Primeira Dose — “Sólo Con Tu Pareja” (Alfonso Cuarón, 1991)

Rômulo De Sá Pereira
10 min readOct 26, 2017

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4,0

Apesar de não ser grande conhecedor da cultura e da sociedade mexicana, acredito que as semelhanças com o Brasil sejam maiores que as diferenças. E apesar de eu na época ser apenas uma pequena criança, penso que piadas fazendo troça com a AIDS não eram tão facilmente aceitas nem aqui e nem lá, em 1991, em pleno boom da doença, quando mais de 10 milhões pelo mundo estavam infectados e celebridades e comuns morriam aos montes sem o devido tratamento.

É por isso que, antes de mais nada, devo dizer que “Sólo Con Tu Pareja”, que em tradução literal significa “Somente Com Sua Parceira” e que recebeu o título em inglês “Love In the Time of Hysteria” (creio que o oficial em português seja a tradução do norte-americano, mas não tenho certeza), é um filme corajoso. Porque é preciso muito culhão para qualquer um, ainda mais dois desconhecidos (Carlos Cuarón, irmão do diretor, coescreveu o roteiro), encara conceber e exibir um trabalho que zomba de dois assuntos que até hoje são meio tabus: AIDS e suicídio.

Em entrevista inclúida nos extras do DVD, Alfonso e Carlos afirmam, espantados que estavam, que “Sólo Con Tu Pareja” foi a forma que encontraram para chamar a atenção para o problema da AIDS. Segundo eles, na sociedade machista da Cidade do México a doença virou motivo de piadas homofóbicas e havia uma visão de que a doença era um mal que afligia exclusivamente os gays. E claro, como se sabe, o buraco era muito mais embaixo. Tanto que o título foi tirado de uma das muitas campanhas de prevenção e conscientização que eram veiculadas no país e que dizia: “Só com sua parceira ou use camisinha.”

O filme não foi um sucesso, mas causou um burburinho e também muita polêmica pelos poucos lugares por onde passou. Os autores eram a toda hora questionados sobre por que estavam fazendo piadas com uma situação tão grave quanto aquela. Alfonso e Carlos contam que sempre respondiam com a definição de Woody Allen, de que comédia é tragédia mais tempo, mas que, nesse caso, eles não tinham muito tempo. “A AIDS estava se tornando a epidemia que realmente se tornou e a comédia foi a forma que encontramos para nos expressarmos.”

E, realmente, o filme não é nada panfletário. É essencialmente comédia. Uma mistura de humor negro com pastelão. As influências cinematográficas básicas, de acordo com os próprios realizadores, foram os filmes de dois mestres, o estadunidense Blake Edwards e o alemão Ernst Lubitsch. Como eles mesmos disseram, “Sólo Con Tu Pareja” é a visão deles para um filme de Lubitsch. Temos o toque do alemão, com os triângulos amorosos (aqui mais do que triângulos, é verdade), os adultérios e os golpes e enganações, e também as situações bobas, ingênuas e engraçadas do estadunidense, como quando, por exemplo, Tomás Tomás, o protagonista, cai numa bacia de água e escorrega no sabonete.

Outra característica essencial do filme é o humor nonsense, que rende alguns dos momentos mais divertidos do filme. Por exemplo, Mateo Mateos, o vizinho e melhor amigo, pede para Tomás Tomás sair com uns colegas doutores japoneses que vieram participar de uma convenção. Daí, ele os leva para um porre homérico por todos os cantos da Cidade do México. Depois, na ressaca, Tomás Tomás tem um sonho em que está em um avião, num momento de surrealismo puro. Estão lá, em uma festa lisérgica nos ares, todos os personagens do filme, mais alguns estereótipos mexicanos e adolescentes dos anos 70/80. Vemos os mariachis, o lutador de luta livre mascarado e até o Ultraman. Impagável.

O longa conta a história de Tomás Tomás, vivido por Daniel Giménez Cacho, um jovem publicitário bem de vida e que, falando em bom português, é um grande comedor. Uma espécie de Casanova da classe média mexicana. Sua lista de conquistas não tem fim e passa por sua chefe, por uma mulher que conhece no supermercado, por uma noiva em meio a cerimônia de seu casamento, por sua colega de academia, assim por diante. Depois de se envolver com e sacanear a enfermeira assitente de Mateo Mateos, ele se pega às voltas com o amor por sua nova vizinha Clarisa, personagem de Claudia Ramírez, com um diagnóstico de AIDS e, consequentemente, com a ideia absurda de se suicidar usando um forno de microondas.

