Noções básicas do Direito — Positivismo Jurídico

Rick Theu
12 min readJul 14, 2022

Leia aqui os artigos anteriores dessa série introdutória do Direito

Jusnaturalismo

Escola da Exegese

Historicismo Jurídico

Realismo Jurídico

Ante o sucesso das ciências naturais e do método empírico na resolução de seus problemas, as ciências sociais — e nisso também presente está o Direito — passaram a se desvencilhar da Filosofia aristotélico-tomista racional, de cunho teológico-metafísico, buscando verdades na razão do homem ou em algum ser transcendente.

A crescente expansão econômica e o declínio do poder clerical nas relações humanas, bem como as infindáveis disputas e aporias que as doutrinas filosóficas e naturalistas fizeram com que o Direito não mais visasse a estabilidade e imutabilidade principiológica, enxergando sua natureza como algo dado e descoberto pelo homem racional. Com o outono da Filosofia Moral para com o Direito, atrelado à expansão da matemática e das ciências naturais (física, química, biologia), uma corrente filosófica deu início ao que seria a maior e mais influente Escola do Pensamento Jurídico no século XX: o positivismo.

Embora sua gênese não seja dos juristas nem da Jurisprudência, visto a corrente positivista ter surgido por intermédio de Augusto Comte, conhecido por ser o pai da sociologia — pois visava trazer rigor e cientificidade para os estudos do homem e da sociedade — o Direito foi rapidamente influenciado pelos dogmas e princípios da corrente positivista.

E em que se trata, sinteticamente o pensamento positivista? O positivismo defende a ideia de que o conhecimento científico é a única forma de conhecimento verdadeiro. De acordo estes, somente pode-se afirmar que uma teoria é correta se ela foi comprovada através de métodos científicos válidos. Os positivistas não consideram os conhecimentos adquiridos através de crenças religiosas, superstição ou qualquer outro, do campo espiritual, intuitivo ou transcendente, que não possa ser comprovado cientificamente. Para eles, o progresso da humanidade depende exclusivamente dos avanços científicos.

No Direito, o positivismo procura reconhecer apenas o direito positivo, isto é, o direito criado, produzido pelo Legislativo, no sentido de direito vigente e eficaz em determinada sociedade, limitando a Ciência do Direito ao estudo das legislações, consideradas como fenômenos espaciotemporais.

Cai-se então a concepção de atemporalidade e universalidade do Direito e da Justiça, sendo o Direito e as normas concebidos como datados de temporalidade e vigência finita, i.e., o Direito tem um início e pode ter um fim dentro do tempo humano, bem como seus efeitos são delimitados a determinado território, não sendo aplicado a todos os homens. Rompe-se então com o paradigma de Direito transcendental para um direito criado, convencionado. O que antes era produto de Deus e da razão pura, agora era fruto da vontade e dos interesses humanos. O Direito passou a ser atividade humana e apenas o convencionado era objeto de estudo.

Com isso, não só a ruptura com o transcendental ocorre, mas também ocorre uma amoralização das normas, que passam do campo axiológico para o lógico-formal. Em outras palavras, não se leva mais em conta os valores morais nem o ideário de justiça como algo essencial para a validade do Direito, mas tão somente sua formalidade sistêmica e sua organicidade lógica. A forma e não o conteúdo é o que importa.

Dessa corrente, surgiram diversos pensadores fundamentais para o entendimento da Ciência do Direito e do fenômeno jurídico. Selecionamos três deles para apresentar de maneira sintética, mas bem abrangente, tanto os primórdios do positivismo, a apoteose e por fim, seu desenvolvimento antes de seu declínio.

John Austin

Esse é o grande expoente da Escola da Jurisprudência Analítica Inglesa, corrente maior do juspositivismo britânico. Sua teoria possui 6 pontos quintessenciais para compreensão do fenômeno jurídico.

O primeiro é que Austin inaugura a forma de abordagem analítica, de maneira sistemática na Teoria do Direito, visto sua preocupação em distinguir rigorosamente o conceito de direito dos conceitos afins. Antes do pensamento analítico de John Austin, a abordagem da Teoria do Direito partia de uma sociologia ou historicismo.

O segundo ponto de seu pensamento é uma explicação da Ciência Jurídica e do Direito como algo de cima para baixo, i.e., de algo que é imposto pela força de quem detém o poder. O que outrora interpretava o Direito como algo social e consuetudinário, disperso e horizontal, em Austin vemos a verticalidade imperativa e a relação da coerção do ente de poder e do ente subordinado.

