Sábado de Blues: Os Blues da HQ Terapia

Rob Gordon
7 min readMar 12, 2016

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“Terapia não é sobre blues, mas sim sobre psicologia”. Eu repito essa frase sempre que posso a respeito da webcomic que produzo em parceria com a Marina Kurcis e o Mario Cau — você pode ler todas as páginas publicadas até o momento, de graça, aqui. Mas sim, o blues é parte importantíssima da história, e eu nem tento negar isso.

Para quem não sabe, Terapia nasceu em 2011, com uma história que não poderia ser mais simples: um garoto de vinte e poucos anos não se sente e tenta descobrir os motivos disso em conversas com o seu terapeuta, descobrindo mais sobre sua vida e sobre ele mesmo — o único momento que ele se sente completo (ou feliz) é ouvindo seus blues antigos.

Ao longo desses anos, ganhamos duas vezes o troféu HQMix de Melhor WebQuadrinho e os sete primeiros capítulos foram publicados de forma impressa, em um álbum lançado pela editora Novo Século.

Mas, por mais que eu diga que a história não é sobre blues, é inegável que o blues é parte importante da história. O blues, aqui, vai além do gênero musical preferido do protagonista; ele é uma parte importante da sua personalidade, e a maneira pela qual ele consegue exprimir — ou pelo menos compreender — suas emoções.

Além disso, Terapia fez com que o blues se tornasse parte ainda mais importante na minha vida. Foi graças a Terapia que eu comecei a não apenas ouvir blues, mas também a estudá-lo, compreendendo mais cada subgênero, suas épocas e regiões e, principalmente, descobrindo a poesia que se esconde por trás “daquelas músicas tristes”. Acho que é bastante correto dizer que sem Terapia essa coluna não existiria.

Afinal, desde o começo de Terapia, muitos leitores da HQ me pedem indicações de blues para acompanhar a história. E, desde que eu comecei a escrever esta coluna, mais de uma pessoa já me pediu para eu falar um pouco sobre as músicas da história. Assim, separei cinco bem importantes (deixando de lado canções que apareceram na história e que eu já abordei em outros textos, além de todas as dezenas de referências ao blues em si ou seus principais nomes), falando mais sobre suas histórias, seus autores e, claro, como elas funcionam dentro de nossa história.

Sendo assim, vamos a elas (clique no número da página, logo acima do nome de cada música, para abrir no tamanho real):

Página 14
I Can’t Be Satisfied
(Muddy Waters — 1948)

Apesar da letra dessa música abrir o capítulo 2, eu tive a ideia de usá-la ainda enquanto escrevíamos o capítulo 1. Isso porque eu a considero quase um cartão de visitas para o blues e eu sabia que a maior parte dos leitores não conhecia o gênero além do básico. E, quando eu digo cartão de visitas, não estou me referindo ao aspecto musical, e sim ao “conceito blues”.

Ao cantar que “eu simplesmente não estou satisfeito”, Muddy Waters praticamente explica o que é o blues em uma frase: uma sensação incômoda de que sempre algo está faltando em nossa vida. Este foi um dos primeiros sucessos de Muddy, o maior nome de Chicago e que, em muitos momentos, é o meu artista preferido de blues (sim, meu artista preferido de blues muda constantemente, girando em torno de três ou quatro nomes que se revezam).

Ainda é uma canção feita totalmente com base em sua voz e na guitarra, o que a deixa mais crua, mas, ao mesmo tempo, ainda mais poderosa emocionalmente. Sem Muddy, o blues não seria o mesmo e essa canção é uma das (muitas) provas disso.

Página 35
How can a Poor Man Stand Such Times and Live?
(Blind Alfred Reed — 1929)

Esta talvez tenha sido a canção mais difícil de encontrar. O roteiro exigia uma canção sobre a Grande Depressão, mas não poderia ser uma canção qualquer, e sim uma que tivesse sido composta e gravada durante a Grande Depressão — ou seja, uma canção que não falasse sobre o tema, mas sim uma que estivesse vivendo a crise.

A saída mais óbvia seria Hard Times Killing Floor, do Skip James, mas como apenas o nome da canção apareceria, ela provavelmente não faria sentido para muita gente, já que o conceito de Killing Floor não se explica sozinho. Eu precisava de uma canção cujo título deixasse claro o seu tema. Passei noites pesquisando gravações do começo dos anos até descobrir Blind Alfred Reed, que até então eu não conhecia, e esta canção composta em 1929, pouco depois da quebra da Bolsa — é considerada, hoje, uma das primeiras canções de protesto.

