Noções básicas do Direito — Pós-Positivismo Jurídico

Rick Theu
7 min readAug 10, 2022

Leia aqui os artigos antecessores dessa série: Jusnaturalismo, Escola da Exegese, Historicismo Jurídico, Realismo Jurídico, Positivismo Jurídico.

Conforme bem vimos ao longo dessa série, o Direito passou por diversas análises e fundamentações, chegando ao século XX por uma amoralização e cientificidade exacerbada, visando lhe deixar neutro e objetivo.

Todavia, com o aparecimento do regime nazifascista na Europa e os horrores da Segunda Guerra Mundial, surgiu a necessidade de resgatar a moralidade e criar mecanismos materiais para que o Direito fosse mais humano e impedisse um novo Auschwitz.

Com isso, o Positivismo, e o Direito como um todo, passaram a não mais enxergar a moral como algo contrário ou antagônico ao Direito, mas sim como algo complementar. Eis ai o início do Pós-Positivismo.

Os juristas de alguns países, notadamente da Espanha e do Brasil, apelidam como pós-positivismo uma opção teórica que considera que o direito depende da moral, tanto no momento de reconhecimento de sua validade como no momento de sua aplicação. Nessa visão os princípios constitucionais, tais como a dignidade humana, o bem-estar de todos ou a igualdade, influenciariam a aplicação das leis e demais normas concretas. Essa visão do direito é inspirada em obras de filósofos do direito como Robert Alexy e Ronald Dworkin (apesar de eles não utilizarem o termo pós-positivismo). Alguns preferem denominar essa visão do direito “moralismo” ou neoconstitucionalismo.

O pós-positivismo não nega o positivismo, mas transcende sua visão de Direito apartado das outras ciências sociais, o que quer dizer que este nega a separação entre Direito e moral. Vale lembrar ainda que os princípios ganham força neste momento histórico, sendo não mais apenas utilizados quando de vácuo legal, como até fazendo parte da legislação.

Tal Escola do Pensamento é fruto de uma tendência geral do pensamento contemporâneo que visa resolver os incômodos deixados pelo Positivismo Jurídico.

A validade do Direito para o Pós-Positivismo não se limita estritamente ao material (Jusnaturalismo) nem ao formal (Juspositivismo), sendo procedimental.

Uma das questões centrais de debate do Pós-Positivismo é a valorização dos princípios, sendo de grande importância a diferenciação e conceituação de regras e princípios.

Nessa Escola de Pensamento, os principais critérios que diferenciam as regras dos princípios podem ser de natureza quantitativa ou qualitativa. Na primeira, fruto dos estudos positivistas, há três moldes: grau de generalidade; grau de imprecisão e; grau de discricionariedade.

No tocante à generalidade, conceituou-se que quanto mais genérica fosse a norma, mais próxima aos princípios esta está. E quanto menos geral, isto é, quanto mais específica, mais distante dos princípios, estando mais próximo às regras.

No molde da imprecisão, a situação se inverte: sendo a norma mais precisa, mais clara, ela será mais próxima às regras e vice-versa.

Por fim, no critério da discricionariedade, quanto mais espaço para a discricionariedade, isto é, maior liberdade do aplicador na tomada de decisão, mais próxima aos princípios está a norma. Caso a norma seja menos discricionária, tendo uma amplitude menor e mais vinculante, mais próximo às regras estará tal norma.

Todavia, essa classificação é derivada do Juspositivismo. No Pós-Positivismo se desenvolve um critério qualitativo. A título de explicação, um famoso pós-positivista, Ronald Dworkin, desenvolve seis teses centrais para o tema, que evidencia bem a ruptura com o positivismo puro, sem todavia, cair novamente no Jusnaturalismo medieval e racionalista.

1ª tese: crítica ao pensamento positivista analítico de Herbert Hart (positivismo inglês). Dworkin discorda da concepção hartiana de tratar o Direito como um conjunto de regras, sendo algumas de textura aberta (onde há uma margem maior de discricionariedade para o aplicador) e regras de textura fechada.

2ª tese: para o pensamento pós-positivista de Dworkin, regras e princípios são, ambas, normas jurídicas, e por conseguinte, relevantes para o Direito. Ambas tem aplicação prática e importância teórica para o estudo do fenômeno jurídico.

3ª tese: a aplicação das regras e dos princípios é realizada de maneira singular e diferente. Para as primeiras, utiliza-se o critério do tudo-ou-nada. Ou uma regra é válida ou inválida. Em caso de duas regras entrarem em conflito, aplica-se uma e não aplica-se a outra, de forma objetiva. Já no caso dos princípios, o seu reconhecimento não significa sua imediata aplicação, mas sim levar em consideração suas prescrições. Aqui é utilizado o critério de ponderação de peso/importância — sopesamento. Quando um princípio é aplicado, não significa que o outro, que é seu oposto, é inválido, mas sim que no caso concreto, o sopesamento verificou que era melhor e mais justo incidir o primeiro, sem contudo anular e afastar totalmente o outro.

4ª tese: uma boa interpretação jurídica repousa na melhor interpretação moral. Aqui é cristalino a retomada da problemática axiológica para o estudo da validade e da própria natureza do Direito.

