Primeira Dose — “Primer” (Shane Carruth, 2004)

Rômulo De Sá Pereira
9 min readOct 26, 2017

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4,5

Em dado momento, perto da conclusão de “Primer”, ouvimos o narrador dizer, através de uma ligação telefônica: “As permutações eram infinitas… A partir disto, eles deduziram que o problema era recursivo; mas, além disto, foram forçados a admitir, contra sua própria natureza, que era impossível saber a resposta.” A rede está cheia de textos com teorias e explicações sobre o que acontece com os personagens no primeiro filme de Shane Carruth. É interessante ler as divagações sobre as inúmeras linhas temporais (encontrei, por exemplo, um gráfico tão extenso, que foi mais difícil tentar decifrá-lo do que o próprio filme) e as inúmeras (ou nem tantas) versões de Aaron e Abe, os dois protagonistas, interpretados respectivamente pelo próprio diretor e por David Sullivan. Mas, para mim, o ideal é encarar o filme a partir da fala do narrador: com prováveis diversas versões dos personagens e dos fatos, são diversas também as formas de se entender a narrativa. A primeira frase dita no filme, também pelo narrador, que, sabemos, não é necessariamente dirigida a nós, fortalece ainda mais essa impressão: “Isso é o que vai acontecer: Eu vou ler isto e você vai ouvir e vai ficar na linha. E você não vai me interromper e por motivo algum vai falar.” “Primer” é uma obra para ser vista, ser revista (talvez uma, duas, quem sabe três vezes) e ser aproveitada (ou entendida) da maneira de cada um.

Basicamente, “Primer” é um filme sobre os perigos da viagem no tempo e também sobre os paradoxos que ela pode vir ou não a criar. Mas mais do que isso, o longa é sobre como um poder como este pode abalar relações e até mesmo destruir amizades. Nele, quatro amigos dividem o tempo entre seus empregos formais em grandes empresas de tecnologia e o trabalho na garagem de um deles (Aaron), tentando desenvolver patentes que os tornariam independentes. Enquanto trabalham em seu novo projeto, um aparelho que, ao bloquear a força gravitacional, reduziria a massa aparente de qualquer objeto, os dois protagonistas acidentalmente descobrem a viagem no tempo. Daí, o filme se desenrola incrivelmente através das consequências que uma descoberta destas pode implicar.

“Primer” é o primeiro de somente dois filmes de Shane Carruth. Apesar de eu ter, até agora, tratado aqui de cineastas que já têm uma carreira longa (ou média) de filmes geniais, não acredito que seja exagero dedicar o espaço da coluna a um cineasta com uma obra tão pequena (em número, pelo menos). Eu já havia visto “Primer” e me impressionado. Daí, no final do ano passado, assisti “Upstream Color”, que é, sem sombra de dúvidas, um dos melhores filmes de 2013. Seus dois longas são instigantes e sensacionais, de uma maneira que ao mesmo tempo maravilha o espectador e o faz pensar. São filmes que ficam como uma abelha ou uma mosca rondando e buzinando nossas cabeças, mas não de uma forma chata. Apesar das boas críticas e do burburinho em volta dos dois filmes, nenhum deles chegou perto de ser lançado aqui no Brasil. Já que ninguém os traz para cá, os dois podem ser baixados, claro. Além disso, “Upstream Color” está no Netflix gringo e “Primer” está no Youtube com legendas em português.

Tão impressionante quanto os filmes de Carruth é a forma como ele os produziu. No caso de “Primer”, ele escreveu, produziu, dirigiu, compôs a música, editou e atuou. E o mesmo vale para “Upstream Color”, em que ele foi roteirista, produtor, diretor, editor (ao lado de David Lowery), compositor, ator (fazendo par com a impressionante Amy Seimetz) e, diferente do primeiro, também diretor de fotografia.

