Primeira Dose — “Bottle Rocket” (Wes Anderson, 1996)

Rômulo De Sá Pereira
7 min readOct 26, 2017

4,5

Não dá para falar de “Bottle Rocket” (que ganhou o controverso título em português “Pura Adrenalina”) sem falar de “Bottle Rocket”, o curta. Obviamente, um nasceu do outro. Curta e longa são os primeiros trabalhos de Wes Anderson e dos irmãos Wilson (Owen, Luke e o menos famoso Andrew). A história de como o filme surgiu é simples: Anderson se mudou para Dallas depois de ter se formado em cinema em Austin e conheceu Owen, com quem dividiu um apartamento. Os dois escreveram, Anderson dirigiu e Owen protagonizou ao lado do irmão Luke e de Robert Musgrave.

O curta de 13 minutos, gravado em 16 milímetros e em preto e branco, estreou no USA Film Festival de Dallas, onde causou burburinho, e, mais tarde, foi inscrito no festival de Sundance. Foi lá que o trabalho de Anderson e Owen chamou a atenção de diversos produtores, entre eles James L. Brooks, que ajudou a financiar o longa e os levou para a Columbia Pictures. Fim da história.

https://www.youtube.com/watch?v=Yrt-ZKa4u0k (Curta “Bottle Rocket”)

Depois de “Bottle Rocket”, Anderson e Owen escreveram juntos os roteiros dos dois próximos filmes do diretor, que são, para mim, seus melhores trabalhos: “Rushmore” (“Três É Demais”, outro título nada a ver) e “Os Exêntricos Tenenbaums”, que rendeu aos dois uma indicação ao Oscar de Melhor Roteiro Original. Mais tarde, Anderson encontrou novos parceiros de roteiro, como Noah Baumbach (diretor dos essenciais “A Lula e a Baleia” e “Frances Ha”) e Roman Coppola. Mas se a parceria na escrita foi interrompida depois dos três primeiros filmes, Owen, assim como seus irmãos, seguiram presentes, sejam como estrelas ou então coadjuvantes, em quase todos os outros 14 longas e curtas do diretor.

De volta para “Bottle Rocket”. O filme é muitas vezes classificado como um heist movie, ou filme de assalto, roubo ou golpe aqui no Brasil. Talvez por isso a distribuidora brasileira tenha dado o título meio torto, mesma coisa que deve ter acontecido com “Rushmore”, que está longe de ser uma comédia romântica sobre um triângulo amoroso. Três amigos da classe-média de Dallas, Anthony, Dignan e Bob (Luke, Owen e Robert, repectivamente), começam a praticar pequenos assaltos pela cidade com a ideia de impressionar e serem aceitos na turma de Mr. Henry, um calejado golpista da cidade, picaretamente interpretado por James Caan. A trama é basicamente esta, mas “Bottle Rocket” é também muito mais do que isso. É verdade que é extremamente engraçado e que tem um quê de “pura adrenalina”, mas o que vale mesmo é o que está por baixo, a ironia de tentar encontrar o seu lugar no mundo sem ter a mínima ideia de que lugar é esse ou de qual caminho seguir (ou então achar que tem, como no caso de Dignan e seus planos para os próximos 75 anos). A trajetória dos três protagonistas é mesmo como um foguete feito de garrafa. Eles estão empolgados (Dignam mais ainda), a ideia é decolar, mas tudo não passa de uma aventura rápida e sem rumo.

Igual a muitos dos futuros personagens de Anderson, o trio de protagonistas é formado por jovens adultos que ainda não descobriram como lidar com suas vidas depois de crescidos. Eles tentam se destacar, chamar a atenção, mostrar e provar suas qualidades. Têm uma visão romântica e, muitas vezes, nada realista de suas ações e do mundo ao seu redor. Como alguém escreveu em algum canto da internet, são almas perdidas procurando pelo seu próprio signficado de vida.

Não é à toa que “Skating” e “Happiness Is”, músicas do Vince Guaraldi Trio e trilhas dos especiais de TV de “Peanuts” “A Charlie Brown Christmas” e “A Boy Named Charlie Brown”, permeiam toda a versão curta de “Bottle Rocket”. Os personagens de Anderson parecem versões adultas (crianças também, no caso de “Moonrise Kingdom”) de Charlie Brown e seus amigos. São pessimistas melancólicos e irônicos, que muitas vezes estão se equilibrando em uma linha tênue entre a tristeza e um falso otimismo.

É comum críticos e estudiosos compararem os personagens e temas de Wes Anderson aos de J.D. Salinger, autor de “O Apanhador no Campo de Centeio”, e o caminho pode ser esse mesmo. Muitas vezes, eles são jovens ou adultos cansados de uma vida cheia de mentiras e aparências, mas que, ao mesmo tempo, fazem de tudo para se adequar ou até se afirmar. Dignan determina objetivos, faz os planos e repassa meticulosamente com os outros qual deve ser o próximo passo de cada um, mas, no fundo, sabemos que toda a sua postura pró-ativa está ali só para mascarar a sua solidão. Assim como Max Fischer, que, por exemplo, cria e participa de dezenas de atividades extra-curriculares em Rushmore e, além de outros feitos, salva o latim para tentar impressionar a professora por quem acha que está apaixonado. O mesmo acontece com Royal Tenembaun, que abandona a família e mora 22 anos em um hotel até descobrir que, talvez, essa não tenha sido a decisão acertada. E por aí vai, a cada novo personagem.

