Noções básicas do Direito — Escola da Exegese

Rick Theu
9 min readFeb 8, 2022

Daremos continuação a série de noções básicas do Direito que demos início em «Noções básicas do Direito — Jusnaturalismo» [clique aqui para lê-lo].

O Juspositivismo é uma corrente do pensamento jusfilosófico que tem sua gênese no século XIX e desenvolve-se com mais profundidade e cientificidade no século XX. Sua feição gestacional no século XIX se dá na forma de três Escolas: a Escola da Exegese (França), a Escola da Jurisprudência Analítica (Inglaterra) e a Escola Histórica do Direito(Alemanha) Nesse artigo abordaremos a primeira, ficando a Escola germânica para um artigo próprio e a doutrina britânica sendo abordada com John Austin, em artigo posterior.

A Escola da Exegese, também conhecida como Escola filológica jurídica ou o movimento do Empirismo Exegético, foi uma das primeiras correntes de pensamento juspositivista, florescendo na França de inícios do século XIX, a partir do advento do «Código Napoleônico», tendo, todavia, superado os limites geográficos do seu país natal, sendo disseminada por toda a Europa continental e América Latina, e exercendo, ainda hoje, influência no ensino e na prática jurídicas dos países de tradição romano-germânica (civil law).

As principais características dessa Escola é a de ser estatista, coativista, legalista, mecanicismo na interpretação do Direito, não reconhece a força normativa dos Princípios do Direito, enxergando o Direito como um sistema de normas — algo que influenciará Herbert Hart e Hans Kelsen — tendo os princípios apenas a função de integração do Direito, i.e., preencher lacunas, bem como enxergavam a lei codificada superior a norma constitucional.

A Ciência do Direito, no século XIX, encontra sua expressão mais característica no exegetismo. Para a Escola da Exegese, a totalidade do direito positivo se identifica por completo com a lei escrita; com isso a ciência jurídica se apegou à tese de que a função específica do jurista era ater-se com rigor absoluto ao texto legal e revelar seu sentido. Todavia, é preciso não olvidar que o exegetismo não negou o Direito Natural, pois chegou a admitir que os códigos elaborados de modo racional, eram expressão humana do Direito Natural, por isso o estudo do Direito deveria reduzir-se a mera exegese dos códigos. Visavam os franceses a construção de um sistema normativo estruturado de acordo com as normas da natureza, com o escopo de assegurar os direito subjetivos fundamentais do homem, que lhe eram inerentes. O estudo do Código Civil seria a concretização desse ideal jusnaturalista. A lei e o Direito constituem uma mesma realidade, pois a única fonte do Direito é a lei e tudo o que estiver estabelecido na lei é Direito. (DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito)

Ela é formada pelos juristas e teóricos da Ciência do Direito que comentaram o Código Civil da França à época. As origens da Escola da Exegese remontam ao quadro existente na França após a Revolução Francesa. As alterações trazidas pela revolução liberal ao Estado, à sociedade e ao Direito levaram à necessidade de concepções jurídicas mais modernas e que dessem conta desta nova realidade, visto a crise do Jusnaturalismo em face do antropocentrismo e do racionalismo matemático e científico.

Por um lado, a alteração das funções do jurista, não mais responsável por criar o direito, devido a mudança na concepção da origem do Direito, mas incumbido da tarefa de sistematização do direito criado pelo Legislativo através da sua exegese, que não era nada mais do que a descoberta do sentido do direito expresso em suas normas legais pela vontade do legislador. De outro lado, um novo modo de formar os juristas nas faculdades de direito, com um novo método de ensino que fosse focado na exclusividade da lei, isto é, no ensino da lei.

Como decorrência da transição do Absolutismo monárquico para o Estado Legislativo, a função dos próprios juristas passou a ser reconsiderada. O trabalho dos glosadores, pelo qual se operava uma espécie de revelação racional do Direito, deixou de ter qualquer sentido lógico. A fonte primordial do Direito passou a ser o resultado da atividade do Poder Legislativo (a lei em seu aspecto formal). Aos juristas, assim, incumbia apenas a atividade de interpretar os textos legais, sem possibilidade de qualquer inovação ou criação. Essa forma de ver o Direito é chamada de «Escola de Exegese» (exegese significa interpretação). Por trás dessa Escola tem-se o que hoje se denomina «ideologia estática da interpretação,» segundo a qual o intérprete não exerce atividade criativa, incumbindo-lhe apenas revelar o sentido que se encontra subjacente ao texto legal (atividade meramente declaratória, portanto).

