Noções básicas do Direito — Jusnaturalismo

Rick Theu
47 min readJan 21, 2022

Esse é o primeiro de uma série de breves artigos sobre Filosofia e Direito, no qual irei expor e analisar as Escolas de Pensamento Jurídico. Tais artigos tem como finalidade ser a pedra basilar para um estudo, ainda que introdutório, da Ciência do Direito e de seus ramos práticos, como Direito Penal, Direito Civil, Direito Tributário, bem como da Filosofia e sub-ramos afins (Epistemologia, Ética, Estética, etc.).

Outrossim, ainda que não se tenha a pretensão de ser uma leitura propriamente ordenada ou um curso de Direito ou Filosofia, fica desde já sugerido e informado que os artigos serão lançados numa ordem na qual tenha uma harmonia e lógica e que se comunique em si. Isso não impede o leitor de pular algum artigo e ler outro específico que deseje.

No mais, evitarei o máximo linguagem prolixa, rebuscada e estrangeira (tais como latim, grego, inglês, etc.), fazendo uso apenas quando necessário ou facilitador. Também evitarei ser repetitivo e o uso de citações de outros autores em demasia, mas se for pertinente e seu uso se mostrar eficaz, o farei e deixarei a referência para a posterior consulta do leitor.

Por fim, deixo também avisado que tais artigos não tem a pretensão de serem considerados «científicos» ou «com autoridade», estando totalmente livres para o uso e cópia, pedindo apenas que referencie como sinal de prestígio ao meu trabalho e como incentivo à novos conteúdos.

Sem mais delongas, darei início ao estudo da primeira grande Escola do Pensamento Jurídico: a Escola do Direito Natural, ou Jusnaturalismo.

Mas afinal, o que é uma Escola de Pensamento Jurídico? Uma Escola é uma corrente ou agrupado de indivíduos pensadores de uma determinada área do saber, v.g., Filosofia, Biologia, Psicologia, unidos por laços pessoais de métodos ou concepções que se constroem para criar e propagar ideias novas, cuja importância está na formação de novos conceitos e na consolidação do conhecimento. Cada disciplina possui as suas escolas de pensamento. Na Psicologia, por exemplo, há o estruturalismo, a psicanálise, o behavorismo e outras. Na Filosofia há o racionalismo, o empirismo, o idealismo, a filosofia analítica, etc. E com o Direito, ciência esta milenar e tão repleta de debates e controvérsias, sempre tão presente no cotidiano humano, não seria diferente. As principais Escolas do Pensamento Jurídico — das quais falaremos — são o Jusnaturalismo, a Escola da Exegese, o Historicismo Jurídico, o Positivismo Jurídico, o Realismo Jurídico e o Culturalismo Jurídico. Deve-se deixar claro que há muitas outras, mas que são ramificações dessas ou não abordaremos, pelo menos por ora.

Visto que a Ciência do Direito e o próprio Direito são fenômenos e objetos de uma ocorrência e estudo num espaço-tempo mui grande, é natural que haja análises multifacetadas, mesmo dentro de uma mesma Escola.

É o caso, para bem dar início, do Jusnaturalismo.

Conforme conceitua mui bem Gustavo Filipe Barbosa Garcia:

O Jusnaturalismo (ou Escola do Direito Natural) abrange diversas vertentes que, embora apresentem certas peculiaridades próprias, envolvem aspectos essenciais em comum, defendendo a existência de leis naturais, imutáveis e universais quanto aos seus primeiros princípios (como «o bem deve ser feito»), asseverando que o Direito Natural antecede ao Direito positivo, sendo inerente à natureza humana. Na Idade Média, o jusnaturalismo apresenta conteúdo teológico, indicando como fundamento do Direito Natural a vontade divina.(BARBOSA GARCIA, Gustavo Filipe. Introdução ao Estudo do Direito: Teoria Geral do Direito.)

Dramaturgo Sófocles

Muito embora o referido autor aponte a prevalência do Direito Natural no período medievo, sua gênese se deu na Antiguidade helênica, sendo encontrada nos escritos dos filósofos Platão (A República e As Leis) e Aristóteles (Política, Constituição de Atenas e Ética a Nicômaco) e até mesmo nas tragédias de Sófocles.

Em sua notória tragédia Antígona, há uma cristalina demonstração da ideia da existência da lei da natureza (physis), que se contrapõe a lei positiva pelo ser humano (nomos). Antígona quer enterrar seu irmão Polinice, que atentou contra a cidade tebana, mas o rei tirano da polis, Creonte, promulgara um edito legislativo, que fosse defeso o ritual de enterro para os atentaram contra as normas da cidade — o que era uma enorme ofensa para o morto e sua família, tendo em vista que sua alma não faria a transição adequada no Hades. Logo, sem um devido ritual fúnebre, Polinice não poderia ter paz em seu corpo de sombras no mundo inferior, mesmo tendo morrido de forma bravosa em combate, honrando a areté aristocrática. Percebe-se que o nomos da polis entra em choque com o Direito Natural de Polinice a um funeral. O que fazer ante tão injusto imperativo? Sua irmã realiza os ritos fúnebres e sepulta o irmão, resistindo à norma positiva, fazendo vigora a physis, muito embora condene-se à morte. Interpelada de como pôde transgredir a lei, Antígona responde: «[…] Essas não são as leis que fixaram para os homens e jamais pensei que tivesse defesas tão poderosas capazes de permitir a um mortal transgredir as leis não escritas, as inabaláveis leis divinas». Antígona, enfurecida, voltou-se contra o direito positivo. Sozinha reage ao nomos injusto e tornou eficaz a norma natural, que não é dos homens, desafiando todas as leis da cidade.

Filósofo Platão

Em Platão, a estrutura do Jusnaturalismo é feita, muito embora nos famosos diálogos, mas bem sistemática e delimitada, no seu «dualismo» entre corpo e alma e um paralelismo simétrico entre o indivíduo e a polis. O filósofo das ideias enxerga que os homens possuem almas com níveis intelectuais e morais distintos, de maneira que alguns são superiores a outros, ficando estes submissos à aqueles. O seu conceito de justiça se enquadra num encaixe moral e social-político, onde a polis é estruturada e governada assim como o indivíduo se governa a si mesmo. Tendo em vista que no sistema hierárquico das almas platônicas, as de bronze são almas concupiscentes, voltadas aos prazeres do baixo ventre, aos sentidos primários e apetites naturais, estes devem voltar-se para atividades manuais e de lavoura, visando produção de recursos e gasto de energia acumulada de lascívia. As almas prateadas são dos bravos homens coléricos, raivosos e corajosos, que são regidos pelo peito e pelo sangue fervoroso. Tal sujeito deve destinar-se à proteção da polis dentro de suas forças armadas e milícias. Por fim, o indivíduo nobre, que tem autorreflexão, bom discernimento, crítica, contempla o divino e soube dominar seus apetites primários e sua cólera, esse sujeito áureo é destinado ao poder, a Magistratura. O Filósofo é quem deve governar. O rei dever filosofar ou o filósofo deve reinar. Eis a República de Platão.

Em As Leis (Nomoi), um de seus últimos diálogos, Platão formula uma utopia, uma cidade ideal, que serviria de modelo para uma colônia a ser fundada. Nela, ao contrário do que ocorre na República, em que os guardiães, os homens justos, teriam o papel fundamental como governantes, predominariam agora as leis sobra as quais repousaria quase que inteiramente a justiça na cidade. (MARCONDES, Danilo. STRUCHINER, Noel. Textos Básicos de Filosofia do Direito: de Platão a Frederick Schauer.)

Seu aluno mais brilhante e seu maior rival no pedestal da Filosofia, Aristóteles, expõe que é

[…]lei tanto à que é particular como à que é comum. É lei particular a que foi definida por cada povo em relação a si mesmo, quer seja escrita ou não escrita; e comum, a que é segundo a natureza. Pois há na natureza um princípio comum do que é justo e injusto, que todos de algum modo adivinham mesmo que não haja entre si comunicação ou acordo; como, por exemplo, o mostra a Antígona de Sófocles ao dizer que, embora seja proibido, é justo enterrar Polinices, porque esse é um direito natural. (ARISTÓTELES. Retórica.)

Assim, comentando as tragédias clássicas, o Filósofo dá início a sua construção de Direito Natural, rompendo com a teoria do Mundo das Ideias de seu mestre. Para ele, toda justiça se funda na igualdade. Todavia, há duas igualdades existentes no mundo: aritmética e geométrica. A primeira é a igualdade entre dois termos. A segunda é a igualdade é a proporcionalidade entre duas relações. Para facilitar a compreensão, na primeira forma de igualdade, numa festa de confraternização escolar, há uma torta e 12 alunos. Divide-se a torta em 12 pedaços iguais. Igualdade de termos (alunos/pedaços). Na igualdade geométrica, há um critério de proporcionalidade. Ex: a mesma torta, as mesmas 12 crianças; todavia, a professora agora corta pedaços com tamanhos diferentes levando em conta o desempenho dos alunos ao longo do ano (critério de proporcionalidade).

