isso é bobo e insignificante. Uma grande parte do que entrou no Cute/Acc foi baseada em simplesmente tentar descrever o que está em jogo nesse tipo de submissão — como Nick Land diz, ‘a revolução não é um dever, mas uma rendição’. Assim como os amantes, as pessoas fofas traficam com demônios, elus sabem o quão profundas são as corridas superficiais, e elus sabem como devir transformadores, essa é a razão pela qual elus são aceleracionistas.

Isso é algo que eu acredito que muitos de nós temos experienciado o tempo todo nas redes sociais. O suposto ‘algoritmo malvado’ é como um demônio, que nos solicita tentar diferentes identidades, nos desafiando a nos expor, e nos fazendo refletir com quais ficções de nós mesmos estamos dispostos a nos comprometer experimentalmente, e então introduzir no mundo real. Alguns dos artistas e pensadores mais interessantes hoje são pessoas que estão disciplinando-se para ceder a esse processo o máximo possível, e então reporta-lo.

6. ‘Fugindo a toda disciplina, deslizando por todas as superfícies possíveis’ a fofura é uma força desterritorializante?

MBK: A fofura parece alterar a forma que vemos a nós mesmos e aos outros, nossa conduta, nossos padrões de comportamento, nossos investimentos libidinais, de formas que — para colocar na terminologia de Deleuze e Guattari — exemplificam as forças de desterritorialização e decodificação do capitalismo, aquelas que tendem a desmantelar, derreter e colapsar partes herdadas do passado e separa-las de seus códigos sociais que governavam sua relação entre si. Por sua vez, as forças reterritorializantes e recodificantes do capitalismo estão continuamente recuperando a fofura, apresentando-a sob uma forma palatável, encaixando-a em uma grande axiomática onde o capitalismo realoca todas as formas sociais prévias — o primeiro axioma é o de que tudo deve ser rentável. Um efeito colateral é o que D&G chamam de ‘milagre’ — tudo parece emanar do capital — mas essa é uma ilusão que nós não devemos cair, sob pena de inércia e desespero. Não é que o capitalismo ‘faça’ a Fofura ou que a Fofura seja ‘meramente capitalismo’, ela tem suas próprias especificidades.

Crucialmente, nós pensamos que as tendências desterritorializantes liberadas pela Fofura só são parcialmente reterritorializadas, devido a certas características inerentes a Fofura que se aliam com a aceleração e, de uma forma estranha, com o ‘próprio’ processo capitalista.

A fofura é inerentemente escalar. É um processo que te pega. Em primeiro lugar, você não pode consumir a fofura sem tornar-se você mesma uma pessoa fofa, tornando o sujeito em um objeto da fofura. A fofura de alguma forma toca dentro das relações de poder entre sujeito e objeto, entre consumidor e mercadoria. Em segundo lugar, a fofura é inerentemente excessiva, ela sempre te convida a fazer isso de maneira mais e mais refinada, mais e mais insinuada, mais fofa — afinal de contas, a palavra ‘cute’ vem de ‘acute’, que significa afiado, pungente. A fofura é sempre muito fofa. A quantidade massiva de objetos fofos — funkopops, squishmallows, vídeos de gatinho, etc. etc. — não exaurem o processo da fofura, que parece capaz de compelir-nos a leva-lo a pontos cada vez mais extremos. ‘Nós não vimos nada ainda’.

Nós prestamos, em particular, uma atenção maior ao ‘terceiro circuito da fofura’, consistindo de sujeitos-otaku, que são certamente consumidores, mas que por conta da sua marginalidade colocam-se a uma certa distancia dos axiomas capitalistas. Através de práticas de auto-objetificação, refinamento, reapropriação e recontextualização, eles estão coletivamente se dirigindo a aceleração do desejo da fofura, desterritorializando muito mais rápido do que a economia capitalista pode conter, mas depois devolvendo os resultados ao mercado mais amplo, assim, efetuando transformações maiores. Na vanguarda onde os axiomas lutam para alcançar essas injeções de desejo desterritorializado, a Fofura está nivelada e é indistinguível da própria intensificação cada vez mais aguda do próprio capitalismo (aceleracionismo da fofura, ou fofura = aceleracionismo?).

7. Muitas das críticas (especialmente Marxistas e/ou conservadoras) ao chamado ‘Identitarismo’ e a cultura kawaii-otaku-fofa é de que tais culturas “alienam” as pessoas jovens. Existe alguma forma de reinterpretar positivamente essa crítica?

