Tentei vender as minhas ações da Unbabel, considerada uma das empresas mais inovadoras do mundo. Estas foram as razões.

Ricardo Esteves Ribeiro
10 min readMay 7, 2020

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Desde 2016, altura em que co-fundei o Fumaça, um projeto de jornalismo independente onde sou jornalista, que a equipa que o faz assumiu uma política de transparência radical, não só no jornalismo que pratica, como também na gestão da organização. Se, como defendi já várias vezes, a imparcialidade e a isenção são impossibilidades, é dever de jornalistas dizerem ao que vêm, expondo com transparência e claridade potenciais conflitos de interesse. Assim, sinto o dever pessoal e profissional de publicar e publicitar a carta que abaixo transcrevo, enviada no dia 28 de abril à empresa Unbabel, da qual fui empregado e da qual sou acionista minoritário desde que me demiti, em 2018, antes de iniciar funções profissionais no Fumaça. Foram removidos do texto original dados relativos ao negócio da empresa e citações privadas que, entendo, devem continuar privadas. O texto abaixo é uma tradução do inglês — podes ler a versão original da carta aqui.

Como resposta ao e-mail, a empresa recusou aceitar a venda das ações.

“Vasco, João, Hugo, Wolf,

Espero que vocês e as vossas famílias estejam bem e em segurança durante estes tempos difíceis.

Sei que este é um momento particularmente difícil para todos vocês na Unbabel mas, acreditem, também é um momento muito complicado para mim. Gosto muito da Unbabel, mesmo, mas é com um sentimento de grande tristeza que vos escrevo este email, informando-vos da minha intenção de terminar a minha relação com a empresa e vender as minhas ações. Explico-vos porquê.

Lembro-me de quando o Vasco me convidou para fazer parte da Unbabel. Tinha estado no escritório da empresa, do outro lado do Instituto Superior Técnico, onde encontrei não mais que 10 brilhantes jovens a trabalhar afincadamente atrás dos ecrãs, comprometidos a mudar o mundo. Já passaram dois anos desde que saí da Unbabel e ainda não sei responder: será que pensei mesmo que estavam a mudar o mundo ou estava simplesmente enfeitiçado pelo charme, a estratégia e a visão do Vasco? Não sei dizer, mas o que soube na altura foi que queria criar algo parecido ou, então, ser parte daquilo.

Na altura, tinha combinado um café com o Vasco para lhe falar da minha quase-revolucionária startup, que acabou por morrer umas semanas depois, ainda antes de ter nascido. Assim, quando as minhas aspirações empreendedoras foram pelo cano, o Vasco convidou-me a juntar-me à Unbabel como representante de vendas, para ajudar a Sofia Pessanha a adquirir novos clientes e a construir um processo de vendas escalável. Concordei juntar-me uns dias depois mas não sem antes deixar claro que 1) não tinha ideia como isso se fazia e 2) queria afastar-me das vendas assim que o processo estivesse implementado.

Quando me juntei à Unbabel, em setembro de 2015, há quase cinco anos, a nossa equipa era tão pequena que cabia toda num escritório do tamanho do pátio da T1 [o nome dado a um dos escritórios da Unbabel], onde o Vasco se sentava frequentemente ao nosso lado e perguntava: “Que obstáculos posso ajudar-vos a ultrapassar?”. Lembro-me de como, uma vez por semana, íamos até a uma churrasqueira perto do escritório e encomendávamos frangos assados para toda a equipa; todas as sextas-feiras apertávamo-nos numa carrinha em direção à praia, para termos aulas de surf; enchíamos uma tasca minúscula para almoçar ou jantar, enquanto o Bruno Silva rabiscava em folhas de papel.

Lembro-me do dia em que fechámos o nosso primeiro novo contrato, poucos dias depois de termos alterado os nossos preços de “pré-pagos” para “pagamentos recorrentes”. Lembro-me de quando tínhamos um plano de 9$/mês no nosso website. De quando angariámos a nossa Série A e quando mudámos para a Tower of Unbabel (a primeira de muitas, mais tarde renomeada T1) e tivemos de montar as nossas próprias cadeiras e secretárias. Ainda me recordo da adrenalina de fechar “grandes” contratos, dos mais ou menos constantes “booms” no Slack, das noites passadas no escritório, da frustração de não atingir os objetivos e de quando eu próprio comecei a gerir uma equipa. Passámos por muita coisa juntos e devo à Unbabel um dos melhores períodos da minha vida. Definitivamente um em que aprendi muito sobre quem sou hoje.

Quando penso sobre esses tempos na Unbabel há algo em comum em todo o percurso: estávamos nisso juntos. Eu sei que soará um pouco cliché, mas parecíamos mesmo uma família. Lembro-me desta frase que ouvi o Hugo Macedo dizer dezenas de vezes e que descreve na perfeição como olhava (e ainda olho) para a Unbabel: “Organizações não são entidades abstratas, são as pessoas que fazem parte delas”. E foi isso que a Unbabel sempre foi para mim: as pessoas que são e foram parte dela.