Interessante também é o caminho que ele percorreu até se tornar um cineasta. Carruth é formado em Matemática e até meados de seus 30 anos trabalhava como engenheiro de software, desenvolvendo simuladores de voo. Insatisfeito com o trabalho, ele resolveu se tornar escritor. Depois de alguns contos e um pedaço de romance escritos, percebeu que uma forma, para ele, mais interessante de contar suas histórias seria através de imagens. Daí, resolveu mudar mais uma vez. Assim como com a escrita, Carruth não tinha experiência alguma com o cinema. Em uma entrevista na época do lançamento de “Primer”, ele mais ou menos explicou como fez para aprender. Ele disse que grande parte da matemática não trata somente de números, e sim do fato de você ter na sua frente um problema que parece insolucionável, mas que, mesmo assim, você o analisa, o desmembra, verifica parte a parte e descobre que ele pode ser resolvido. Assim sendo, ele estudou e experimentou. Autodidata, lia roteiros, analisava as técnicas e ia para o trabalho escrevendo no trem. Visitou também produtoras em Dallas e aproveitou para tirar muitas de suas dúvidas. Por fim, experimentou com diferentes câmeras e luzes. Depois de três anos, nasceu “Primer”.

O filme foi exibido no festival de Sundance, venceu o Grande Prêmio do Júri, assim como o prêmio Afred P. Sloan, que laureia filmes de temas científicos. Depois disso, criou-se um pequeno culto em volta da obra e de sua intricada trama de viagem no tempo e múltiplas versões dos mesmos personagens. Foram oito anos até que Carruth lançasse seu segundo filme. Grande parte desse tempo foi gasto em um projeto fracassado, “A Topiary”, uma outra ficção científica que contaria a história de um grupo de crianças capazes de construir e dar vida a criaturas gigantescas. O filme não foi para frente principalmente por causa de financiamento e o diretor já afirmou diversas vezes que “A Topiary” “é a coisa em que praticamente perdi toda a minha vida.” Um pequeno trecho de teste de efeitos especiais do projeto pode ser visto no computador do trabalho de Kris, a personagem principal de “Upstream Color”. Seria interessante ver esse filme, que na minha viajada visão seria uma espécie de “Onde Vivem os Monstros”, misturado com o jogo “Shadow of the Colossus” e uma aventura juvenil dos anos 1980 à lá “Goonies” (ou nada minimamente parecido com isso, vá saber). Mas “A Topiary” não vai acontecer. O próximo filme do diretor já está sendo produzido, se chama “The Modern Ocean” e a trama gira em torno de rotas marítimas comerciais.

Enfim, voltando a linha temporal de “Primer”, o filme foi feito com apenas sete mil dólares, um orçamento ridículo para os padrões americanos e mínimo até para os brasileiros. Além disso, o dinheiro foi quase totalmente usado para comprar filme, já que Carruth optou por não gravar digitalmente. Não sei qual seria o resultado se o formato fosse digital, mas posso dizer que a fotografia é bem marcante do jeito que é. Em amarelo e azul saturado, ela ajuda a contar a história nos passando a impressão de que há alguma coisa fora do lugar ali, além de dar ao filme uma cara setentista.

Assistindo pela primeira vez, tive a impressão de que tudo ali foi programado meticulosamente, de que tudo estava no seu devido lugar, quase matematicamente organizado, se posso dizer assim. Depois de ler sobre a formação do autor e de como o filme foi gravado, com storyboard detalhando cada take e com mais de um mês de ensaios antes das câmeras finalmente rodarem, essa impressão se justificou. Tanto que Carruth disse que não tinha a intenção de atuar no filme, mas que o fez porque não conseguiu arrumar um ator que conseguisse se dar bem com os diálogos rápidos embebedados de termos científicos e porque também, àquela altura, já tinha decorado o roteiro de trás para frente. Assim, “Primer” parace uma ficção científica cientificamente montada, com as partes (narração, diálogos, fotografia, som e edição) trabalhando como se fossem engrenagens meticulosamente calibradas.

Em muitas sequências, a edição é totalmente fragmentada. Há cenas em que narração ou diálogo seguem ordem cronológica, mas os takes estão todos embaralhados, passando a impressão de uma confusão, de uma desconstrução temporal. E quando não é a desorganização dos takes é o corte seco que dá essa impressão, seguindo uma linha cronológica, mas com pequenos pulos temporais. A trilha é, nesse sentido, também instigante. Ela se modifica junto com a trama, novos elementos são adicionados juntamente com as mudanças na percepção de tempo e também a partir das mudanças nas relações entre os personagens. No começo a música é composta basicamente por um piano e, ao longo do filme, muitos ruídos vão se somando e transformam o som sereno em algo mais tenso e confuso.