5ª tese: a interpretação do Direito. O aplicador deve buscar a coerência e a integridade do Direito, visando alcançar sempre os princípios de Justiça.

6ª tese: o sistema jurídico não pode ser discricionário. Nas palavras de Dworkin, “todo caso possui uma resposta correta (right answer), o que garante a integridade ao sistema jurídico”. A resposta correta também existe mesmo nos hard cases, ou seja, deverá haver resposta correta nos casos nos quais as regras não determinem uma única resposta. Assim a única resposta seria determinada pela coerência do sistema jurídico. A única resposta correta seria aquela que melhor se justificar em termos de uma teoria substantiva, que tenha como elementos os princípios e as ponderações de princípios que melhor correspondam à Constituição, às regras do Direito e aos precedentes. “O positivismo, quero sustentar, é um modelo de e para um sistema de regras, e sua noção central de um teste fundamental único para o direito conduz-nos a perder a importante função destes padrões (princípios e diretrizes políticas) que não são regras”.

Assim, para Dworkin, os princípios são padrões diferentes das regras e das políticas públicas. Nessa linha Dworkin entende que “política pública” é aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, geralmente uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade, já os princípios se ligam a uma outra questão do ponto de vista normativo, possuindo dimensão moral: “chamo de princípio um padrão que deve ser observado não porque ele avançará ou assegurará um estado econômico, político ou social altamente desejável, mas porque ele é uma exigência de justiça ou equidade ou de alguma outra dimensão da moralidade”.

Outro gigante do pensamento pós-positivista é o alemão Robert Alexy, que toma a diferenciação de Dworkin sobre regras e princípios e busca a racionalização de uma teoria para os direitos fundamentais.

Para Alexy, as regras são razões definitivas. Se satisfeitas, são aplicadas em sua integridade. Se não satisfeitas, são inválidas. Se uma regra é válida, deve-se fazer o que exatamente ela diz, nem mais nem menos.

Já os princípios são mandamentos de otimização, aplicados em doses máximas, médias ou mínimas, sendo aplicados sempre. São o parâmetro axiológico de uma comunidade.

Outro ponto importante na teoria do filósofo alemão é que todos que operam o Direito, i.e., juízes, legisladores, advogados e etc, erigem uma pretensão de correção enquanto criam, interpretam, aplicam ou implementam o Direito. E tal correção se dá no âmbito moral, à partir da teoria do discurso.

Algumas das regras da teoria discursiva de Alexy são: a não contradição, a clareza linguística-conceitual e a atenção à verdade empírica. Sem isso, não há possibilidade de discurso e por consequência, de alcançar a verdade (muito semelhante ao agir comunicativo e ética do discurso de Karl Otto-Apel e Jürgen Habermas e a ética argumentativa de Hans-Hermann Hoppe).

No mais, Alexy afirma que os legisladores não criam um sistema de normas perfeito, que responda a todos os problemas e demandas lhe ofertado. De tal forma, é natural que haja regras vagas e conflitante num sistema jurídico, surgindo os hard cases, onde há também os conflitos de princípios.

Para Dworkin, como já vimos, a solução do litígio entre princípios é o sopesamento de importância casual. Para Alexy o critério é o de precedência. A título de exemplificação: transfusão de sangue para testemunhas de Jeová. De um lado há a autonomia e liberdade de crença individual. De outro lado está o princípio e direito à vida. Nesse choque de princípios a resposta de Alexy é com base no que vem primeiro, no que vem antes.

Para finalizar a síntese de um pensamento gigantesco como o de Alexy, ele propõe a máxima da proporcionalidade para aplicação e entendimento dos princípios. Tal máxima é a reunião de três máximas menores ou condicionantes, as quais são: a da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em stricto sensu.

A adequação está intimamente ligada à ideia do “ótimo de Pareto”, ou seja, verifica-se quando uma posição pode ser melhorada sem prejuízo de outra.

Já a necessidade, exige que, entre dois meios igualmente adequados, seja escolhido aquele menos prejudicial.

Por fim, a proporcionalidade em sentido estrito preocupa-se, verdadeiramente, com a ponderação.

Tal movimento jusfilosófico suplantou a hegemonia do Positivismo puro erigido por Kelsen e Hart, detendo a soberania do pensamento no pós-guerra, bem como no século XXI. Todavia, outros Escolas e outros pensadores surgiram tanto para suprir as lacunas e divergências dessa Escola, como também partindo de premissas distintas do fenômeno jurídico. É o que veremos a seguir com o Culturalismo Jurídico (famoso pelo brasileiro Miguel Reale) e outras ideias do Direito, encerrando nossa série sobre as Escolas do Pensamento Jurídico.

Bibliografia utilizada e complementar

Textos básicos de Filosofia do Direito — Danilo Marcondes e Noel Struchiner

Compêndio de Introdução à Ciência do Direito — Maria Helena Diniz

Lições preliminares de Direito — Miguel Reale

Filosofia do Direito — Miguel Reale

Teoria da Argumentação Jurídica — Robert Alexy

Levando os direitos a sério — Ronald Dworkin

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Rick Theu

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