Aristóteles, o Filósofo

Deve-se ressaltar que esse critério de proporcionalidade pode variar ao infinito, visto que pode alterar de forma arbitrária, seja com base no empenho da criança ao longo do ano, seja com base no número de presença, seja com base na idade, no tamanho, no peso, etc. de forma a distribuição do objeto se diferente e as vezes, até oposta. Dessa forma, esse critério, para Aristóteles, é sempre um objeto de conflito, visto que sempre há pretendente e inúmeros argumentos para a utilização de determinado critério, tendo em vista também que o critério da igualdade aritmética está inviabilizado na natureza e na realidade.

Logo, para solver tal dilema, Aristóteles propõe que só há um critério: a areté, a virtude. A excelência com a qual você exerce um papel na sociedade. Ou se dá mais para o mais virtuoso, premiando-o, maximizando suas potências e virtudes (justiça distributiva), ou dá-se aos menos virtuosos, de forma a corrigir uma desigualdade e tentar harmonizar e permitir que todos possam ter excelência (justiça corretiva). Por fim, é notório que Aristóteles era favorável ao primeiro modo de justiça, visto ser um aristocrata, de forma a potencializar ao máximo os virtuosos a atingir suas potências.

No mais, ele qualifica o Direito tomando como referência a coexistência justa, racionalmente perfeita. O Direito, diz Aristóteles em Ética à Nicômaco, «é o que pode criar e conservar, no todo ou em parte, a felicidade da comunidade política», devendo-se recordar que a felicidade,, como um fim próprio do homem, é a realização ou a perfeição da atividade do homem, ou seja a razão. A sanção do Direito, diz ele em Política, «é a ordem da comunidade política e a sanção do Direito é a determinação do que é justo.» Mas um Direito assim entendido é só o Direito Natural, que é o melhor e em toda parte o mesmo. O Direito fundado na convenção e na utilidade é análogo às utilidade de medida que variam de um lugar para o outro; o Direito Natural, ao contrário, é «aquilo que tem a mesma força em toda parte e independe da diversidade das opiniões.»

Agostinho foi outro grande nome do Jusnaturalismo, que bebendo das fontes de Platão, mas as refinando no cristianismo antigo, alega que o Direito Natural não foi gerado por uma opinião, mas inserido em nós por uma força inata, do mesmo modo como, na religião, estão a piedade, a graça, a observância, a verdade.

Com efeito, para Agostinho, as leis criadas pelo Estado (cumpre dizer, as lei temporais contingentes), para serem consideradas justas, «devem estar de acordo com o princípio do Direito Natural, que, por sua vez, deriva do Direito eterno». Como se vê, Agostinho defendia que a justiça real divina devia ser encontrada na estrutura da natureza humana em sua relação com Deus; diante de tal perspectiva, a justiça, portanto, não era uma resultante da opinião pessoal do ser humano.

Agostinho de Hipona

No que tange às leis, Agostinho as divide em:

Lex aeterna: Direito natural. A priori, o homem não possui acesso à essa lei, por conta da Queda do pecado original. Não obstante, o homem pode ter acesso ao direito natural através da fé (usando do livre-arbítrio para olhar para si próprio). A lei eterna, para Agostinho, visa a paz eterna.

Lex humana: Leis criadas pelos homens para viver em sociedade. Agostinho dizia que era preciso que a fé orientasse a lei dos homens, de modo que essas leis se tornem minimamente justas. Esse tipo de lei, para o autor, visa a paz social.

Com Agostinho temos a ruptura entre o Direito Natural, ou Jusnaturalismo Cosmológico para o Teológico. As leis que antes eram derivadas e captadas da natureza cósmica e dos seres e do mundo teogônico helênico, passou-se a ter o elemento do logos cristão. O Deus divino revelado em carne passou a ser elemento chave na Filosofia e como consequência, no Direito.

Agora as leis são algo mais: são a vontade de Deus. São elemento volitivos. Podem ser descobertos por meio da razão e da fé. São fornecidos por seu Criador-Legislador. O que antes era uma harmonia misteriosa, agora tinha uma Divina Providência, no qual as leis tinham um papel importantíssimo.

Essa ruptura e a ascensão da Igreja Católica fez com que o Direito Natural, assim como o Direito Canônico ganhassem poderio e força, chegando a apoteose com Tomás de Aquino.

O Doutor Angélico foi o maioral do período medievo e seus escritos abrangem desde metafísica, epistemologia, até moral, ética, direito, teologia e biologia. No que nos concerne ao seu pensamento jusfilosófico, Tomás retoma a doutrina de Ética à Nicômaco de Aristóteles, bem como do cristianismo já consolidado por Agostinho, Boécio, Anselmo e outros, e fundamenta um Direito Natural teológico no qual há uma lex aeterna, uma razão que governa todo o universo e que existe na mente divina; a lex naturalis que está nos homens é reflexo ou «participação» dessa lei eterna. (Suma Teológica). Outrossim, há também, outras duas espécies legais: a lex humana, inventada pelos homens e segundo a qual se dispõe de determinado modo das coisas a que a lex naturalis já se refere e a lex divina, necessária para encaminhar o homem ao seu fim sobrenatural.

O Doutor Angélico Tomás de Aquino

Na era medieval, prevalecia a concepção do direito natural objetivo e material, de espírito tomista, que estabelecia o valor moral da conduta pela consideração da natureza do respectivo objeto, conteúdo ou matéria, tomada como base de referência a natureza do sujeito humano, considerado na sua realidade empírica, mas quando reveladora do seu dever-ser real e essencial.

Assim, no que diz respeito ao fundamento de todas as leis feitas pelos seres humanos, Tomás de Aquino repete a doutrina clássica platônico-aristotélica de que não é lei aquela que não é justa, e por conseguinte, «qualquer norma humana positivada deve derivar da lei natural, que é a primeira regra da razão.» Em geral, pertence a lei natural, tudo aquilo que o homem se inclina naturalmente. Ele distingue 3 inclinações fundamentais: ao bem natural, compartilhada com qualquer substância que , como tal, deseja a própria conservação; para determinado atos ensinado a todos animais, tais como a união heteroafetiva e a educação da prole e; a inclinação racional do homem, que sempre busca a verdade, viver em sociedade, etc. Assim, em seu Jusnaturalismo tomista, ele inclui tanto razão prática como instinto.

Portanto, o jusnaturalismo dos escolásticos concebia o direito natural como um conjunto de normas ou de primeiro princípios morais, que são imutáveis, consagrados ou não na legislação da sociedade, visto que resultam da natureza das coisas e do home, sendo por isso apreendido imediatamente pela inteligência humana como verdadeiros. (DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito.)

Ocorre, posterior a Reforma Protestante, a Revolução Copernicana, a queda do predomínio do poderio da Igreja, e por consequência, do Direito Natural de visão teocêntrica. As sementes das Escolas rivais ao Jusnaturalismo estão germinando no solo do pensamento jurídico, todavia, ainda há muitos arbustos sufocando e impedindo-os de florescer. Por isso, o Jusnaturalismo, com a ascensão do cartesianismo e do racionalismo, passa a adotar uma visão mais humanitária — no sentido de tirar os olhos do metafísico transcendental e a fundar-se no terreno imanente. Os juristas naturalista modernos passam a propor um Direito Natural real e secular, buscando validar na identidade da razão humana. Nessa nova concepção, não é a lei de Deus que é imutável, mas a natureza do homem — mas não na visão aristotélica, visto que sua física tinha sido bastante atacada.

É por isso que Nicola Abbagnano em seu Dicionário de Filosofia nos ensina que Jusnaturalismo é uma:

Teoria do direito natural configurada nos séculos XVII e XVIII a partir de Hugo Grócio (1583–1645), também representada por Hobbes (1588–1679) e por Pufendorf (1632–1694). Essa doutrina, cujos defensores formam um grande contingente de autores dedicados às ciências políticas, serviu de fundamento à reivindicação das duas conquistas fundamentais do mundo moderno no campo político: o princípio da tolerância religiosa e o da limitação dos poderes do Estado. Desses princípios nasceu de fato o Estado liberal moderno. O Jusnaturalismo distingue-se da teoria tradicional do direito natural por não considerar que o direito natural represente a participação humana numa ordem universal perfeita, que seria Deus (como os antigos julgavam, p, ex., os estoicos) ou viria de Deus (como julgaram os escritores medievais), mas que ele é a regulamentação necessária das relações humanas, a que se chega através da razão, sendo, pois, independente da vontade de Deus. Assim, o Jusnaturalismo representa, no campo moral e político, reivindicação da autonomia da razão que o cartesianismo afirmava no campo filosófico e
científico.

Logo, se percebe que essas terceira fase, i.e., do Jusnaturalismo moderno, ou racional, é uma tentativa de tornar científico o Direito Natural, não por proposições misticas ou religiosas, mas dedutivas racionais.