Apesar da viagem no tempo, a questão central no filme é o relacionamento entre Abe e Aaron, dois amigos que têm que lidar com uma descoberta que provavelmente trará implicações absurdamente grandes para o mundo. Mas o que o filme pretende mostrar, ou pelo menos mostrou para mim, não são as consequências científicas e sociais de se poder voltar no tempo, mas sim as consequências que poderiam ser consideradas as mais mínimas. No caso, as implicações na amizade dos dois e também o que eles pretendem fazer a partir do momento que contam com essa habilidade. Em dado momento eles são companheiros inseparáveis, unidos pela amizade de longa data e também por seu segredo. Em outro, já começam a se distanciar, a discordar um do outro, a sentir, sutilmente, um pouco de inveja e ciúme de parte a parte. Além disso, dá para pensar em inúmeras atitudes louváveis que poderiam ser feitas ao se ter o controle de voltar no tempo, mas a primeira coisa que eles fazem pode ser encarada como um ato egoísta (apesar de totalmente humano e compreensível), que é comprar ações que vão dobrar de valor ao longo do dia. E é esse foco no humano, que faz com que o filme, com o seu baixíssimo orçamento e sem nenhum efeito especial, seja uma das fiçcões científicas mais geniais dos últimos anos.

É meio inútil ficar correndo atrás de explicações e diagramas que detalhem o que se passa com o tempo e os personagens. Para mim, filmes devem fazer o espectador sentir, seja lá o que for. Não é necessário entender detalhadamente cada ponto da trama. Mas duas coisas são importantes em “Primer”. Primeiro, a máquina só permite voltar no tempo, e só até o momento em que ela foi criada. Então, nada de ir encontrar os dinossauros, bater um papo com Leonardo da Vinci ou assistir a Copa de 1958. Segundo, para voltar no tempo é preciso ficar dentro da máquina o período desejado, ou seja, se é meia noite e o personagem deseja voltar ao meio dia precisa ficar doze horas dentro da máquina. Esses pontos dão um caráter mais científico e verossímil a trama, independentemente de se haver um embasamento científico verdadeiro ali ou não. Isso o difere também de outros filmes do gênero. Não é igual, por exemplo, a “De Volta Para o Futuro”, em que se Marty McFly não colocar o passado de volta nos trilhos e juntar seus pais, ele desaparece da foto. Neste caso, as diferentes iterações convivem em um mesmo universo, sabendo ou não da existência uma das outras e tendo que lidar com as consequências de seus atos e dos atos de suas hipotéticas cópias.

Há duas declarações de Shane Carruth, que ele repete em diversas entrevistas (e que estão também na página do filme no IMDb), que valem muito mais do que qualquer texto sobre sua obra. A primeira é: “Você não precisa fazer 100 milhões na bilheteria para ter uma história que possa ser relevante na cultura por um bom tempo. Você só precisa ser sincero e determinado.” Já a segunda trata especificamente de primeiro longa: “Em ‘Primer’, as coisas tinham que ser complicadas porque nós temos dois personagens que estão perdendo a noção do que está acontecendo e isso é parte do porque eles estão desconfiados e é o que faz eles agirem do jeito que agem. É necessariamente complexo.”

Também complexo ou não (provavelmente será), espero ansiosamente por seu próximo fillme. E espero também ver (apesar de ele dizer que não tem a intenção) Carruth fazer um filme com uma orçamento megalomaníaco. Porque, apesar de seus dois filmes terem provado que não é preciso muito dinheiro para contar uma história fantástica, ter muita grana também não exclui essa possibilidade.

Ah, e para quem é fã de “Looper” (eu sou), filme de 2012 dirigido e escrito por Rian Johnson e estrelado por Joseph Gordon-Levitt e Bruce Willis, que também trata de viagem no tempo (mas de uma forma totalmente diferente, com muitos tiros e explosões), é legal saber que Shane Carruth ajudou na concepção do longo, dando uma espécie de consultoria em viagem temporal a Rian Johnson.

Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=3nj5MMURCm8

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