E é por isso que discordo totalmente da decisão de despedir 35% da equipa da Unbabel, levando a que 90 pessoas percam os seus empregos, no meio de uma pandemia e de um estado de emergência nacional, com apenas dois dias de pré-aviso, sem direito a subsídio de desemprego e, na maior parte dos casos que vi, com um pacote compensatório muito menor que o que considero financeiramente viável e moralmente inaceitável em tempos como estes.

O ano passado, a Unbabel anunciou ter conseguido uma nova ronda de financiamento de 60 milhões de dólares. Esta foi a maior Série C da história em Portugal, elevando o valor total do nosso financiamento para 90 milhões de dólares. Desde essa altura, o investimento cresceu de forma massiva. O número de empregados cresceu mais do que alguma vez tinha crescido. […] Por outras palavras, a vossa aposta não se traduziu em resultados. E eu sei que isto é literalmente o jogo das startups — eu joguei-o durante alguns anos, como vocês -, tentar crescer a empresa tanto e tão rápido quanto possível até que, eventualmente, Microsoft, Apple, Google, ou outra empresa parecida a compre e faça alguns de nós ricos.

O que me leva ao primeiro ponto: não, o espetáculo deplorável que nos foi apresentado no início deste mês não foi “apenas sobre o coronavírus”. Sim, concordo que o novo coronavírus complicou a situação, mas os problemas estruturais sempre estiveram lá. Por isso, li com muita tristeza a resposta do Vasco aos média na noite do anúncio — antes ainda de a empresa ter comunicado a cada pessoa se manteria ou não o seu emprego -, usando a Covid-19 para explicar porque 35% da equipa seria despedida. Como um dos nossos ex-colegas me sugeriu há dias, isto só tem um nome: covidwashing.

É quando as coisas se complicam que percebemos do que são capazes as pessoas. Vocês tinham de salvar a Unbabel no meio de uma crise interna e externa — não só pela más decisões da direção, como pelo atual clima económico. E eu concordo que salvar a Unbabel era a prioridade. Só não concordamos com o que isso significa.

Podiam ter decidido que salvar a Unbabel significava salvar as pessoas que estiveram convosco durante todo este tempo. Pessoas que passaram pelos altos e baixos de ver diretores, vice-presidentes e tantos outros empregados experientes sair da empresa, em 2019; que escolheram ficar e seguir a visão e estratégia e esperar que tudo se resolvesse; que recusaram ofertas de emprego, ir embora. Podiam ter decidido parar novas contratações […]; podiam ter decidido cortar comissões de vendas para metade e usar essa margem para salvar algumas pessoas; podiam ter decidido aplicar cortes salariais às equipas de gestão e liderança (que foram, muito concretamente, responsáveis por parte desta crise); podiam ter decidido propor um corte de salários temporário a toda a empresa; podiam ter decidido despedir 5%, 10%, 15% da equipa; ou podiam ter decidido juntar toda a gente e trabalhar ao máximo para resolver os problemas.

Em vez disso, um pequeno grupo de “líderes” todo-poderosos decidiram que a coisa certa a fazer seria expulsar da empresa 90 dos nossos empregados no meio de um estado de emergência. Algum dos membros da equipa de liderança foi despedido? Algum corte de salários foi aplicado aos cargos de topo? Algum de vocês foi despedido? O que é que isso diz de vós?

Todo o processo à volta do anúncio da decisão à equipa foi nada menos que um desastre. Como tive a oportunidade de explicar ao Hugo Macedo e ao João Graça, a minha opinião é que esta estratégia foi profundamente desonesta e obscura. No dia 12 de março, menos de um mês antes da tão-temida reunião all-hands [uma reunião em todos os empregados e empregadas da empresa são convocados] de emergência, o Vasco enviou um email a toda a equipa dizendo — estou a citar — “embora o impacto da situação já esteja a ser sentido na economia mundial, estamos bem capitalizados e continuamente a melhorar os nossos processos para sermos mais eficientes, pelo que estamos confiantes que temos os recursos para aguentar qualquer recuo possível”. Claramente, essa frase não envelheceu muito bem.

Quando agendaram a all-hands de emergência, no dia 7 de abril, a maior parte das pessoas estavam longe de imaginar o que estava prestes a acontecer. Desafio-vos a encontrar um número razoável de ex-trabalhadores que digam o contrário. Talvez as pessoas imaginassem que fosse apresentado um lay-off, ou cortes nas despesas, ou até que houvesse alguns despedimentos. Mas nunca imaginariam que um terço da empresa seria colocada no olho da rua — não desta maneira. Eu não vos peço sequer que transformem a Unbabel numa holacracia, ou que envolvam trabalhadores numa decisão desta magnitude — se bem que, conhecendo-me como conhecem, saberão que é isso que acredito ser correto. Estou apenas a pedir-vos que sejam transparentes sobre a situação financeira da empresa, sobre os vossos erros e, mais importante ainda, que digam a verdade.