Para além das influências de Edwards e Lubistch, o filme é também declaradamente uma espécie de versão contemporânea mexicana da ópera “Don Giovanni”, composta por Mozart e com texto de Lorenzo da Ponte. Nela, um nobre garanhão seduz todas as mulheres que encontra pela frente e, em uma confusão, acaba matando o pai de uma delas. Todos os outros personagens passam o espetáculo inteiro tentando se vingar do nobre Giovanni, mas, no final, quem o leva para o inferno é a estátua do comendador por ele assassinado. No filme de Cuarón sai o assassinato e o inferno e entram a AIDS e o suicídio. Foram as acões de Don Giovanni que o levaram para o inferno, assim como foram as peripécias de Tomás Tomás que o colocaram cara a cara com o diagnóstico da AIDS e a consequente tentativa de suicídio. É como na lição passada ao final da peça, “A morte dos pérfidos é sempre igual à sua vida”, e é também como diz em certo momento do filme Teresa de Teresa, esposa do amigo vizinho, “Pela espada mata, pela espada morre”. Mas, diferentemente da obra de Mozart, já que “Sólo Con Tu Pareja” é uma comédia e não uma tragédia, há uma luz no fim do túnel na trajetória do herói.

Clarisa é vista pelo protagonista como um anjo, que o vai lavar de todas as suas impurezas e o salvar. A cena em que ele passa diversas vezes de um apartamento para o outro pela beirada da sacada é incrivelmente engraçada e, ao mesmo tempo, bela e dramática. Tomás Tomás está com uma mulher em seu apartamento e com uma outra no apartamento do vizinho amigo. Para ir de um para o outro ele usa o parapeito do andar do prédio. No meio, entre uma janela e outra, está a de Clarisa e é ali que ele a vê pela primeira vez. Ela, que é aeromoça, está treinando as instruções de bordo e seus movimentos, quase em câmera lenta, o fazem ficar embasbacado, com os olhos brilhando. É o amor à primeira vista. O quarto de Clarisa é como uma ilha de inocência, pureza e beleza, encravado entre as duas camas em que as outras duas mulheres o esperam sem saber uma da existência da outra. Este é o momento de fraqueza do “macho alfa”, ele tem duas mulheres a sua disposição, além das dezenas que ele já teve ou poderia ter, mas a que o atinge profundamente está ali tão perto, mas, ao mesmo tempo, inalcançável. Mais inconsolado ainda ele fica quando, longo em seguida, descobre que ela é comprometida e, aparentemente, feliz por ser.

Tomás Tomás tem nas mãos o poder de controlar as mulheres (ou pelo menos acha que tem) através do sexo e usa esse poder para tentar controlar, colocar ordem nas outras partes de sua vida. Ele só tem um trabalho como redator publicitário porque divide a cama com sua chefe. Afinal, não sei de que outra maneira ele conseguiria manter o emprego atrasando a entrega de uma peça e fingindo uma gripe para não ter que entrega-la. Mais ainda, ele usa seu poder sobre as mulheres para resolver o seus problemas de trabalho, já que, sem inspiração e num beco sem saída, ele coloca sua última conquista, a enfermeira do amigo vizinho, para pensar em slogans enquanto ele vai ter com a outra amante no apartamento em frente. Mas é quando uma dessas mulheres descobre o seu jogo, que Tomás Tomás perde toda a sua postura e se acovarda. Ao receber o diagnóstico de infeção por AIDS, lá se vai o homem bem resolvido, conquistador indelével. Sua primeira e única atitude não é tentar lidar com o problema e sim tentar acabar com a própria vida. O mesmo acontece quando ele se descobre apaixonado por Clarisa, quando percebe que não há jeito de ela ser só mais uma de suas conquistas. Ele perde o chão.

Filmes que tratam da AIDS existem aos montes, mas tendo visto “Clube de Compras Dallas” (“Dallas Buyers Club”) há não muito tempo, é inevitável não relacionar um com o outro. Comédia e drama, eles ocupam opostos extremos, mas, por tratarem do mesmo assunto, têm lá suas semelhanças, principalmente em relação a mensagem que seus autores pretendem passar. O que em um é tratado pelos autores nas entrelinhas é no segundo escancarado. Ron Woodroof, personagem de Matthew McConaughey, é o machão homofóbico que acha que AIDS é “uma coisa de viado”. Tomás Tomás não pensa assim, afinal não é um cowboy redneck do Texas e sim um esclarecido yuppe da classe média da capital mexicana. O irônico é que, enquanto Woodroof aprende aos poucos a lutar contra seus preconceitos, contra a doença e contra o sistema de saúde, Tomás Tomás simplesmente resolve enfiar a cabeça no forno de microondas.

É difícil encontrar paralelos entre “Sólo Con Tu Pareja” e as outras o obras do diretor. O filme se aproxima um pouco de “E Sua Mãe Também” (“Y Tu Mama También”), o outro único filme mexicano de Cuarón, de 2001. Afinal, tanto o primeiro quanto o segundo tem com um de seus temas principais o sexo. Tomás Tomás vive a sua vida em torno de suas conquistas e do sexo que elas proporcionam. Já a dupla de jovens-ainda-adolescentes vivida por Gael García Bernal e Diego Luna está às voltas com suas primeiras experiências sexuais e idealiza o sexo na forma de uma mulher mais velha, personagem da bela espanhola Maribel Verdú.