A tese fundamental da Escola é a de que o Direito por excelência é o revelado pelas leis, que são normas gerais escritas emanadas pelo Estado, constitutivas de direito e instauradoras de faculdades e obrigações, sendo o Direito um sistema de conceitos bem articulados e coerentes, não apresentando lacunas aparentes. O verdadeiro jurista, pensam seus adeptos, deve partir do Direito Positivo, sem procurar fora da lei respostas que nas leis mesmas seja possível encontrar. (REALE, Miguel. Filosofia do Direito)

Preconizava a pluralidade e aumento das codificações, de modo a eliminar as lacunas da lei; a utilização da analogia, para descobrir a norma oculta (dada pela vontade do legislador, mas não aparente no texto legal); e a interpretação mecânica e baseada no silogismo, fundada na evidência do sentido literal do texto, utilizando outros métodos interpretativos apenas com a função de de tornar clara a vontade do legislador, legitimação única da autoridade da lei na medida em que é, esta vontade, legitimada pela vontade geral do povo.

Foi soberana na França durante todo o século XIX, tendo declínio quando as condições que a possibilitaram não mais persistiam. Isto ocorreu, de um modo, com a mudança das condições sociais e ideológicas, a partir da Revolução Industrial que mudou a sociedade francesa, tornando as antigas formas inaplicáveis, de forma literal-gramatical, a fatos novos e a uma conjuntura completamente diferente. De outro modo, quando o saber jurídico passou a receber influências da história e a perceber a necessidade de uma hermenêutica jurídica que controlasse a aplicação da lei, recebendo o auxílio de outras fontes externas ao Direito.

O pensamento empirista exegético é decorrência de um estatismo acrítico, tendo origem em um entendimento rígido da teoria da separação dos poderes de Montesquieu, entendendo que ao Poder Legislativo cabe representar a vontade do povo (vontade geral) e fazer as leis de acordo com essa vontade. Ao Poder Judiciário incube a missão de dizer o direito aplicável ao caso concreto (juris dictio); direito que ele diz, mas não elabora. Um direito dado, não construído. Isto conduz a uma visão de extremo legalismo. Tal entendimento da separação dos poderes também leva à aproximação do Direito com as ciências naturais. Nesse quadro, à doutrina restava o papel de transformar o conjunto da legislação vigente em um sistema do qual seria retirada a premissa maior do silogismo Judiciário. Assim, para que existisse um sistema formal, três condições eram necessárias: completude, coerência e ausência de ambiguidades.

O Direito, assim, é reduzido à lei e a função judicial é concebida como um processo de dedução lógica, de subsumir fatos concretos à lei abstrata.

Por conseguinte, o núcleo do pensamento da Escola da Exegese francesa encontra-se no problema das lacunas. Três características, portanto, se põe, tendo como fundo sempre o problema das lacunas: a riqueza da legislação; o uso da analogia como mecanismo de preenchimento das lacunas; e, por último, a interpretação tendo como centro a literalidade da lei e a vontade do legislador. A primeira característica aparece na pluralização dos códigos e das normas, visando a eliminar as lacunas. Com relação à segunda, os membros da Escola acreditavam que as lacunas eram meramente aparentes, já que o emprego da analogia, que se fundava na pressuposta vontade do legislador, permitia buscar as normas que subjaziam no «fundo» da legislação, colocando-as a descoberto (revelando o Direito criado pelo legislador, mas não o criando). Em terceiro lugar, a interpretação estava fundada em um entendimento rígido da separação dos poderes que tomava como invasão da função do legislador qualquer forma de interpretação que não buscasse o sentido literal-gramatical do texto. Assim, em primeiro lugar o intérprete deveria analisar o texto gramaticalmente ou sintaticamente, de forma a extrair o seu sentido literal. Se, ainda assim, o sentido restasse turvo ou incompleto, o intérprete deveria utilizar o método lógico, buscando estabelecer o valor lógico dos vocábulos. Após, cabe o recurso ao método sistemático que toma a norma como parte de um sistema jurídico maior. Por fim, passa o intérprete a utilização do método histórico através da investigação da exposição de motivos e dos debates no legislativo que levaram a criação da norma, agindo ele como «boca da lei», revelando a intenção do legislador.

