A bagagem que eu trouxe de lá
Andar pelas ruas do interior jamais significará o mesmo que estar caminhando pelas esquinas de São Paulo. Vasta e inquieta megalópole que simplifica qualquer adjetivo que ousar lhe definir ou caracterizar.
Porque São Paulo demanda uma capacidade maior de significância, uma que, pelo menos, acolha o máximo do viver onde não se dorme, do correr no passeio pelo shopping e do ser obrigado a dar passos longos para que outros passos longos não nos confunda com chão na saída da última estação.
Para os nascidos e criados na selva de pedra, o interior se trata de uma experiência mais rasa em questões externas, no entanto, incentiva o inconsciente a despertar-se do silencio mortal que é: o esquecimento. O que se “deixa pra lá” não se cura só.
Ao andar despretensiosamente na imensidão verde, é possível sentir-se inserido neste ecossistema próprio. Como se corpo e alma reagissem instantaneamente numa tentativa de compasso, o coração e o pulmão entram em sincronia, o cérebro responde instintivamente a novos estímulos que aos poucos se tornam rotina.
De cá tenho o silêncio que não ensurdece devido aos pássaros que fazem auê no céu enquanto ocupam os poucos cabos elétricos, bem ao fundo, talvez, o som dos carros na estrada; de lá uma explosão frenética incessável e crescente, sons dos mais variados que se fundem num misto de ruído abafado. O barulho não nos permite identificar os elementos um a um, apenas o todo. Que invade nos forçando ao costume. E no fim… É, a gente meio que se acostuma.
O som das cidades distintas não é só o que se ouve, é o ritmo que te faz pulsar e dançar no compasso.
Lá o barulho sacode até os dias quietos, te toma a força te forçando ao movimento, a cabeça não para. É saber que em uma hora e meia se afunda no tumulto, que a cada esquina esbarra em 3 barzinhos tocando pagode, em gente parada na calçada atrapalhando a passagem de quem teve um dia cheio e tá de saco cheio.
Tudo isso é som. Os dois violinistas no metrô e o saxofone avisando que chegamos, o barulho dos motores ligados e do vendedor ambulante no farol, os motoqueiros com a pressa habitual enquanto desviam de pedestres e outros veículos ao avançar pelo sinal ainda vermelho, a desafinada melodia das lojas anunciando a promoção do dia. A construção do prédio novo, a reinauguração daquele estabelecimento, gente oferecendo panfleto.
Um pouco mais ao lado, os muitos marginalizados. São Paulo é gigante, em espaço, variedade e contraste. Também tem o choro e o grito silencioso daqueles que dormem nas ruas, donos de um olhar que já não tem esperança num amanhã melhor. A voz estridente do trabalho infantil que se faz presente em todas as avenidas, os pais com criança no colo tomam conta do transporte público pedindo esmola aos passageiros, alguns ajudam e outros olham de canto com as mesmas dúvidas de sempre. Sem apontar um único culpado, ainda assim a maldade se oculta nisso tudo que consideramos comum e banal na vida cotidiana. A insensibilidade, inabilidade ou recusa de compreender o outro, diante do sofrimento, faz parte do som.
Para São Paulo tenho uma infinidade de palavras, nunca foi segredo, mas a distância escancarou ainda mais que mesmo sem conseguir ver meu rosto refletido naquela fumaça, é lá que me reconheço. No tanto, que impede definição. Onde alguma coisa acontece no meu coração. No avesso do avesso do avesso do avesso, como diria Caetano.
A experiência daqui tem sido mais interna do que pensei que seria, sou forçada a digerir o que lá não tive tempo — a gente meio que vive correndo de alguma coisa ou sempre tentando estar à frente dos ponteiros. Fugir de coisas que não quero lembrar deixou de ser meu forte.
Lidando com o inevitável.