O terceiro ponto é que por ser um dos percursores do juspositivismo, Austin desenvolve a separação kantiana de Direito e Moral. Direito não se confunde com mérito ou demérito. O Direito pode ser injusto e continuar sendo Direito. Sua natureza de jurídico não se confunde ou se contém em ser ético.

Um ponto por demais importante também a sua criação da teoria do comando. Para o analítico inglês, Direito são comandos, ordens, expressões de vontades com direção aos membros da comunidade civil-política a que integram. Tal comando é a expressão de vontade do soberano, logo, ele não se sujeita a este, mas está sob este, se mantendo por intermédio de ameaças de coerção.

Quinto ponto do pensamento austianiano é que o fenômeno jurídico pressupõe áreas em que ainda não há legislação, onde há um limbo normativo e que não há nem no histórico jusrisprudencial, sendo benéfico a atuação do Judiciário para a construção de normas e reparação das lacunas legais. Isso decorre da delegação do soberano ao juiz para que esse possa criar o Direito — ativismo judicial. Isso, portanto, seria uma autorização tácita da imperatividade dos costumes jurisprudenciais, mantendo a essência do common law britânico em sua doutrina jusfilosófica.

Por fim, a visão teorética de Austin não preconiza a sujeição do soberano à lei. Não se trata de um Estado de Direito — onde o império da norma sobre os homens e o Estado. Sua visão jurídico-político trata de enxergar da autorização do governo em utilizar-se da norma jurídica como instrumento de poder sobre os homens.

Herbert Hart

Esse é talvez o Hans Kelsen nos países de língua inglesa: o maioral do positivismo jurídico do século XX. As ideias hartianas apontaram um rumo para a superação da Escola Analítica de Austin e do Realismo Jurídico, ao unificar o pensamento britânico analítico com a preocupação filosófica de verificabilidade empírica como critério de validade da Ciência do Direito.

Em sua principal obra, o conceito de direito, Hart tem a pretensão de

oferecer uma análise geral e descritiva do conceito de direito que fosse moralmente neutra. Assim, fica patente que ele concorda com o ímpeto positivista de John Austin, no sentido de defender a “separabilidade” entre direito e moral. (MARCONDES, Danilo; STRUCHINER, Noel. Textos básicos de Filosofia do Direito.)

Todavia, Hart rejeita a teoria do comando de Austin, por achá-la incompleta e imperfeita para explicar os fenômenos jurídicos, devendo portanto ser superada.

Hart então salienta que

a característica distintiva do direito consiste na fusão de normas primárias, que impõe deveres ou obrigações, e secundárias, que conferem poderes, regulamentando a produção jurídica. Clara é, nesta teoria, a relação entre norma e poder. As normas primárias ou de obrigação impõem deveres, definindo certo tipos de comportamento que devem ser omitidos ou realizados por aqueles a quem se aplicam, prescrevendo sanções no caso de sua violação. Todavia, esclarece Hart, nessas normas, como modelo penal, não há nenhuma ameaça latente de dano para sua desobediência, ou seja, imposição de um mal ao seu infrator, pois para ele, mandar é exercer autoridade sobre homens, e não o poder de causar dano, não é um apelo ao medo mas ao respeito à autoridade. Tais normas devem apresentar as características da generalidade, isto é, devem ser gerais, aplicando-se a todas as pessoas que se encontrem dentro de seus limites; da permanência, pois devem ser permanentes, habitualmente obedecidas por certa classe de pessoas e da sua decorrência de autoridade competente, uma vez que devem ser editadas por pessoa que tenha competência para emitir normas. As normas secundárias que conferem poderes jurídicos para decidir litígios ou legislar (competência pública) ou para criar ou modificar relações jurídicas (competência particular), não podem ser interpretadas como ordens respaldadas por ameaças, mas sim como normas como modelo de competência. Tais normas estabelecem que o seres humanos podem introduzir novas normas do tipo primário, extinguir ou modificar as normas anteriores, determinar de diversas maneiras o efeito delas ou controlar sua atuação. (DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito).

As normas secundárias podem tanto reconhecer as primárias (regras de reconhecimento), alterá-las (regras de modificação) ou resolver pendências que surgem diante da questão sobre se uma determinada norma foi ou não violada (regra de julgamento).

Outra grande tese hartiana, que ainda é muito discutida na literatura contemporânea, nas áreas do Direito e da Filosofia da Linguagem é sobre a interpretação jurídica e o significado dos conceitos das palavras. Para Hart, todo conceito podia ter um núcleo duro de certeza e uma zona de opacidade, turva, onde há dificuldade de sua compreensão, e por conseguinte, aplicação. Como exemplo, a regra que proíbe a entrada de veículos num parque com toda certeza engloba um automóvel, mas o que dizer de um sujeito que entra de patins? Ou de uma bicicleta motorizada?