Dos jusnaturalistas modernos, há dois grupos com concepções distintas da natureza humana: um que a considera genuinamente social (Hugo Grócio, Samuel Pufendorf e John Locke) e o outro que advoga para uma situação originalmente a-social ou «individualista» tendo como seus principais representantes Thomas Hobbes, Baruch Spinoza e Jean-Jacques Rousseau.
Influenciado pelo matematicismo cartesiano, Grócio fundamenta o Direito Natural na própria natureza humana, que conduziria os indivíduos às relações sociais mesmo que eles não tivessem necessidade uns dos outros. Por isso que tal Direito teria lugar mesmo que se admitisse aquilo que não pode ser admitido sem cometer um delito: mesmo que Deus não existe ou que não se preocupa com as coisas humanas.

Pode-se argumentar que, embora um defensor do Direito Natural, Grócio é um dos responsáveis na modernidade por uma concepção jusnaturalista secularizada, que já não se formula mais no sentido da percepção medieval de Direito Natural, tal como encontrada, por exemplo, em são Tomás de Aquino […]Para Grócio, ainda que o homem seja criado à imagem e semelhança de Deus, o Direito Natural se origina na natureza humana racional.(MARCONDES, Danilo. STRUCHINER, Noel. Textos Básico de Filosofia do Direito: de Platão a Frederick Schauer.)

Grócio dividiu o direito em duas categorias: jus voluntarium, que decorre da vontade divina ou humana e jus naturale, oriunda da natureza do homem devido a sua tendência inata de viver em sociedade[…]Grócio libertou a Ciência do Direito de funamentos teológicos, cedendo às tendência sociológicas de seu tempo, e intuiu que o senso social, tão peculiar à inteligência humana, é fonte do direito propriamente dito.(DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito.)

Hugo Grócio

Conclui-se que para Grócio, o Direito Natural é imutável, pois, como 2+2=4, e nem mesmo Deus pode alterar, também é assim com o Direito Natural, pois a razão humana social é eterna e atemporal, sendo nossa essência.

O famoso empirista Locke era contrário ao pensamento de Grócio de que a lei fosse um ditame da razão, mas a considerava como sancionada e impressa nos corações dos homens por uma potência superior; desse modo, a razão só faz descobri-la, não sendo sua autora, mas sua intérprete. Dessa forma, declara que a lei natural é mais inteligível do que o Direito Positivo, visto que este último é ambíguo e confuso e somente justo quando seus fundamentos estão alicerçados na lei natural.

Segundo a lei lockeana, o homem em estado de natureza — aqui deve-se abrir um parênteses para essa doutrina visto que diversos autores que adotam a tese do contratualismo ora são jusnaturalista, ora não o são, não sendo portando, uma visão homogênea, tendo em vista não ser uma doutrina específica do Direito, mas sim, uma teoria do surgimento do Estado — teria sua vida, sua liberdade e sua propriedade vinda de suas ações de apropriação (trabalho). Esse direitos nascem com o homem e o regia nessa situação primitiva, sendo permitido aos homens executarem o papel de Executivo e Judiciário, i.e. punir alguma lesão que lhe fora causa e ressarcir algum prejuízo. Visto que somente o pacto social pode sanar as deficiências do estado de natureza, instaura-se o governo civil com a tripartição de poder: executivo, legislativo e federativo (este último com poder para declarar paz e guerra).

Empirista John Locke

Tendo em vista que a instituição do Estado civil se dá como um mecanismo de eficiência para combater as deficiências do estado de natureza, é nítido que é posterior aos Direitos Naturais e sua validade está sujeita a proteção e respeito destes. Assim, Locke instaura sua doutrina de rebelião ao Estado que viole o pacto social, i.e., que seja um agressor dos Direitos Naturais e que não sane as deficiências para as quais fora incumbido, de forma a se retornar ao estado de natureza ou iniciar um novo Estado com novos moldes.

Por fim, ele

reconhece […]o individualismo do Direito Natural moderno, pois,[…]a única sociedade política condizente com a natureza humana é o Estado liberal-democrático, cujo fim é garantir os Direitos Naturais ou liberdades individuais, mormente o direito intangível e irrestrito à posse e ao uso dos bens adquiridos pelo trabalho. (DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito)

Já Pufendorf expõe em suas obas um sistemas jusnaturalista mais completo que seus antecessores, dando continuidade na lex naturalis de Grócio, que via como algo interno ao homem e sua natureza. Mas Samuel Pufendorf enxerga tal lei como resultado de forças externas, ligando e unindo os homens em sociedade. Para ele, o princípio supremo do Direito Natural exprime a exigência da coexistência pacífica entre os homens.

No campo do Direito Público, Pufendorf ensina que a vontade do Estado é a soma das vontades individuais que o constituem e que tal associação explica o Estado. Nesta concepção a priori, Pufendorf demonstra ser um precursor de Jean-Jacques Rousseau e do «contratualismo».

Defende também a noção de que o Direito Internacional não está restrito à cristandade — algo inovador para época, por considerar pagãos e gentios — mas constitui um elo comum a todas as nações, endo em vista que formam a humanidade como um todo.

A conceituação de Pufendorf de Estado é também inovadora para a época: visão na sua relação com a sociedade, que mais tarde é classificada como transpersonalismo.

Samuel Pufendorf

Essa visão considera que o Estado é um ente moral (fictício, uma criação abstrativa) . Processo de divisão entre Estado e as pessoas que corporalizam esse Estado — pessoa física do soberano. Isto, porque, até aqui, falar de Estado e de soberano era a mesma coisa. Portanto, aqui o Estado é separado das pessoas físicas.

No que concerne aos pensadores que enxergam a natureza humana como originalmente a-social, o infame Hobbes, tornou-se conhecido pela sua obra Leviatã onde desenvolve sua teoria mecanicista e corporeísta, bem como sua defesa pelo absolutismo político.

Dentro dessa obra, Hobbes afirma que a base do Estado são o egoísmo e o convencionalismo. O primeiro seria a inclinação natural do homem ao bem relativo originário, i.e., a vida e sua conservação. O segundo pressuposto é a busca pela justiça, que é uma convenção estabelecida pelos homens e cognoscível de modo perfeito e a priori.

Dito isso, Hobbes inicia sua tese com o conceito de estado de natureza, onde, de forma antagônica à visão aristotélica do zoon politikon, o ser humano vivia fora da sociedade, como uma animal.

Na versão de Hobbes, os seres humanos antes do Pacto viviam uma vida curta, sórdida e brutal em estado de natureza onde a quase única certeza era a de uma morte violenta. Sem que a humanidade carregasse consigo algum tipo de disposição social inata (pelo contrário, O homem é o lobo do homem), somente um Pacto no qual todos se vissem impedidos de atacar uns aos outros poderia ter alguma serventia. O medo da morte violenta leva ao Pacto, esse medo o mantém e esse mesmo medo […], pode anulá-lo. (grifos no original)(RAMOS, et at. Manual de Filosofia Política)

O objetivo das restrições que os homens estabelecem para si mesmos, diz Hobbes, é preservar-se da guerra universal que resulta do amor à própria liberdade e ao domínio sobre os outros. (RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental — vol. 3: Filosofia Moderna)

Com isso, os homens saem do estado de natureza bélico e abdicando de suas liberdades e apetites individuais, conferem poderes a um ou alguns para ser o soberano para com isso evitar a guerra contínua e salvaguardar a vida.

Com essa assembleia social, surgem as leis da natureza — vale ressaltar que Hobbes diverge de Locke, no qual o homem possui direitos inatos. Para a teoria hobbesiana, os direitos surgem com o nascimento do Estado — que sozinhas, não bastam para constituir a sociedade. Sem a espada que lhes imponha o respeito, o Pacto não serve de nada para atingir seu objetivo. Não obstante, para esse pensador as leis naturais são os comandos morais que incutem no homem a vontade de autopreservação e defesa por uma ordem político-social garantida por um poder coercitivo absoluto.

Thomas Hobbes

Disso, resulta na formação do corpo artificial, isto é, o Estado Soberano, no qual deve aos homens paz e defesa. Tal Estado é equiparado pelo filósofo britânico ao monstro bíblico Leviatã, visto ser um deus mortal terreno, inferior somente ao Deus Verdadeiro.

E ai surge a maior peculiaridade do sistema político hobbesiano: o tal Pacto social é somente «assinado» entre os súditos. O Soberano não participa disso, recebendo tão somente a prerrogativa de ser o monarca absoluto.

Para montar o poder absoluto, Hobbes concebe um contrato diferente, sui generis. Observemos que o soberano não assina o contrato — este é firmado apenas pelos que vão se tornar súditos, não pelo beneficiário. Por uma razão simples: no momento do contrato, não existe ainda soberano, que só surge devido ao contrato. Disso resulta que ele se conserva fora dos compromissos e isento de qualquer obrigação.(WELFFORT, Francisco C. Os Clássicos da Política: volume 1)

Com tal poderio e absolutismo, o Soberano detinha todos os direitos e liberdades para si, bem como a ordem do corpo artificial. Sua palavra era lei totalitária. Nem mesmo o direito de rebelião era permitido aos súditos, visto que para se rebelar, deveriam se submeter ao Leviatã para isso. Não a nem que se falar em decisões injustas do Soberano, pois tudo aquilo, fora previamente autorizado na formação pactual.