Suas marcas registradas, técnicas que ao longo dos anos o diretor aprimorou, são quase imperceptíveis aqui. Cuarón e Emmanuel Lubezki, diretor de fotografia que trabalha com ele desde o primeiro filme, são mestres do plano sequência. Em “Gravidade” (Gravity), que levou um caminhão de prêmios técnicos no Oscar 2014, os personagens de Sandra Bullock e George Clooney, andam pela beleza desesperadora do espaço em planos incríveis. Está nele o plano sequência mais longo da dupla, com absurdos 12 minutos, mais ou menos. Mas o ápice dos dois até agora foi em “Filhos da Esperança” (Children of Men), penúltimo filme de Cuarón. Na ficção científica de 2006 são 16 sequências com mais de 45 segundos, sendo que seis delas têm mais de 90! E não é só a duração que há de se levar em conta. Duas cenas são das mais incríveis que se tem notícia, a da perseguição e ataque ao carro pelas motos, meio que no início do filme, e a da batalha, já no final. São cenas de tirar o fôlego, tecnicamente impecáveis e incrivelmente orquestradas, mas que, ao mesmo tempo, só ajudam a humanizar mais ainda os personagens principais e trazê-los para mais próximo do público. Afinal de contas, eles não são heróis, são apenas um homem e uma garota em meio a desgraça de um futuro distópico sem crianças. Em “Sólo Con Tu Pareja”, de todas as cenas, somente a do casamento tem com um jogo de câmera mais elaborado e uma duração de plano maior.

Mas apesar de não ser possível identificar as características que, hoje, são marcantes no trabalho do diretor, dá para perceber que Cuarón já era um sujeito meticuloso, atento aos mínimos detalhes. Fico imaginando quantas vezes ele fez Daniel Giménez Cacho subir e descer as escadas, na corrida adolescente atrás do jornal, até atingir o resultado que esperava. Pode ter sido uma só, mas parece que foram muitas.

“Sólo Con Tu Pareja” pode ser encarado também como a afirmação do tipo de flmes que Cuarón e seus colaboradores desejavam fazer desde que começaram a estudar cinema. Um cinema universal, com cara de Hollywood, mas que também não abrisse mão das tradições mexicanas. O diretor disse que, na época, estava descontente em relação ao que era feito no país. A indústria cinematográfica era bancada pelo estado através de patrocínios e leis fiscais (Alô, Brasil). Muitos estudavam para acabar fazendo publicidade para o governo e aqueles que insistiam em fazer filmes eram chamados idealistas. Como ele mesmo disse, sua ideia era produzir filmes “comerciais”, mas com conteúdo e que poderiam atingir os mais diversos públicos, sem preconceitos. Tanto que ele foi expulso da faculdade de cinema depois de criar controvérsia e polêmica ao dirigir um curta todo falado em inglês.

Seus ideiais e, ironicamente, o fracasso de seu primeiro filme no México foram decisivos em sua carreira. Talvez se o longa tivesse sido um sucesso, Cuarón não teria ido tentar a sorte nos Estados Unidos. Lá, depois de alguns trabalhos frustrados, o diretor assinou contrato com a Warner e foi escalado para dirigir “Addicted to Love”. Depois de ler o roteiro de “A Princesinha” (“A Little Princess”), que foi lançado em 1995, Cuarón abandonou o projeto para o qual fora escalado e convenceu o estúdio a lhe dar a direção da adaptação do livro infantil. Diferentemente de Wes Anderson, primeiro diretor tema da coluna, que quase sempre tem o controle total de suas obras, incluindo aí roteiro, produção, direção, o trabalho de Cuarón nem sempre é totalmente autoral. Isso só aconteceu em seus filmes mexicanos e nos dois últimos. Analisando sua filmografia, isso é exemplo da força que tem o diretor e de um apuro incrível na hora de procurar e aceitar os projetos em que vai trabalhar. Eu não sei o que seria “Addicted to Love” (nunca foi produzido), mas “A Princesinha” é um dos filme infantis mais bonitos e tocantes de que tenho lembrança. O mesmo vale para “Grandes Esperanças” (“Great Expectations”), seu segundo filme hoolywoodiano e adaptação do livro de Charles Dickens estrelado por Ethan Hawke e Gwyneth Paltrow. Diz a história que ele não estava afim de dirigi-lo e foi pressionado pelo estúdio a fazê-lo, mas o resultado final, apesar de longe de ser perfeito, é bem interessante. Isso sem falar em “Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban” (Harry Potter and the Prisoner of Azkaban), se não o melhor, pelo menos o mais bem dirigido capítulo da série. De “Filhos da Esperança” e “Gravidade” não há o que dizer, basta assistir e ter sua cabeça explodida.

Trailer:

https://www.youtube.com/watch?v=ef-rPHHJ_IM

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