Devido as normas serem confeccionadas com o uso da linguagem ordinária e comum, é evidente que surjam zonas de penumbra e vagueza interpretativa, podendo acarretar em arbitrariedade e subjetivismo extremado na aplicação da norma.

Para isso, Hart advoga em prol de uma textura aberta da linguagem, no qual o julgador na hora de aplicar a norma, ante a vagueza e opacidade da linguagem da regra jurídica irá avaliar casos paradigmáticos e análogos e tentar compreender se este é suficientemente semelhante ao novo caso, e em aspectos relevantes para sua tomada de decisão. Assim, para ele

o Direito funciona porque nossa linguagem ordinária funciona na maior parte do tempo. Dessa forma podemos entender a linguagem geral das regras jurídicas e saber o que é esperado de nós pelo Direito. (MARCONDES, Danilo; STRUCHINER, Noel. Textos básicos de Filosofia do Direito.)

O pensamento de Hart foi de tamanha importância para o positivismo e para seus seguidores nos anos seguintes, contudo, foi alvo de múltiplas críticas pelos moralistas e pós-positivistas, como veremos em artigo próprio.

Hans Kelsen

A apoteose do positivismo se deu na construção teórica do austríaco Hans Kelsen, que levou o purismo científico aos seus limites no desenvolvimento de sua tese jurídica.

O pensamento kelseano é gigantesco e ainda hoje é objeto de adoração ou repúdio, sendo influência quintessencial para a Ciência do Direito como um todo.

Kelsen é o mais abordado nos cursos de Ciências Jurídicas, mas sua obra se estende desde a Ética até a Filosofia do Direito, onde é notadamente conhecido pela sua Norma Hipotética Fundamental, exposta no capítulo 5 de seu magnum opus Teoria Pura do Direito.

A principal ideia do jurista vienense, é a da neutralidade em face do conteúdo político, ético, religioso, das normas jurídicas. Kelsen almejava instituir uma Ciência do Direito livre de valores morais e subjetivos, purificando da apreciação do jurista ideologias políticas, aspectos valorativos e investigações morais, pois, conforme o nobre jurista expressa, o conhecimento jurídico é ciência e não política.

A ciência do direito, a fim de manter seu valor objetivo e absoluto, não deve fazer considerações teleológicas e axiológicas, que são da alçada da política jurídica. Além disso, para Hans Kelsen, a ciência tem por missão precípua conhecer seu objeto, daí a nítida tendência anti-ideológica da teoria pura do direito, uma vez que a ideologia emana da vontade e não do conhecimento.(DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito)

Assim, Kelsen estrutura que o objeto exclusivo da ciência jurídica é a norma de direito. Sendo assim, o teórico do Direito deve tão somente conhecer e descrever tal norma.

Dessa forma, para salvaguardar a autonomia e neutralidade objetiva da Ciência do Direito, Hans Kelsen introduz em sua teoria o dualismo neokantiano do dever-ser e ser, que compõem duas categorias originárias do a priori do conhecimento, i.e., que não derivam de nenhuma outra. Constituem duas formas mentais correspondentes a duas esferas distintas: o dos fatos (ser) ou da natureza física, social e espiritual e das normas (dever-ser), sendo que o primeiro é regido pelas leis da causalidade, que enuncia que os objetos naturais se comportam de determinado modo e o mundo das normas é o que deve ser investigado pelo Direito, por tratar-se da imputabilidade, que enuncia o que se deve fazer, e não o que sucedeu, sucede ou sucederá, pois a imputação de uma norma a alguém implica que esta deve ser livre, autônoma, pois a norma jurídica brilha quando é violada, tendo em vista que caso não houvesse a possibilidade deste, não haveria que se falar em dever-ser.

Ato contínuo, na doutrina kelseana, que partindo do Imperativo Categórico Kantiano, o sistema de normas (ordenamento jurídico) é escalonado, i.e., com normas inferiores derivadas e validadas de normas superiores.

Aqui é onde encontramos a famosa “Pirâmide de Kelsen” onde as normas inferiores, v.g. portarias, resoluções, são validadas pelas normas que lhe são superiores, v.g. leis, Constituição Federal. Desta forma, dentro da estática jurídica de Kelsen, se aplica o método hipotético-dedutivo, isto porque o fundamento de validade e o conteúdo de validez das normas desse sistema podem ser deduzidos da norma básica.