Logo, resulta que qualquer anseio de derrubar o monarca seria considerado uma tentativa de retorno ao estado de natureza de selvageria e uma ruptura ao acordo social. Nas palavras de Jakobs:

Hobbes tinha consciência desta situação. Nominalmente, é (também) um teórico do contrato social, mas materialmente é, preferentemente, um filósofo das instituições. Seu contrato de submissão — junto a qual aparece, em igualdade de direito (!), a submissão por meio da violência — não se deve entender tanto como um contrato, mas como um metáfora de que os (futuros) cidadãos não perturbem o Estado em seu processo de auto-organização. De maneira plenamente coerente com isso, Hobbes, em princípio, mantem o delinquente, em sua função de cidadão: cidadão não pode eliminar, por si mesmo seu status. Entretanto, a situação é distinta quando se trata de uma rebelião, isto é, de alta traição: «Pois a natureza deste crime está na rescisão da submissão, o que significa uma recaída no estado de natureza… E aqueles que incorrem em tal delito não são castigados como súditos, mas como inimigos.(grifos não constam no original).(JAKOBS, Günther. MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas)

Assim, se percebe, mesmo que embrionário, uma doutrina de prevenção social de perigos. Muito embora, como já exposto nos capítulos anteriores algumas formas de prevenção primitiva, somente com o britânico Hobbes encontramos isso com mais rigor e formalização.

Hobbes visualiza um perigo eminente e devastador no indivíduo que afronta o corpo estatal, seja de forma contumaz, seja com objetivo de derruba-lo — consequentemente o retorno ao estado primitivo, visto que a função do Estado é a manutenção do corpo social e a segurança contra a morte violenta. Qualquer infração aos termos do Pacto seria uma afronta a isso e uma «validação» da vida prévia.

Ante tal perigo, o Leviatã se veria permitido de excluir tal pessoa do contrato e trata-la como inimigo e selvagem, podendo destruí-la para preservação do deus mortal. E tal prerrogativa se encontra na própria finalidade de segurança almejada na abdicação das liberdades. Ao entregar seus apetites e liberdades, os homens esperam segurança, que deve ser fornecida pelo Estado.

Por fim, vale ressaltar que, muito embora Hobbes não admita rebelião e insurgência contra o Estado, é possível para o civil manter a sua autopreservação, escapando das garras do Leviatã quando esse descumprir o Pacto, i.e., atentar contra sua vida. Isso significa que caso o Estado seja o agressor, o indivíduo pode desrespeita-lo, pois nesse caso, muito embora o Soberano não tenha se comprometido com nada, pois não prometeu nada (não assinou nada), sumiu a razão que levava o súdito a obedecer. Esta é a verdadeira e única liberdade do súdito.

Quanto o franco-suíço Rousseau, figura tanto quanto controversa no rol dos filósofos iluministas, é considerado por muitos o pai da pedagogia moderna. Dentre seus diversos escritos, os mais relevantes são Discurso sobre a origem da desigualdade e Do Contrato Social.

Junto de Hobbes e Locke, Rousseau pertence ao rol dos contratualistas clássicos. Todavia, seu posicionamento é antagônico ao dos britânicos empiristas.

A hipótese de Rousseau é a do estado de natureza, segundo o qual o homem é originariamente íntegro, biologicamente sadio e moralmente reto, sendo mau e injusto apenas sucessivamente, por um desequilíbrio de ordem social. Esse pensamento está bem sintetizado na famosa máxima o homem nasceu livre e em toda parte se encontra sob ferros.

Na concepção rousseauniana, no primitivismo, o homem é amoral, livre e irracional, sendo portanto, privado de obrigações e ética. A falta de racionalidade priva o homem de juízos de valor, sendo uma situação de «selvageria sadia e benéfica».

Jean-Jacques Rousseau

Todavia ainda nesse estágio primal, assim como na teoria hobbesiana, o franco-suíço enxerga o instinto de autopreservação e também o da comiseração natural a ver qualquer outra criatura sofrer.

Desses dois instintos decorrem as normas de Direito Natural: a) nunca se deve fazer mal a outrem, salvo no caso de ser legítima a preferência da própria conservação; b) autoconservação abrange além de ser e bem-estar biológicos, a manutenção da qualidade específica do homem, consistindo no dom moral e natural da liberdade e igualdade entre os homens. […] A liberdade consiste na obediência do homem à norma que a si mesmo prescreveu.(DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito)

Somente com a origem da propriedade privada — abominada por Rousseau, que a classifica como origem da sociedade civil, logo, da corrupção do homem — é que temos a socialização do homem com seus semelhantes. Ante tal fato, o homem se deprime, se corrompe e perde sua bondade inata e bela. Para isso, é necessário um projeto que resgate a liberdade do homem, que fora privada pela civilização e pela propriedade privada. (Segundo explica Bertrand Russell, a origem da sociedade civil e das desigualdades sociais que lhe são consequentes deve ser buscada na propriedade privas. «O primeiro homem que, ao cercar um pedaço de terra, cogitou afirmar ‘isto é meu’ e encontrou gente simples o bastante para acredita-lo foi o verdadeiro fundador da sociedade civil.» (RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental — vol. 3: Filosofia Moderna))

É ai que surge o Contrato Social.

Visto que saímos da naturalidade da selvageria e mansidão para a cultura, onde surge a competição, conflitos, artes, ciências, impactos e relações, decaindo o homem para a maldade, injustiça e arrogância, o Contrato Social é o caminho de «renaturalização» do homem, um resgate.

Tal Contrato, é um pacto — semelhante ao acordo hobbesiano — de união instituído entre iguais, i.e., os homens, que hão de permanecer sempre assim, dando lugar a um corpo moral e coletivo: o Estado. Esse pacto não restaura a liberdade natural, mas concede a liberdade civil.

Com o surgimento desse corpo coletivo,

[…] ninguém sai prejudicado, porque o corpo soberano que surge após o contrato é o único a determinar o modo de funcionamento da máquina política, chegando até mesmo a ponto de determinar a forma de distribuição da propriedade, como uma de suas atribuições possíveis, já que a alienação da propriedade de cada parte contratante foi total e sem reservas. Desta vez, estariam dadas todas as condições para a realização da liberdade civil, pois o povo soberano, sendo ao mesmo tempo parte ativa e passiva, isto é, agente do processo de elaboração das leis e aquele que obedece a essas mesmas leis, tem todas as condições para se constituir enquanto um ser autônomo, agindo por si mesmo. Nestas condições haveria uma conjugação perfeita entra a liberdade e a obediência. Obedecer à lei que se prescreve a si mesmo é um ato de liberdade. Fórmula que seria desenvolvida mais tarde por Kant. Um povo, portanto, só será livre quando tiver todas as condições de elaborar suas leis num clima de igualdade, de tal modo que a obediência a essas mesmas leis signifique, na verdade, uma submissão à deliberação de si mesmo e de cada cidadão, como partes do poder soberano. Isto é, uma submissão à vontade geral e não à vontade de um indivíduo em particular ou de um grupo de indivíduos. (WELFFORT, Francisco C. Os Clássicos da Política: volume 1)

Tal vontade geral é o princípio que legitima o poder e garante a transformação social inaugurada pelo «novo contrato». Enquanto a vontade particular tem sempre como objeto o interesse privado, a vontade geral é, ao contrário, amante do bem comum, e se propõe o interesse comum: ela não é, portando, a soma das vontades de todos os componentes, mas uma realidade que brota da renúncia de cada um ao próprios interesses em favor da coletividade. (REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. História da Filosofia — vol. 4: De Spinoza à Kant)

Com isso, devidamente organizada a sociedade e corrigido os erros da civilização com a renaturalização do homem, qualquer homem que coloque seus apetites como principal e pratique o ilícito deixaria de ser membro do corpo estatal — ativo e passivamente. Nas próprias palavras de Rousseau:

De resto, todo malfeitor, ao atacar o direito social, torna-se, por seus delitos, rebelde e traidor da pátria, cessa de ser um de seus membros ao violar suas leis e chega mesmo ponto de lhe declarar guerra. A conservação do Estado passa a ser, então, incompatível com a sua; faz-se necessário que um dos dois pereça, e quando se condena à morte o culpado, que o se faça na qualidade de cidadão e não na de inimigo.(ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social)

Assim, na tese de Rousseau, formado o corpo político coletivo mediante o Contrato Social, legitimado pela vontade geral, qualquer um que infrinja este acordo, entra em guerra contra o Estado, devendo perecer, visando a manutenção e existência do Estado.

Talvez o maior filósofo desde Platão e Aristóteles, Kant (1724–1804) é um sujeito de um intelecto colossal e invejável, sendo até perigoso e desrespeitoso abordar sua teoria política sem abordar em totalidade sua filosofia transcendental, tamanha a importância e profundidade de seu sistema. Todavia, uma penetração mais incisiva no criticismo de Kant seria muito longo e nos tiraria do foco do presente artigo, visto que a obra de Kant percorre desde a metafísica, passando por epistemologia, estética, ética e até mesmo pedagogia e física astronômica. Portanto, temos que nos ater ao cerne da filosofia política e ético-moral de Kant, devidamente trabalhadas nas obras Crítica da razão prática, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, À Paz Perpétua e A Metafísica dos Costumes.