A decisão anunciada nesse dia foi a pior decisão que a Unbabel tomou desde que a conheço. Mas o que aconteceu a seguir foi um pesadelo laboral.

Não só pressionaram toda a gente a assinar um acordo no dia 13 — apenas dois dias úteis depois do anúncio inicial -, como sugeriram que não havia outra alternativa. Quando, durante a all-hands e nas reuniões subsequentes, as pessoas perguntaram “o que acontece se não assinarmos?”, a resposta do Vasco soou como uma ameaça velada: “Não é do vosso interesse não assinar”, disse. Quando as pessoas perguntaram: “vamos ter acesso a subsídio de desemprego?”, rapidamente recusaram essa opção, mesmo que a lei ofereça a possibilidade deste benefício a uma parte dos trabalhadores que saiam com acordos de rescisão. É claro que ninguém queria sair apenas com direito a subsídio de desemprego — isso seria obviamente menor que a indemnização. Mas estar registado como desempregado tem múltiplas vantagens no que toca a concorrer a outros tipos de subsídios (como o Subsídio Municipal ao Arrendamento, por exemplo) e pode garantir um estímulo económico a ex-empregados que queiram começar a sua própria empresa. Oportunidades como estas são extremamente importantes numa altura em que podemos estar a enfrentar uma crise económica global.

[…] Como sugeri ao Hugo e ao João, na minha opinião, a compensação mínima moralmente aceitável garantiria a segurança económica das pessoas até ao final de setembro. […]

Vocês decidiram que 90 das pessoas que fizeram da Unbabel o que ela é hoje eram descartáveis, dispensáveis na caminhada rumo aos vossos objetivos lucrativos. Que a entidade abstrata chamada Unbabel era mais importante do que as pessoas que dela faziam parte. Que as vossas aspirações em fazer crescer esta empresa o suficiente para vendê-la por umas centenas de milhões de euros e fazer alguns de vocês ricos eram mais importantes que o bem estar das pessoas que vos ajudaram a chegar aqui.

Mas há um problema. Nós já não somos uma startup com seis pessoas num apartamento T2, em São Francisco, a jogar o jogo do YCombinator. Somos responsáveis pela segurança laboral de mais de 250 pessoas. O que significa que temos a responsabilidade de garantir que elas podem viver uma vida decente e proteger as suas famílias do abismo que pode vir a ser a maior crise económica da nossa geração. Em vez de as empurrar para o buraco, boa liderança seria fazer tudo ao vosso alcance para resolver este problema, trabalhando com elas. Vocês escolheram o caminho mais fácil.

Infelizmente, isto não termina aqui. Enquanto explicavam à equipa (e aos média) que estavam a cortar custos por causa da pandemia, estavam também a dar as boas-vindas a uma Chief Marketing Officer sediada nos EUA. Quanto ganha ela? Quantos salários isso pagaria? Só espero que não estejam a planear contratar pessoas para a sua equipa num futuro próximo. Seria de uma hipocrisia suprema.

Já deverão saber que estive a ajudar muitos dos nossos ex-empregados a lutar pelos seus direitos. E, provavelmente, pensam que, ao fazê-lo, estou a ser desleal para com uma empresa que me deu tanto. Lamento, mas tenho de discordar. Ajudar as pessoas que construíram a Unbabel é exatamente o que ser leal à Unbabel significa. Mais uma vez, citando o Hugo: “Organizações não são entidades abstratas, são as pessoas que fazem parte delas”.

A razão porque estou tão zangado é simples: eu também fui parte desta decisão. Como acionista, dei implicitamente o meu nome a esta decisão ou a outras como esta. E isso eu não posso admitir.

Se esta é a maneira como tratam os nossos empregados, as pessoas que nos ajudaram a chegar onde chegámos, então eu quero sair. Não quero ser parte de uma organização como esta. Assim, informo-vos que, a partir de hoje, é minha intenção vender as ações que adquiri ao exercer a opção de compra de ações que me foi oferecida quando me juntei à Unbabel. Não quero ser rico à custa do sofrimento de outras pessoas. Por isso, peço-vos que considerem comprarem-mas ao seu valor atual, para que possa ter maneira de sair. Digam-me se a Unbabel concorda com isto.

Fico à espera da vossa resposta.

Nota: Por uma questão de transparência e deontologia jornalística, quero que saibam que é minha intenção publicar esta carta online, na próxima semana. Digam-me, por favor, se ela contém alguma informação que considerem confidencial e as razões para essa confidencialidade.

Obrigado,

Ricardo Esteves Ribeiro.”

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Ricardo Esteves Ribeiro

Journalist and co-founder at Fumaça, independent, progressive and dissident journalism. Ex-sales director and shareholder at Unbabel.