MBK: O aceleracionismo, sob todas suas formas, sempre foi sobre fazer da alienação uma força positiva. Nós pegamos uma grande inspiração do trabalho sobre a cultura otaku do filosofo japonês Azuma Hiroki e do psicanalista Saito Tamaki, que levaram a sério e levantaram-se para defender as formas anômalas de desejo que emergem da cultura otaku. De uma maneira mais geral, eu vejo o livro todo como uma carta de amor para as pessoas jovens que estão se encontrando sem lugar na história ou numa versão de futuro socialmente aceitável. Párias e marginais que possuem suas estranhas compulsões ‘antissociais’ não importa o custo que tenham de pagar por isso, que recusam seu ‘lugar’ na reprodução social, e formam conexões uns com aos outros sob maneiras incomuns. Nós não temos ideia do que eles podem produzir. E aqueles que pregam a fofura a partir de uma posição de pureza política assumida apenas assumem seus próprios investimentos libidinais dúbios, como os que nós encontramos quando examinamos Materiais Preliminares Para uma Teoria da Jovem-Garota de Tiqqn, ao qual dedicamos uma grande nota final no livro.

E se por ‘identitarismo’ você quer dizer pessoas LGBTQ+ e identidades de gênero, existe certamente pouco dano em fazer esses pequenos esforços para expandir sua imaginação com o objetivo de fazer com que os outros se sintam bem-vindos no mundo, e eu não sinto nada além de alegria por uma geração apta a dar voz a loucura proliferante do desejo, por isso a carta de amor. E sobre pronomes, experimentos com linguagem são tudo menos triviais — imaginar que essas alterações dentro da gramática básica sejam uma diversão apolítica é ingênuo. Eu entendo a resistência, e mesmo o ridículo, porque eles estão lidando com uma norma social incrivelmente sólida aqui. Mas pedir a alguém para que adapte o seu uso dos pronomes não é uma imposição, é um ato de generosidade, já que oferece a ele a chance expandir sua percepção do mundo ao redor e desenvolver um entendimento mais nuançado das pessoas com quem interage.

De qualquer forma, para nós, uma das palavras de ordem desde o inicio era começar pela euforia e ver até onde ela leva, invés de usar a disforia para implorar por aceitação e inclusão, invés de protestar, criticar ou tentar reivindicar e defender uma identidade. O que nós invocamos é a transformação, e a transformação é uma provação e uma retransmissão da euforia. Isso está totalmente em consonância com a irresponsabilidade perene do aceleracionismo, no sentido de que o aceleracionismo é refratário a qualquer posição política (o esforço de tornar o aceleracionismo politicamente responsável — o aceleracionismo de esquerda — desmoronou rapidamente). Nós estamos escrevendo do e para o prazer, contra todos aqueles, de qualquer tipo político, que buscam impor, defender ou recuperar identidades rígidas. Mas nós não estamos aliadas com aqueles que dedicam as suas vidas a pedir aos poderes administrativos por permissão social para existir. Em vez disso, nós pertencemos àqueles que persistem em um ângulo estranho para, e que cospem no, Administrador-Pai, àqueles que se tornam imperceptíveis para submeterem-se às suas compulsões queer, àqueles que desaparecem em uma outra dimensão (Cute Experiments Lain). Quem sabe quais são as forças que abrigam estes que os ‘críticos’ podem julgar como alienados, apolíticos, domesticados pelo capital, gastando seu tempo em trivialidades egocêntricas? É claro que eles te provocam raiva, porque você não pode comanda-los. A fofura não liga para o julgamento, e enfurece o poder.

8. Existe muito da “cute culture” no continente asiático (especialmente no Japão e na China). Ambas já escreverem artigos sobre a China e o sinofuturismo (especialmente Amy). Existe algo que conecte os dois temas? O Sinofuturismo tem um Devir-Fofa? Eu penso que talvez seja interessante notar que tanto a Neochina descrita por Land quanto a Fofura descrita por vocês são coisas que vem do futuro e que ‘logo não serão nem remotamente humanas’.

MBK: Nós deliberadamente adaptamos essa citação, como muitas outras, de Land para demarcar nosso ponto de partida de certas escolhas estilísticas e estéticas que se tornaram definitivas do aceleracionismo — em grande parte por conta da escrita brilhante de Nick — que sinalizam nossa fidelidade aos princípios básicos do aceleracionismo como nós o entendemos.