Em “Bottle Rocket”, vemos Anthony saindo de uma clínica em que estava internado e o diálogo que ele trava com sua irmã mais nova, assim como os trechos em que o herói de “O Apanhador…” Holden Caulfield encontra a sua, exemplifica muito bem o que são os personagens de Anderson. Anthony pergunta a irmã porque ela disse a amiga que ele era um piloto de avião. A menina responde perguntando o que ele queria que ela dissesse, “que colocaram ele em uma clínicia para tratamento mental?” Ele rebate dizendo que não era uma clínica para loucos e que ele esteve lá por causa de exaustão, esgotamento. Por fim, ela finaliza perguntando como ele poderia estar exausto, esgotado, já que não trabalhou um dia sequer em sua vida. Apesar de crianças, as duas personagens, irmãs de Anthony e Holden, parecem muito mais adultas e maduras dos que eles.

Os conflitos familiares que permeiam toda a obra de Anderson também estão, mesmo que superficialmente, presentes. Bob é maltratado pelo irmão mais velho (interpretado por Andrew Wilson) a todo o momento. Sua rica casa é cenário constante no filme, mas não sabemos nada sobre seus pais, somente que eles “devem estar neste momento em alguma piscina em Zurique”. O tom de abandono na voz de Rob e as ações de seu irmão Future Man deixa claro que ali estão dois jovens que cresceram meio que abandonados pelos pais. Dá para perceber também que a vida familiar de Dignan não é uma maravilha, já que ele se sente insultado no momento em que Anthony sugere que na próxima vez eles deveriam assaltar sua casa, ao invés da dele. Ele diz, melancolicamente: “você sabe que não há nada para roubar de minha mãe e Craig”, o que, além do óbvio, indica que Dignan cresceu em um lar fraturado, talvez por uma separação ou até mesmo pela morte do pai, não sabemos. Apesar de a frase deixar também no ar a impressão de um carinho pelo companheiro de sua mãe.

Ainda que em um tom mais leve e um pouco mais otimista, Anthony, Dignan e Robert são os personagens psicologicamente perturbados que acostumamos a encontrar e a amar a cada novo filme de Anderson. Em dado momento do filme, Dignan diz a Anthony que os três devem ir ao barbeiro mudar a aparência para não serem reconhecidos pela polícia. Anthony responde, sentado à beira da piscina, que ninguém vai tocar em seus cabelos. Já cinco anos depois e dois filmes mais tarde, em “Os Excêntricos Tenenbaums”, o personagem do mesmo Luke Wilson, Richie Tenenbaum, tenta deixar para trás a sua imagem e seus conflitos ao cortar ele mesmo os cabelos, a barba e os pulsos em uma cena das mais comoventes que já vi. Com o tempo, a inocência que ainda existia no primeiro já não está mais tão presente no segundo.

Também tecnicamente o filme já traz algumas das características marcantes do diretor: as tomadas de cima (a caixa de joias, a folha na piscina, o desenho para Inez, o caderno com o plano de vida de Dignan etc), o uso do widescreen e os enquadramentos com ângulo reto, simétricos, além da câmera parada em closes na maioria dos diálogos e da câmera lenta na cena final (todos os filmes de Anderson, com exceção de “Viagem a Darjeeling” terminam em câmera lenta).

Os uniformes, tão queridos por Anderson (o uniforme da escola de Rushmore, os dos escoteiros em “Moonrise Kingdom”, os dos tripulantes do barco de Steve Zissou etc), também fazem a sua estreia em “Bottle Rocket” na forma dos macacões amarelos confeccionados por Dignan.

Por fim, a música pop, que nos filmes de Anderson se relaciona intimamente com a história e seus personagens e que até mesmo faz parte da trama, como as intromissões musicais de Seu Jorge em “A Vida Marinha com Steve Zissou”, marca cenas importantes de “Bottle Rocket”. Talvez por causa de direitos e orçamento, o uso da trilha pop não é tão grande (temos duas músicas do Love, uma dos Proclaimers e “2000 Man” dos Rolling Stones, além de algumas músicas de ritmos latinos), mas elas estão lá nos instantes e locais perfeitos. São poucos os cineastas que conseguem juntar música pop e cinema de uma forma que não seja somente para preencher espaços e acompanhar as cenas. Basta ver a já citada sequência da tentativa de suicídio de Richie Tenembaum, que começa com “Needle In the Hay”, do Elliott Smith, e termina com “Fly”, do Nick Drake, dois artistas que morreram jovens e de forma trágica. Além de outros momentos, como a abertura de “O Fantástico Sr. Raposo”, casada com “Heroes and Villains”, dos Beach Boys, e a cena final de “Rushmore”, com “Ooh La La” dos Faces.

“Bottle Rocket” rendeu para Wes Anderson o prêmio de melhor novo cineasta no MTV Movie Awards e o de estreia do ano para Anderson, Owen e Luke no Lone Star Film & Television Awards em 1996. O longa está também na lista dos 10 filmes favoritos dos anos 90 de Martin Scorsese, o que não é de se jogar fora, não.

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