Todo essa tarefa interpretativa e hermenêutica tinha como fundamento basilar a noção de lei como representação da vontade do legislador (esta sendo a representação, por sua vez, da vontade geral do povo). Dessa forma, o que se buscava era estabelecer o sentido da vontade do legislador através do entendimento e da compreensão do alcance e sentido do texto legal: a interpretação deveria ser uma espécie de operação lógico-dedutiva, um silogismo, a mais mecânica o possível, mantendo-se a literalidade do texto ao máximo. E mesmo o recurso aos métodos lógico, sistemático e histórico visa por a descoberto a vontade do legislador. Tudo isso levava a afirmação da superioridade do método gramatical: na verdade, ele é até mesmo, anti-metodológico por excelência, já que considerava o sentido literal claro em si, desconfiando que toda metodologia seja um modo de escapar da evidência e de enviesar a norma com externalidades.

O exegetismo também apareceu nos países do common law. O common law é um corpo omnicompreensivo que contém em si normas para solucionar qualquer caso. É o direito elaborado por juízes (judge made law). Os países do common law sofreram influência da Escola Histórica, mas apesar de terem uma concepção diversa e até mesmo oposta à escola racionalista que inspirou a codificação francesa, também vieram a admitir o fetichismo dos textos e a função mecânica da atividade judicial. […] A função judicial era descobrir e não criar direito novo, como dizia Blackstone. Quando um tribunal se afastava da doutrina consagrada em sentenças anteriores, não estava criando um novo direito, mas liberando o velho direito de uma interpretação errônea. (DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito)

Código Napoleônico

No mais, podemos dividir o pensamento empirista exegético em três: a Escola da Exegese propriamente dita, com Proudhon, Melville, Laurent e entre tantos outros juristas franceses, que identificavam a totalidade do Direito Positivo com a norma escrita, entendendo-se que a função do jurista era especificamente ater-se com total rigor ao termo gramatical literal e apenas revelar o sentido da norma ao aplica-la. O mecanicismo dedutivista era a regra, sem margem para abstrações e ampliações; o Pandectismo, deveras relevante na Germânia, incorporou o Direito Romanístico, de forma a adotar quase que com fetiche integralmente o Corpus Iuris Civilis, apregoando o método dedutivo no cultivo da história do Direito de Roma em seu ordenamento e; a Escola Analítica, dos países de common law, com os juristas Austin (falaremos dele em outro artigo) e Salmond, também admitiram em seu corpo teorético o fetichismo textual e o mecanicismo da atividade judicial, apregoando a adoção de métodos lógicos-analíticos na interpretação do Direito Consuetudinário.

A principal mudança, portanto, do Jusnaturalismo para o Exegetismo é o foco do Direito: enquanto um visa a gênese do Direito e suas fontes, visando sua fundamentação e legitimidade transcendental, o outro toma o direito como dado pelo Poder Público e apenas o interpreta de forma que não houvesse margem para discordâncias, estando todo material do jurista no papel normado.

Também é preciso ressaltar as primeiras noções e formatos que o Juspositivismo viria a ter e que dominaria a Ciência do Direito por todo século XX. O apego ao direito positivo, a crítica à metafísica e uma tentativa de um sistema fechado de normas e comandos sem lacunas, de forma a impedir o ativismo judicial ou mesmo a impureza do Direito por outras ciências — algo que Kelsen irá desenvolver em sua obra máxima Teoria Pura do Direito — são sementes da ascensão do mundo moderno no século XIX e da crise dos valores e da Filosofia que só iriam retornar com o declínio do Juspositivismo.

Ante a queda do Jusnaturalismo, com as visões atemporais e universais de uma lei eterna, o Direito passou a ser visto de forma imanente e até mesmo produzido pelo homem, como algo artificial. E é aqui que entra o Historicismo Jurídico na Alemanha, que veremos no próximo artigo.

Bibliografia utilizada e complementar

Compêndio de Introdução à Ciência do Direito — Maria Helena Diniz

Filosofia do Direito — Miguel Reale

Lições Preliminares de Direito — Miguel Reale

Textos básicos de Filosofia do Direito: de Platão a Federick Schauer— Danilo Marcondes e Noel Struchiner

--

--

Rick Theu

Se você veio até aqui, deve imaginar quem eu sou #ricktheu #filosofia 🦉 #literatura 📚 #economia 💰 #direito ⚖️