Também é importante ressaltar as influências em Kant e as influências de Kant.

Foi educado numa versão wolfiana da filosofia de Leibniz, mas viu-se levado a abandoná-la graças a duas influências: Rousseau e Hume. […] Kant foi homem de hábitos tão regulares que as pessoas costumavam ajustar os relógios quando o viam fazer sua caminhada, mas em certa ocasião seu horário foi tumultuado por vários dias: a causa fora a leitura de Emílio. Kant afirmou que precisava ler os livros de Rousseau várias vezes […] tornou-se liberal tanto no plano político quanto no teológico. (RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental — vol. 3: Filosofia Moderna)

Embora seja mais conhecido a influência de Hume em Kant — visto que o próprio pensador confessa que foi o britânico que o despertou de seu «sono dogmático», é notório e relevante a influência do contratualismo e da pedagogia rousseauniana na filosofia crítica.

Partindo do pressuposto de sua teoria da razão pura e da razão prática, Kant formula seu sistema ético de maneira robusta, com os denominados «imperativos», os hipotéticos e os categóricos. Os primeiros dizem que você deve fazer isso-e-aquilo caso deseje alcançar esta-ou-aquela finalidade. Os últimos determinam que certo tipo de ação é objetivamente necessário por si só, sem relação quando qualquer finalidade.

Este último ficou conhecido na máxima kantiana que prescreve: age como se a máxima de tua ação devesse converter-se, pela tua vontade, em lei geral da natureza. Em termos menos técnicos, teríamos que agir de forma como se nossas ações fossem uma lei para todos os seres humanos racionais.

E tal objetivo de universalização ética irá influenciar em muito vários autores posteriores à Kant, tais como Hans Kelsen, com sua Norma Fundamental Hipotética , Jürgen Habermas, grande pensador da Escola de Frankfurt, que em comunhão de Karl-Otto Apel, desenvolveu a teoria do agir comunicativo e a ética do discurso, bem como também fora professor de Hans-Hermann Hoppe, filósofo e economista do qual iremos falar em breve.

Na teoria kantiana, processa-se a separação entre direito e moral, sob o prisma formal, e não material, isto é, tal distinção depende do motivo pelo qual se cumpre a norma jurídica ou moral. No ato moral, o motivo só pode ser a própria ideia do deve, mesmo que seja diretamente dever jurídico e só indiretamente dever moral. Porém, no mesmo ato jurídico, o motivo de agir pode ser, além do motivo moral de cumprir o dever, o da aversão à sanção, seja ela pena corporal ou pecuniária. Kant identifica o direito com o poder de constranger. […] As normas jurídicas, para tal concepção, serão de direito natural, se sua obrigatoriedade for cognoscível pela razão pura, independente de lei externa ou de direito positivo, se dependerem, para obrigarem, de legislação externa. Mas nesta hipótese, deve-se pressupor uma lei natural, de ordem ética, que justifique a autoridade do legislador, ou seja, o seu direito de obrigar outrem por simples decisão de sua vontade. […] Kant, portanto, pode ser considerado como jusnaturalista, enquanto admite leis jurídicas anteriores ao direito positivo. Trata-se de leis naturais, que obrigam a priori, antes de qualquer imposição de autoridade humana. Tais leis não são naturais no sentido de referentes à natureza, dependentes da causalidade e conhecidas pela experiência. Não é ele jusnaturalista no sentido de que o direito se baseia na natureza, mas porque se funda na metafísica dos costumes, na razão prática. (DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito)

O reflexo da razão prática e ética de Kant se dá em sua filosofia política cosmopolita e pacifista. O objetivo de Kant é o de acabar com todas as guerras, no mundo inteiro. E para isso, Kant desenvolveu seu diminuto, mas importantíssimo projeto filosófico d’À Paz Perpétua.

Bebendo do contratualismo, Kant alega que o Estado, enquanto uma sociedade de seres humanos, não é um patrimônio, mas uma pessoa moral. (Aqui também se nota a influência dos seus imperativos que ordenam a enxergamos e tratarmos os outros (seres humanos) como fins em si mesmo e não como meios para algo.) E tal Estado, constituído por seres racionais na passagem do estado de natureza (fictício) para a sociedade estatal é limitado e regulado no seu poderio. Não mais há o absolutismo de Hobbes, mas o federalismo e republicanismo de Kant, no seu projeto de cosmopolitismo. (É importante ressaltar que embora Kant não inclua em sua tese direito à resistência e à revolução, é inegável seu entusiasmo com a revolução francesa e o ideário republicano.)

Tendo pois, erigido o Estado civil, e buscando assim, eliminar todas as guerras, Kant afirma que o Estado de paz em que vivemos não é o status naturalis, mas sim um estado bélico, pois, muito embora nem sempre estejamos em conflitos, vivemos sob riscos e eminentes guerras à nossa porta. E tal perigo é o que válida e fomenta a instituição desse Estado internacional que viria acabar com os perigos, pois a vida social não eliminou os perigos que tínhamos na selvageria, tão somente atingimos a razão e a legalidade.

E a situação piora quando se trata de um perigo vindo de um estado de natureza contra um estado civil, visto que se fosse uma lesão vindoura de um civil contra outro, a autoridade a que ambos estão submetidos tutela o fato de forma cívica e legítima, resguardando as demandas de segurança exigidas.

Mas nas palavras de Kant:

[…] o ser humano (ou povo) em mero estado de natureza me tira essa segurança e já me lesa mediante este estado ao estar próximo a mim, embora não de fato (facto), mas através da ausência de lei do seu estado (statu iniusto) por meio do qual sou constantemente ameaçado por ele […]

Para isso, Kant irá legitimar que

[…] eu posso coagi-lo [nöthigen] ou a entrar comigo em um estado comum legal ou a deixar a minha vizinhança. […] todos os seres humanos que podem influenciar um ao outro reciprocamente devem pertencer a alguma constituição civil. (KANT, Immanuel. À Paz Perpétua: um projeto filosófico)

Assim, nas conclusões de Jakobs sobre Kant,

[…] quem não participa na vida em um «estado comunitário-legal» deve retirar-se, o que significa que é expelido ou «impelido à custódia de segurança»; em todo caso, não há que ser tratado como pessoa, mas pode ser «tratado» como anota expressamente Kant, «como um inimigo».(JAKOBS, Günther. MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas)

Immanuel Kant

Assim, a liberdade de agir segundo as leis, em Kant:

As leis descrevem relações de causa e efeito. Portanto os homens são livres quando causados a agir. (…) Liberdade é ausência de determinações externas do comportamento. (…) Se as ações são causadas, obedecem às leis. (…) A liberdade tem leis; e se essas leis não são externamente impostas, só podem ser autoimpostas». É justamente por isso que, segundo KANT, «quando unidos para legislar, os membros da sociedade civil são denominados cidadãos».(WEFFORT apud MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. Direito Penal do Inimigo: A Terceira Velocidade do Direito Penal.)

Tal visão de Jakobs sob Kant é corroborada pelo filósofo criticista quando este escreve que um estrangeiro pode ser mandado embora, se isso puder ocorrer sem a sua ruína. (Em certa situações, os nativos têm o direito de mandar os estrangeiros embora ou, pelos menos, de restringir-lhes o acesso, como, por exemplo, fez a China e o Japão. (KANT, Immanuel. À Paz Perpétua: um projeto filosófico))

Nas palavras do filósofo Bertrand Russell

O vigor e frescor do Kant tardio saltam aos olhos em seu tratado sobre a Paz perpétua (1795). Nele, o autor defende uma federação de Estados livres, unidos por um pacto que proíbe a guerra. A razão, diz, condena por completo a guerra, a qual somente um governo internacional pode impedir. A constituição civil dos Estado integrantes deve ser «republicana», mas para Kant o termo significa apenas que o executivo e legislativo devem estar isolados. Ele não afirma que não deve haver rei; na realidade, chega a dizer que é mais fácil obter governo perfeito sob a monarquia. Escrevendo sob o impacto do Período do Terror, ele suspeita da democracia; diz que se trata, necessariamente, de despotismo, uma vez que institui um poder executivo. «O chamado ‘povo inteiro’, que leva a cabo suas medidas, na realidade não são todos, mas apenas uma maioria; assim, aqui, a vontade universal encontra-se em contradição com si própria e com o princípio de liberdade.» O modo de expressar-se revela a influência de Rousseau, mas a importante ideia de federação mundial como forma de assegurar a paz não deriva dele. (RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental — vol. 3: Filosofia Moderna)

Dessa breve explicação do ilustre filósofo analítico, visualizamos que Kant pode ser considerado uma «síntese» de Hobbes com Rousseau. Por um lado, visualizamos um certo absolutismo, não nos moldes hobbesianos, mas sim, internacionalista e racionalista, melhor expresso em sua obra A Metafísica dos Costumes. Sua adesão ao contratualismo de Rousseau também é evidente, bem como o entusiasmo pela vontade geral e universal, criticando o sistema da democracia.