E aí entra uma curiosidade. Apesar do nome quase clássico de blueseiro (qualquer dia eu faço um post sobre os cantores cegos do blues), Blind Alfred Reed era branco e ganhava a vida tocando canções folk com seu violino — chegou até mesmo a tocar com a família Carter (sim, aquela família Carter, de June Carter, que se casaria com Johnny Cash). Mas como até os anos 40 a linha que divide o blues e o folk é muito, muito tênue, a música encaixou completamente no roteiro.

Página 44
Born under a Bad Sign
(Albert King — 1967)

Eis aqui outra canção que praticamente define o blues. E foi exatamente por isso que eu a escolhi para abrir a coletânea que o personagem central de Terapia ganha de presente. É uma lista que praticamente explica o blues (passeando por gêneros e nomes importantes), mas, ao mesmo tempo, se encaixa com a personagem que gravou a coletânea. Não apenas as músicas, mas a ordem que elas estão… Tudo foi pensado levando isso em conta.

Entretanto, como eu desconfiava que muita gente fosse atrás dessas músicas, eu precisei também fazer com que a lista fosse acessível, então abri com um blues mais moderno, elétrico e que namora abertamente o rock’n’roll. Isso poderia ser feito facilmente com B. B. King, mas a personagem que monta a coletânea jamais escolheria algo tão popular para abrir este CD tão especial para ela.

Albert King me pareceu a melhor saída. Um dos três reis do blues (ao lado de B.B. e Freddie), o guitarrista é um dos mais geniais da época moderna do blues. E Born Under a Bad Sign, sua grande obra-prima, é daquelas canções que sintetizam o blues com perfeição, apresentando arranjos grandiosos com uma letra trágica e ao mesmo tempo intimista, que aposta numa explicação pessimista para o blues: algumas pessoas nasceram sob um signo ruim e estão fadadas a serem infelizes.

Stone Crazy
(Buddy Guy — 1972)

Já para fechar a coletânea da página 44, um monstro que certamente ganhará uma coluna aqui em breve. Acho muito difícil pensar em uma coletânea de blues hoje sem a presença de Buddy Guy. Hoje, ele é certamente o maior blueseiro vivo e mesmo com 79 anos, sua guitarra continua esbanjando elegância e feeling, sem demonstrar o menor sinal de cansaço.

Na verdade, Buddy Guy é um daqueles nomes que quase todo mundo ouviu falar — assim como B. B. King — mas que nem todos conhecem suas canções. Para essas pessoas, Stone Crazy é um bom começo. Com um vocal gritado, quase desesperado, Buddy visita o tema mais clássico do blues — ser mal tratado por quem a gente ama — com uma frase que, para mim, é a o retrato da solidão: “Deus, enquanto eu sento aqui nesse quarto escuro, lágrimas rolam dos meus olhos”.

Página 97
Still Got the Blues
(Gary Moore — 1990)

Tem cara de hit de FM? Sim — mesmo porque foi um grande sucesso em sua época. Mas isso não diminui em nada a qualidade de Still Got the Blues, balada blueseira de Gary Moore, um dos principais nomes do blues irlandês, que pode quase ser considerado uma vertente própria, com guitarristas geniais. A letra da canção é um primor, mostrando como o cantor não consegue se envolver com ninguém porque ainda sente o blues daquele grande amor perdido.

Mas o ponto forte da canção é a guitarra, famosíssima e inconfundível, que fica no meio do caminho entre a melancolia e a doçura. Moore, falecido em 2011, construiu aqui uma obra-prima inesquecível, mas sua obra é repleta de canções maravilhosas e vale a pena ser descoberta (com destaque para as versões ao vivo de suas músicas, muitas com oito ou dez minutos de improviso).

Esta foi a primeira vez em Terapia que fizemos a letra de uma canção se estender para as duas páginas seguintes (aqui e aqui), criando quase um videoclipe da música enquanto contamos nossa história.

Em tempo: nos últimos dias, essa coluna conquistou muitos leitores novos. Isso se deve especialmente ao fato de que alguns dos melhores textos daqui passarão a ser publicados no Papo de Homem. Se você é um desses novos leitores, seja muito bem vindo!

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