No capítulo 4 de seu magnum opus, Kelsen desenvolve sobre a teoria estática do direito. Esta representa o direito como uma hierarquia de leis, onde as leis individuais são relacionadas como sendo superiores ou inferiores uma à outra.

Todavia, se uma norma inferior deriva de uma superior, tal raciocínio levaria a uma regressão infinita onde toda norma deveria ter outra acima desta para lhe conceder o fundamento de validade. Sendo assim, surge a Groundnorm, i.e., a Norma Hipotética Fundamental. A partir de uma forte influência do pensamento epistemológico de Immanuel Kant, Kelsen concebe o ordenamento jurídico como sendo um conjunto hierarquizado de normas jurídicas, que se estruturam de forma escalonada e ordenada. No entanto, essa hierarquia não é interminável; assim, a mais alta norma dessa hierarquia não possui como critério de sua validade uma norma superior, tendo em vista que esta norma é o ponto máximo da hierarquia de um determinado ordenamento jurídico. Como norma mais elevada e fundamento de validade de todas as normas de um ordenamento, ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada (Kelsen, 1999, p. 217). Sendo assim, esta norma, como sendo pressuposta, é designada por Kelsen como sendo “a normal fundamental” (Groundnorm), cuja validade objetiva não pode ser posta em questão.

Com a inserção da Norma Fundamental, Kelsen “fecha” seu sistema de normas ordenadas e escalonadas, tendo as superiores validados as inferiores e a norma final, o topo da pirâmide, sendo um pressuposto lógico-transcendental, não estando dentro do direito positivo, i.e., ela é uma metanorma, está no mundo da razão e não da lei legislada.

Cumpre ressaltar, que como já exposto in supra, Kelsen almejava purificar o Direito da influência de outros saberes e subjetividade de forma que

a norma hipotética fundamental pressuposta do sistema normativo dinâmico refere-se tão somente às formas procedimentais, pois institui o fato produtor de normas, conferindo poder a uma autoridade para emitir comando jurídicos, determinando assim, como devem ser criadas as normas gerais e individuais.

Por fim, cumpre a sucinta, mas improrrogável descrição de que a Norma de Kelsen não possui conteúdo material, não tendo valores ou um direito substancial, mas tão somente é uma Norma formal, de geração, nomogenética. A apoteose de Kelsen é uma norma que valide e permita a construção e produção de novas normas, mas sem lhes constituir a priori com um conteúdo moral ou axiológico.

Tal constatação é de notório e hercúlea relevância para se entender as críticas vindouras que atacaria o sistema kelseano por “legitimar” o regime jurídico nazista como válido. O que deve-se compreender é que o purismo de Kelsen é metodológico-científico e não político. Ele almejava limpar a Ciência do Direito da influência de vontades e ideologias terrenas e passageiras para permitir a evolução do Direito nos moldes que a Filosofia do Círculo de Viena estava desenvolvendo em sua época, i.e., rigor formal livre de valores no método. Mas Kelsen como cientista político e como um filósofo é inegável um defensor de valores democráticos e cosmopolitistas, defendendo até mesmo os costumes de um povo como fonte de lei.

De forma lacônica, conseguimos expor o pensamento central do positivismo jurídico no século XIX e XX, que surge devido às crises do moralismo filosófico, bem como da ascensão das ciências físico-naturais. Todavia, com o advento da Segunda Guerra Mundial e o surgimento dos regimes nazifascistas, o Positivismo Jurídico sofre duras — e talvez até injustas — críticas por lhe associarem a tais sistemas políticos, lhes conferindo legitimidade para os terríveis atos que praticaram, visto o positivismo dar enfoque tão somente a formalidade da criação das normas, i.e., autoridade competente e rito legislativo, sem ter relevância para a validade o conteúdo axiológico da mesma.

Com a queda do nazifascismo e a necessidade de se conceber o Direito de forma mais humanitária e impedir um possível retorno aos atos ditatoriais do passado, os juristas de todo mundo passam a desenvolver o que se denominará Pós-Positivismo, resgatando a moral ao núcleo de Direito.

Bibliografia utilizada e complementar

Textos básicos de Filosofia do Direito — Danilo Marcondes e Noel Struchiner

Compêndio de Introdução à Ciência do Direito — Maria Helena Diniz

Lições preliminares de Direito — Miguel Reale

Filosofia do Direito — Miguel Reale

Teoria Pura do Direito — Hans Kelsen

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Rick Theu

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