Todavia, se por um lado, Rousseau via a civilização como algo degenerativo, criando o Contrato Social para renaturalização, Kant partilha do temor hobbesiano do retorno ao primitivismo bárbaro, e enxerga um otimismo na sociedade e na razão, vendo um fim nobre para a mesma.

Após o crepúsculo do Jusnaturalismo para as vindouras correntes jurídicas que vieram (das quais falaremos em outros artigos), no século XX, houve uma lacônica, mas notável e brilhante retomada dessa Escola de Pensamento. Alguns do pensadores desse ressurgimento do jusnaturalismo são Germain Grisez e John Finnis na Nova Teoria do Direito Natural, onde: a) Tradição da filosofia analítica (prescindibilidade da metafísica, embora haja, assumidamente, premissas metafísicas); b) Centralidade da moralidade no sistema; c) A ética como sendo anterior à ontologia. A essência do ser humano é definida pela ética. Juízos morais são juízos práticos a respeito de meios, e não de fins. Fins são investigados num campo pré-moral. Esse é o caminho para contornar a guilhotina de Hume; d) Distinção entre razão teórica e especulativa e razão prática. Ética e direito (direito natural) pertencem à razão prática; e) Possibilidade de construir um sistema moral sem precisar lançar mão da ideia de Deus: três leis de Tomás de Aquino (+ lei divina); f) Ideia de bens humanos básicos, que incluem a religião; g) Controvérsia tomistas tradicionais versus neo-escolásticos. Releitura da compreensão de Tomás, demonstrando que, apesar de sua metafísica, a teoria de direito natural tomista não era fundamentada na metafísica

A versão mais radical da Escola de Direito Natural contemporâneo é o austrolibertarianismo anarco-capitalista de Murray Rothbard e Hans-Hermann Hoppe. Os principais elementos dessa corrente são: a) Qualquer agressão à propriedade privada dos indivíduos é injustificada b) Tradição de anarco-individualistas norte-americanos c) Rothbard: princípio da não agressão (PNA)d) Hoppe: Ética Argumentativa: Respeito à propriedade e impossibilidade de contradição performática.

Em A Ética da Liberdade, Murray Rothbard, que discorre acerca dos fundamentos de um arranjo jurídico-social que não agrida o direito de propriedade dos indivíduos. O livro, como escrevera o filósofo e economista Hans-Hermann Hoppe, possui um estilo argumentativo axiomático-dedutivo: a partir dos princípios da lei natural, liberdade e racionalidade humana, Rothbard deduz o direito de propriedade humana e aplica-o como modo de resolução de conflitos interpessoais relativos ao conceito de propriedade, tais como criminalidade e legalidade de contratos.

Rothbard explica que a pedra fundadora de sua teoria está centrada no conceito de lei natural. Assim como as leis físico-matemática — como o fato de que uma molécula formada por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio é, necessariamente, uma molécula de água — , o homem possui uma natureza que é universal e atemporal em todo o espaço.

A natureza do homem não depende, necessariamente, de uma fundamentação argumentativa teológica para ser logicamente válida — ela é, na verdade, estabelecida por uma faculdade objetiva que pode ser empregada por quaisquer homens para descobrir verdades: a ratio. Essa afirmação não pressupõe que a razão humana é infalível, mas que ela é um método consistente e singular, que exclui contradições, para se descobrir as leis naturais.

Partindo da ideia de características naturais, ele defende que há uma ética da lei natural que determina o «bem» de cada espécie como aquilo satisfaz o que é melhor para a natureza dessa espécie, incluindo a do ser humano.

Murray N. Rothbard, pai do Anarco-capitalismo

De maneira distinta ao conceito de utilidade presente na Economia, no qual as escalas de valores são subjetivas, o «bem» ético é objetivo por pautar-se na natureza dos homens e, por conseguinte, é a base para a determinação das regras do direito.

Rothbard busca deduzir que o direito à propriedade é natural e derivado da razão humana utilizando um exemplo adaptado da história de Robinson Crusoé. Nesta abstração, Crusoé é um indivíduo que, após um náufrago, ficou preso em uma ilha e adquiriu amnésia, esquecendo-se de sua vida e de suas habilidades adquiridas antes do episódio.

Quando o personagem se vê na ilha pela primeira vez, ele se depara com alguns «fatos inescapáveis»: sua consciência, seu próprio corpo e o ambiente natural que o cerca. Ele também possui objetivos, como alimentação, hidratação e moradia, mas ele não possui, inicialmente, o conhecimento para atender a essas vontades.

Independentemente se essas vontades são ou não essenciais para a sua sobrevivência, ele pode escolher quais (ou qual) delas almeja satisfazer e, após essa decisão, ele terá de descobrir como alcançá-las a partir dos recursos naturais disponíveis para uni-los à sua energia e trabalho e, enfim, contemplar seus desejos.

Neste processo, Crusoé exercita a sua razão — faculdade exclusivamente humana — e, com isso, aprende as leis naturais do mundo que o cerca (como a gravidade). Além disso, ele descobre fatos importantes acerca de seu próprio ser: que ele pode escolher suas ações e usar ou não sua razão no processo decisório — o que implica que ele tem liberdade; e o controle de seu corpo por sua mente — indicando, assim, sua natural autopropriedade.

[…] o próprio fato de que o conhecimento necessário para a sobrevivência e o progresso do homem não é dado naturalmente a ele nem determinado por acontecimentos externos, o próprio fato de ele precisar usar sua mente para aprender este conhecimento, demonstra que, pela sua própria natureza, ele é livre para usar ou não usar esta razão — i.e., que ele possui livre arbítrio (ROTHBARD, A Ética da Liberdade)

Com a constatação da existência da autopropriedade natural de cada indivíduo, o «pai do Anarco-capitalismo» utiliza um argumento de John Locke sobre como o homem apropria-se originalmente de bens e recursos disponíveis na natureza: utilizando seu próprio trabalho e poder de transformação desses recursos. Para o autor da Escola Austríaca de Economia, o trabalho não precisa ser continuado ad aeternum para a garantia do direito de propriedade ao indivíduo: basta que ele realize uma transformação nos recursos naturais uma única vez para que esses bens se tornem sua propriedade até a sua morte, até que renuncie ao direito de propriedade ou que efetue uma troca voluntária.

O trabalho de seu corpo e de suas mãos […] são devidamente seus. Tudo o que, pois, ele retira do que o reino da Natureza proveio e deixou, misturou com seu trabalho e juntou a algo que lhe é próprio, torna-se, assim, sua propriedade.

Com a conceituação da ideia de propriedade, a compreensão de termos fundamentais utilizados pelo teórico austríaco se torna mais compreensível. Ele define liberdade como «ausência de invasão das propriedades de um indivíduo (incluindo a sua autopropriedade)»; e afirma, parafraseando James A. Sadowsky, que uma pessoa «A» possui um direito quando é imoral que outrem, sozinho ou em conjunto, não permita, pelo uso de força física ou ameaça, que «A» realize uma determinada atividade. (ROTHBARD. A Ética da Liberdade)

Por conseguinte, deve-se ressaltar que para esse excêntrico pensador, é adotado uma concepção jurídica de direito negativo, pois, para ele, qualquer direito positivo, como qualquer tipo de programa social estatal, por não ser naturalmente assegurado, culmina na utilização de coerção para garanti-lo, desrespeitando a liberdade e, consequentemente, a propriedade individuais.

Discorrendo sobre como seria uma sociedade fundada na lei natural da propriedade privada, i.e., a sociedade libertária, Rothbard também esboça uma teoria de Direito Penal.

Uma propriedade legítima é facilmente identificável quando ela é adquirida pela apropriação original; surge, porém, uma crítica ordinária ao sistema capitalista: que os capitalistas obtiveram e obtém suas propriedades pela espoliação da classe operária e que, por conseguinte, os títulos de propriedade dos capitalistas são injustos (numa acepção legal).

Com a finalidade de rebater a crítica marxista, Rothbard organiza e estrutura sua teoria de propriedade e punição, alegando que, em uma sociedade libertária, a função da punição é a restituição da propriedade àquele que foi lesado. Assim sendo, se o indivíduo ou os indivíduos lesados não são claramente identificáveis, eles não possuem o direito de propriedade, a priori, de um bem ilegítimo de outrem. Isso não significa que aquele que detém uma propriedade ilegítima, caso ele seja o criminoso, deve permanecer neste estado — pelo contrário, ele perderá a posse do bem e sofrerá outras punições decorrentes de seu crime.

Todavia, na casuística, quando o criminoso perde a posse da propriedade, ela torna-se momentaneamente sem dono (res nullius) e só tornará a ser propriedade de uma pessoa quando alguém realizar o primeiro trabalho ou transformação desse bem, de modo equivalente à apropriação original.

Dessa forma Rothbard o rejeita a tese de que uma classe é expropriada por outra — para ele, os crimes de direito de propriedade referem-se a relações singulares entre indivíduos que precisam ser claramente identificáveis para que se use a violência legítima da restituição da propriedade. E mesmo se a propriedade tiver sua gênese ilegítima, mas o atual possuidor não for o criminoso, ele não pode ser criminalmente punido, pois não atentou-se contra o direito de propriedade de outrem. O quadro sinóptico abaixo sintetiza a teoria de punição rothbardiana.