AI: A Fofura chega à China via Japão, que criou raízes em sua instanciação popular atual, meng (萌) — broto ou botão — através do conceito menor de moé invés do conceito maior kawaii (ke ai [可爱] em Chinês). Talvez isso não seja irrelevante do ponto de vista do aceleracionismo, já que moé é um neologismo que surgiu no Japão especificamente para descrever a experiencia de estar atraído por coisas que não são, nem nunca serão, humanas, ao passo que kawaii sempre teve um significado mais amplo. Outro aspecto da cultura fofa na China que nos interessa — e que existe uma imensa nota a respeito no livro — é o tangping ou ‘ficar deitado’. O Tangping é um exemplo — como os que Maya mencionou acima — de uma subcultura criada por uma juventude alienada e marginalizada, e alimentada pelas redes sociais e pela internet (apesar da censura imposta pelo Estado chinês), que adotou a fofura como uma estética definidora — não apenas sob a forma de memes, animais dormindo deitados em suas costas (um símbolo da recusa dos tangpinguistas de desempenharem os papéis que lhes são atribuídos na reprodução social), mas também, mais lateralmente e de uma forma que lembra a pulsão integral da Fofura de subtrair dimensões, na afirmação do estar deitado enquanto um emblema de liberdade que pode ser conquistado por uma recusa ao roteiro normativo da vida e o uso da marginalidade enquanto uma força de contra-realização. Quando Nietzsche escreve sobre a vinda do além-homem em seu famoso fragmento aceleracionista, ele prevê o que chegará no despertar de um grande ‘achatamento’. Flatmaxxing, nijikon, amor 2D, superachatamento, tangping…nós vivemos na era do bidimensional, então o que decorre é que o além-homem será extremamente fofo.

MBK: A Ásia, em particular o Japão, são certamente os pioneiros na cultura Fofa, mas como nós pontuamos, a Fofura apareceu sob diferentes formas em diferentes lugares e momentos na história moderna. Apenas na Era da internet é que ela deviu uma cultura global, com as formas ocidentais de fofura em diálogo com o kawaii japones, o aegyo coreano e o meng chinês — um diálogo entre nações e linguagens que envolve más compreensões e más traduções, exotismos, fetichização e conexões inesperadas. Algumas vezes isso se encontra com o desprezo publico, acusado de arruinar a juventude, outras vezes goza de apoio institucional e mesmo governamental (como no caso da promoção do kawaii pelo governo japonês como parte do ‘Cool Japan’).

A Fofura se originou no Japão? O kawaii é um fenômeno separado da fofura Disney? O capitalismo pode produzir fofura ou ela é inerente a espécie humana? Seria ela um produto de debilidades psicológicas em massa que afligem a população japonesa por conta da Segunda Guerra Mundial? É uma forma de sujeitos capitalistas estressados encontrarem proteção e segurança? Ou, por outro lado, é um traço evolucionário que estava apenas esperando por GIFs animados e fabricas de pelúcia para florescer completamente? Nenhuma dessas explicações sozinhas fornecem uma perspectiva adequada para interrogar a Fofura. Enquanto filósofos, nosso método é transcendental — isto é, nós ‘deduzimos’ um ponto problemático de convergência que está fora de sinal, além do horizonte de qualquer nação ou cultura, e ‘partimos’ dele. Nós posicionamos a Fofura enquanto uma entidade problemática abstrata que está lentamente se revelando através do nosso desejo de senti-la e continuamente intensificando os modelos desse desejo — um desejo que é aparentemente inexaurível. Isso significa que nós já não pensamos a Fofura em termos de origem. Nós a vemos como um problema de sinal (inteligência de sinais): o sinal pode ser detectado de maneira mais ou menos clara em vários fenômenos. Nós temos de rastrear isso como se todos esses fenômenos estivessem convergindo para algo, invés de imaginar que podemos traçar eles de volta a uma origem causal única, seja histórica ou evolucionária. A cultura descobriu a Fofura, mas a Fofura é autônoma em relação a qualquer das suas instanciações particulares. O que a faz filosoficamente interessante é sua natureza problemática — isso também é dizer, a Fofura é uma Ideia. Como tal, ela não se submete a categorias disciplinares, e só pode ser verdadeiramente conhecida via participação.

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Clarice Pelotas

eu não mordo (e se mordo é pra me ver feliz). twitter: @claalpelotas. email: lesbicavampirica@tutanota.com