Teoria da Pena de Murray N. Rothbard

Devido à tese de que crime é aquilo que viola o direito de propriedade legítima de um indivíduo, Rothbard é enfático em sua posição contrária à existência do Estado, porque ele afirma que a forma de obtenção de receita estatal ocorre a partir de coerção física (impostos); e que tanto o monopólio da força quanto o poder do Estado sobre o território nacional são alcançados de forma compulsória.

Uma sociedade libertária, portanto, não é compatível com a existência de um Estado.

Seu discípulo Hans-Hermann Hoppe, dando continuidade no trabalho de Rothbard, introduz na ética libertária algumas propriedades do agir comunicativo de Habermas, bem como complementa com a praxeologia de Mises, professor de Rothbard.

O método argumentativo hoppeano, como passou a ser conhecido (ou Ética Argumentativa), foi exposto em seu livro A Economia e a Ética da Propriedade Privada. No capítulo «Ética Rothbardiana», Hoppe afirma que a prova da autopropriedade pode ser oferecida explicando claramente as consequências que se seguiriam caso alguém tentasse negar a validade da instituição da propriedade privada e da apropriação original. Se uma pessoa, A, não fosse a dona de seu próprio corpo e dos lugares e bens originalmente apropriados e/ou produzidos com este corpo, como também dos bens adquiridos voluntariamente (contratualmente) de outro dono anterior, então apenas duas alternativas existem: (a) ou outra pessoa, B, deve ser reconhecida como a dona do corpo de A, bem como dos locais e bens apropriados, produzidos ou adquiridos por A, ou (b) todas as pessoas, A e B, devem ser consideradas coproprietárias iguais de todos os corpos, lugares e bens.

No primeiro caso, A seria reduzido ao posto de escravo de B e seria seu objeto de exploração. B é o dono do corpo de A e dos lugares e bens apropriados, produzidos e adquiridos por A, mas A por sua vez não é o dono do corpo de B e dos lugares e bens apropriados, produzidos e adquiridos por B. Consequentemente, sob esta regra duas classes categoricamente distintas de pessoas são constituídas — A e B — para as quais diferentes «leis» se aplicam.

Assim sendo, tal regra deve ser descartada por não ser uma ética humana igualmente aplicável a todos os seres humanos. Logo de cara, pode-se perceber que qualquer regra deste tipo não é universalmente aceitável e, portanto não pode reivindicar representar a lei. Porque para uma regra ser considerada uma lei — uma regra justa — é necessário que esta regra se aplique igual e universalmente a todos.

De forma alternativa, a hipótese de copropriedade igual e universal atende o requisito ético de lei igual para todos. Entretanto, tal opção sofre de outra falha ainda mais severa: se ela fosse aplicada, toda a raça humana iria perecer instantaneamente. Uma vez que toda ética humana deve permitir a sobrevivência da espécie, esta alternativa, então, deve ser rejeitada também.

Se todos os bens fossem copropriedade de todos, então ninguém, em momento ou lugar algum, teria permissão de fazer qualquer coisa a menos que tenha obtido previamente o consentimento de todos os outros coproprietários; indo mais a fundo na lógica, como alguém poderia dar tal consentimento se ele não fosse o dono exclusivo de seu próprio corpo (isso inclui suas cordas vocais) através do qual seu consentimento deve ser expressado? Na verdade, ele iria precisar primeiro do consentimento dos outros para poder expressar seu próprio, mas esses outros não podem dar seus consentimentos sem ter o dele primeiro etc. Logo, uma inviabilidade pragmática.

Visando ampliar a construção de Rothbard, Hoppe propõe a seguinte estrutura:

1. Toda afirmação só pode ser validada (ou avaliada quanto a validade) em uma argumentação;

2. Negar isso implica em argumentar (contradição performativa);

3. Argumentação é uma ação humana proposital que envolve o uso do corpo e outros re-cursos;

4. A argumentação é pacífica por definição e tem como finalidade verificar a veracidade de uma afirmação;

5. Negar «3» e «4» é uma contradição performativa;

6. Logo, para a argumentação cumprir os requisitos é necessário que (i) os oponentes de-vem possuir propriedade sobre o próprio corpo, e (ii) possuírem as mesmas propriedades de antes da argumentação;

7. Negar «6» é cair em contradição performativa, porque a parte que assim o fizer estará necessariamente abrindo mão da argumentação e de uma solução pacífica para uma solução através da coerção ou violência (o que não resolve conflitos, mas torna eles — os conflitos e violência — a norma).

Tal estrutura expõe a face da ética libertária e seu caráter a priori transcendental, pois demonstra as condições necessárias para se postular uma ética de forma racional e pacífica, de maneira que a ética consagrada impediria conflitos futuros e solveria os possíveis, bem como no ato de postulá-la, os agentes já estariam utilizando-a, de forma que a negação da validade da ética libertária seria uma contradição performativa.

Diante isso, se conclui que a única ética que não se contradiz é a que tem a propriedade privada como alicerce e corolário máximo.

Já devidamente edificada a ética libertária, se compreende que ela é uma ética antidemocrática, por entender que a democracia é um sistema agressor e precário, devendo ser substituída por uma sociedade de contratos voluntários, onde a propriedade privada é respeitada, com a derrocada do Estado, sendo regida pela Lei Natural e normas privadas de comum acordo.

Na concepção austrolibertária, o sistema democrático acarreta num declínio moral, social e econômico, pois ao instituir uma estrutura onde alguns são pagadores de tributos e outros são recebedores, onde a preferência temporal sobe e a propriedade privada é substituída pela propriedade pública fiduciária, há a propagação de um sistema predatório e agressivo, no qual a máquina estatal é o ente agressor e o indivíduo é o agredido.

Hoppe desenvolve com bastante rigor, trazendo informações históricas, econômicas e filosóficas, sua crítica ao sistema monárquico e ao democrático, visando legitimar o que ele chama de ordem natural, ou sistema de propriedade privada e trocas voluntárias, em seu livro Democracia: o deus que falhou. Não vamos nos atentar para as críticas — muito embora, como já exposto in retro, serão uteis para melhor compreensão — mas sim para a proposta de manu-tenção da ordem social numa possível sociedade libertária.

Já devidamente abolido o sistema estatal e instaurado a sociedade libertária, onde a propriedade privada é a norma fundamental basilar, tal regime não traria o Paraíso na terra, encerrando na totalidade os problemas do sistema atual, a democracia. Sempre haverá criminosos, assassinos, violadores de normas, perturbadores e os demais males da pior estirpe. Mas isso não significa que não devemos coexistir em sociedade. Para isso existe as leis, para delimitar nossas condutas bem como para punir nossas violações.

Todavia, na tal sociedade hoppeana, é possível que alguns indivíduos, muito embora não tenham violado a lei de propriedade privada — roubo, homicídio, lesão etc. — exerçam estilos de vida que, dentro de determinada comunidade, é perturbador e cause mal-estar.

Tais indivíduos, estariam violando normas de decoro e de bem-estar e/ou propagando ideias antagônicas à sociedade libertária, i.e., de defesa à violação da propriedade privada, da destruição ou mitigação da família ou de estilos de vida que coloquem em risco a ordem social. Trata-se de temor semelhante ao de Hobbes para com o estado de natureza, mas para Hoppe — que em sua obra Uma Breve História do Homem: Progresso e Declínio critica a tese hobbesiana do estado de natureza — o perigo é de um advento da sociedade marxista comunista, de uma tiranização monárquica ou de um retorno ao regime social-democrata.

Nas palavras do nobre economista

A execução do pacto é, em grande medida, uma questão de prudência, obvia-mente. Como e quando reagir e que medidas de proteção adotar são temas que requerem julgamento por parte dos membros da comunidade e, em especial, do titular e da elite comunitária. Assim, por exemplo, na medida em que as ameaças do relativismo moral e do igualitarismo estão restritas a uma pequena proporção de adolescentes e de jovens adultos durante apenas um breve período das suas vidas (até que estabeleçam uma família na idade adulta), pode muito bem ser suficiente simplesmente não fazer nada. Os defensores do relativismo cultural e do igualitarismo representariam pouco mais do que aborrecimentos ou irritações temporários, e a punição (sob a forma de ostracismo) pode ser bem leve e branda. Uma pequena dose de ridicularização e de desprezo pode ser tudo quanto seja necessário para conter a ameaça relativista e igualitarista. Quando o espírito de relativismo moral e de igualitarismo se consolida entre os membros adultos da sociedade (entre as mães, os pais e os chefes de famílias e de empresas), a situação, contudo, torna-se muito diferente; e medidas mais drásticas podem ser necessárias. (grifos não constam no original). (HOPPE, Hans-Hermann. Democracia, o deus que falhou.)

Hans-Hermann Hoppe

De forma cristalina, o autor alemão constrói, com base no instituto do ostracismo, um mecanismo de defesa e manutenção social contra desordeiros.

E o que seria esse ostracismo?

O Ostracismo consistia numa espécie de sanção existente em Atenas, no século V a.C, na qual, o cidadão, geralmente um político, que atentasse contra a liberdade pública, era votado pelos outros cidadãos para ser banido ou exilado, por um período de dez anos. O termo deriva do método de votar que consistia na escrita do eleito em um pedaço de cerâmica, denominado de Óstraco. O Ostracismo foi criado por Clístenes, é referido por historiadores como o «Pai da Democracia» — bastante irônico sua criação ser apreciada e refinada por um teórico crítico a tal sistema.

Atualizado para a realidade pós moderna, Hoppe aplica tal instituto como mecanismo moral, para prevenção de perigos sociais, como por exemplo, um adepto ao nazifascismo, um comunista, ou um indivíduo que pregasse e ameaçasse a estrutura da comunidade, colocando em xeque a paz e ordem.

Assim como o Direito Penal do Inimigo, a remoção física tem um nome bastante controverso e astuto, causando desconforto e polêmica. Talvez esse fora o objetivo de ambos teóricos com suas ideias.

Tendo já a lei de propriedade privada na defesa ético-jurídica, Hoppe não cai no purismo positivista de Kelsen de isolar um sistema de normas de valores morais, mas constrói uma defesa para a moral, que se atacada, poderia gerar reflexos na ética libertária.

Dessa forma

[…] os membros maduros da sociedade habitualmente expressam aceitação dos sentimentos igualitaristas ou até mesmo os defendem — seja na forma de democracia (governo da maioria), seja na forma de comunismo –, torna-se essencial que outros membros […] estejam preparados para agir de forma decisiva; e, no caso de a inconformidade continuar, eles devem excluir e, em última instância, expulsar esses membros da sociedade. Em um pacto celebrado entre o titular e os inquilinos da comunidade com a finalidade de proteger as suas propriedades privadas, não há algo como um direito de livre (ilimitada) expressão, nem mesmo um direito de expressão ilimitada na própria propriedade de um inquilino. É possível dizer inúmeras coisas e promover qualquer ideia sob este sol; mas, naturalmente, não é lícito a ninguém defender ideias contrárias à própria finalidade do pacto de preservação e de proteção da propriedade privada (ideias como a democracia e o comunismo). Não pode haver tolerância para com os democratas e os comunistas em uma ordem social libertária. Eles terão de ser fisicamente separados e expulsos da sociedade. Da mesma forma, em uma aliança fundada com a finalidade de proteger a família e os clãs, não pode haver tolerância para com aqueles que habitualmente promovem estilos de vida in-compatíveis com esse objetivo. Eles — os defensores de estilos de vida alternativos, […] terão de ser também removidos fisicamente da sociedade para que se preserve a ordem libertária. (grifo nosso)(HOPPE, Hans-Hermann. Democracia, o deus que falhou)

Esse polêmico parágrafo do magnum opus do filósofo e economista alemão deve ser devidamente interpretado para se evitar conclusões falaciosas.

Primeiro, deve-se entender que a «expulsão» que Hoppe fala, é pautada na lei libertária da propriedade privada (no direito de excluir terceiros), sendo portanto, uma expulsão que não atente contra a propriedade do removido, pois este não é um agressor, mas um perturbador da paz e da moral. Logo, não se trata de tomar os bens deste ou de pegar seu corpo e jogá-lo no meio do nada, mas sim, de exclui-lo da sociedade pacífica, pois aquele não prestara nenhuma garantia cognitiva de comportamento moral, de forma que a remoção física é o ostracismo moderno. E termos de mídia social, seria uma espécie de cancelamento do indivíduo.

Segundo, que tal ato não deve ser analisado puramente no crivo deontológico da ética — dever-ser, pois, como já explicado, se trata de uma defesa moral, bem como não está a punir violações à propriedade privada (esta sim tutelada pela ética deôntica), mas a preservar e prevenir uma corrupção de valores e um declínio social.

A título de menção brasileira, um digníssimo representante da Escola do Direito Natural foi o professor Goffredo Telles Junior que dá ao Direito Natural, o direito legítimo, a denominação de direito quântico, sendo este um conjunto de normas promulgadas pela governo inteligente nas conformidades com o sistema ético-moral da população referencial ao qual o ordenamento lhe é destinado. Assim sendo, o Direito Natural, quântico, tem suas raízes no seio do povo, sendo pois, o direito legítimo.

Jurista naturalista brasileiro Goffredo Telles Junior

O Direito Natural para Goffredo Telles Junior, é o direito que não é artificial, é o direito consentâneo com o sistema ético de referência, vigente em certa coletividade. Para ele, o Direito Natural não é o conjunto dos primeiros e imutáveis princípios de moralidade, que, por não serem normas jurídicas, não são direito. Tais princípios não são autorizantes, não autorizam o lesado pela sua violação a exigir o seu cumprimento ou a reparação do dano sofrido, por isso não são normas jurídicas, logo, não há por que rotulá-los de Direito Natural, mas sim de moral social. […]quântico, porque é o direito resultante do processo da organização do humano, atendendo às inclinações genéticas de um povo ou de um grupo social, exprimindo o seu sentimento ou estado de consciência, refletindo sua índole. O direito quântico é o direito do eu histórico. (DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito.)

Há que se fazer, antes de um fechamento, algumas considerações.

Autores de renome do Jusnaturalismo como Stammler, Del Vecchio, Villey e Nozick, além de tantos outros, não foram incluídos apenas por motivo de ser um artigo, e não de ter a pretensão de ser um ensaio sobre o Direito Natural. Em outro momento poderá ser abordado pensadores de Escolas que não foram mencionados.

Outrossim, há que também ressaltar que o Jusnaturalismo evoluiu desde a sua gênese até os dias atuais, se reformulando e alterando sua estrutura, mas ainda é visível um elemento essencial e intrínseco em todas as correntes: a busca por um ideal não positivista, não artificial, não humana (a razão é entendida como humana, mas não como produto humano, nem como algo alterado pelo tempo e pelas contingências). Podemos dividir o pensamento da Escola do Direito Natural em quatro grandes períodos: antigo, medieval, moderno (sendo agrupadas como Jusnaturalismo Clássico)e o contemporâneo.

O período clássico há distinções, conforme in supra sobre a fonte do Direito Natural: com os gregos pagãos, o logos cósmico é a fonte; para os medievos cristãos, é Deus; para os humanistas modernos, é a razão humana a fonte primária do Direito. As três principais teses do Jusnaturalismo Clássico são: 1) Filosofia Moral — defende que há certos princípios morais e de justiça que tem validade universal e acessibilidade à razão do homem. Essa característica se desdobra em duas: «caráter ontológico» que visão questionar a existência desses princípios e «caráter epistemológico» que indaga a possibilidade de conhecer tais princípios; 2) Definição de Direito — aqui há a defesa de que uma norma ou um sistema de normas não pode se configurar como jurídico se contradiz as leis naturais, sendo estas fundamentos daquelas; 3) Obediência moral ao Direito — se desdobra em duas versões: «forte» onde o Direito se identifica com os princípios morais e «fraco» onde o Direito não contradiz os princípios, não havendo uma identificação entre ambos. Para os Jusnaturalistas, direito justo é pleonasmo, tautologia e direito injusto uma aberração, uma contradição.

Já na visão contemporânea do Direito Natural, este se configura como um padrão racional de conduta. Uma norma ou ordenamento que não apresentar padrões racionais de condutas são defeituosos e inválidos. Tal doutrina possui duas vertentes: a «metafísica» e a «conceitual». Na primeira, defendida por Lon Fuller e Michael Moore, no qual o Direito é um tipo natural, cuja existência é semelhante aos objetos físicos, como rios, morros, madeira, etc, existindo independentemente das convenções humanas. Fuller alega que o Direito descreve (ser) a realidade social. Na tese conceitual, John Finnis privilegia a forma de como se concebe o Direito, destacando o caráter conceitual do jurídico, podendo ser entendido por um conceito mais amplo ou mais restrito. No primeiro, defende que o Direito é aquilo que é adotado por certa comunidade e o sentido mais restrito é aquilo que é abraçado por certos oficiais do sistema.

Daremos continuidade em «Noções básicas do Direito — Escola da Exegese»

Bibliografia utilizada e complementar

Compêndio de Introdução à Ciência do Direito — Maria Helena Diniz

Textos Básicos de Filosofia do Direito — Danilo Marcondes e Noel Struchiner

Introdução ao Estudo do Direito — Gustavo Filipe Barbosa Garcia

A Ética da Liberdade — Murray Rothbard

A Economia e a Ética da Propriedade Privada — Hans-Hermann Hoppe

Dicionário de Filosofia — Nicola Abbagnano

História da Filosofia Ocidental — Bertrand Russell

História da Filosofia — Giovanni Reale e Dario Antiseri

Direito Penal do Inimigo: noções e críticas — Günther Jakobs e Manuel Cancio Meliá

Direito Penal do Inimigo: remédios “democráticos” para males democráticos — Henrique Matheus Fernandes Ferreira

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Rick Theu

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