Sábado de Blues:
Os Depoimentos de John Lee Hooker

Rob Gordon
6 min readJul 11, 2015

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Quando comecei a pensar a respeito de escrever sobre blues — algo que muita gente que me segue nas redes sociais vem pedindo já há algum tempo — fiquei em dúvida sobre qual seria um bom tema para a estreia desta coluna. Logo, percebi que um nome não saía da minha cabeça: John Lee Hooker.

E não porque é um dos meus artistas favoritos e um dos primeiros blueseiros que conheci — bem, sim, também por causa disso — mas basicamente porque eu o enxergo como um dos pontos cardeais na história do blues.

Mas acho que posso explicar melhor a importância que enxergo em John Lee Hooker falando sobre minha coleção de blues. As minhas coleções de músicas são sempre organizadas em subgêneros. Isso me ajuda a enxergar não apenas como cada estilo se relaciona com o outro como, principalmente, a evolução do gênero como um todo. Faço isso com todas as minhas coleções, seja blues, música clássica ou heavy metal.

E, quando mais eu leio sobre blues para aprender sobre cada estilo, vejo que a cada hora ele está inserido em um estilo diferente, que vai de Delta Blues a Boogie-Woogie, de Detroit Blues a Talkin’ Blues. Descontando aquela maleabilidade normal que faz um artista pertencer a mais de um subgênero mudando e evoluindo seu som, neste caso isso apenas comprova algo que penso sempre que coloco suas músicas para tocar em casa: para mim, John Lee Hooker é, sozinho, um subgênero do blues.

Isso porque é impossível ouvir John Lee Hooker e não perceber imediatamente que se trata de John Lee Hooker. Sua característica mais marcante é que, em boa parte do tempo, ele não está cantando, e sim apenas falando ao ritmo da música (o que é exatamente bem diferente), como se estivesse literalmente contando uma história.

Uma canção em especial, I’m Bad Like Jesse James, deixa isso claro. Aqui, ele conta sobre o sujeito que andou pela cidade espalhando que pegou sua esposa e como ele vai matá-lo (às vezes falando para o ouvinte; em outras, direto para o adversário). Mas sempre falando — ou murmurando ou rosnando, coisas que ele também faz muito.

Mas talvez a característica que mais gosto em John Lee Hooker está nas suas letras. Na verdade, isso vale para a maior parte das músicas que ouço: como escritor, a letra da música é sempre extremamente importante para mim, e nesse ponto John Lee Hooker também se destaca.

Na verdade, lendo sobre ele alguns anos atrás cheguei à conclusão que ele era uma espécie de gênio na hora de compor, improvisando as letras enquanto tocava. Diversas pessoas contam que ele gravava uma música e, ao precisar fazer um novo take, entrava no estúdio e gravava a mesma canção, mas desta vez com outra letra, mudando o sentido da história (ou a história em si), mas sempre mantendo a coerência, a métrica e fazendo os versos rimarem.

“O blues conta uma história.
Todo verso de blues tem um significado.”
(John Lee Hooker)

E, veja bem: estamos falando de um sujeito que era praticamente analfabeto. John Lee Hooker brincava com as palavras e frases, ao mesmo tempo em que mal sabia escrever o próprio nome. Não é de se espantar que diversas de suas letras contenham erros de concordância (algo que não é raro de acontecer no blues) e mesmo seu primeiro grande sucesso, Boogie Chillen, já pode ser visto como um erro (A palavra “chillen” não existe: é apenas uma aproximação fonética de “children”).

A despeito disso, sua obra é uma das mais ricas que conheço no que diz respeito aos temas abordados. Suas letras cobrem todos os assuntos preferidos do blues, de eventos históricos ao amor (ou a falta dele), do álcool à solidão. E sempre com uma dose de realismo impressionante. O blues é uma música muito sentimental, mas também extremamente realista, já que ela fala sobre (e com) pessoas comuns, e Hooker parece entender isso como ninguém.

Suas letras muitas vezes são cruas, dando um peso muito maior para um fato que para um sentimento (o que não quer dizer que ele não sabia falar sobre sentimento, e It Serves Me Right to Suffer está aí para provar isso). Junte isso com o hábito de falar durante as músicas, e suas canções parecem pequenos documentários (ou melhor, pequenos depoimentos) sobre sua vida, sua realidade e sua época- e sempre de uma forma meio marginal, meio malandra, algo valorizado ainda mais pelo seu figurino que combina terno, óculos escuros e chapéu (e que inspirou o visual dos Blues Brothers).

Talvez por isso que um dos seus temas preferidos seja a falta de dinheiro. Hooker morreu milionário, mas nasceu pobre, em uma fazenda do Mississipi. Fugiu de casa e, antes de sua carreira decolar, ganhou vida fazendo bicos e trabalhando em fábricas.

Mesmo quando Boogie Chillen tornou-se um enorme sucesso (lançada em 1948, foi o race record, ou seja, o disco de música negra, mais vendido de 1949), o dinheiro ainda era curto. Isso porque os donos da Modern Records, sua primeira gravadora, tinham o hábito de se creditarem como compositores das músicas que lançavam, fazendo com que boa parte dos direitos autorais fosse para o bolso deles. Aliás, não é à toa que, sabendo disso, ele começou a lançar discos por diversas outras gravadoras, sempre se escondendo atrás de pseudônimos (alguns criativos como Texas Slim ou The Boogie Man; outros incrivelmente preguiçosos, como John Lee Booker e John Lee Cooker).

“Como você já sabia que [as
gravadoras] iriam te enganar,
eu gravei usando
todos os nomes possíveis
com todos elas.”
(John Lee Hooker)

Ou seja: é um sujeito que viu a pobreza de perto, e esse é um tema recorrente em sua obra. Sim, a falta de dinheiro é um tema especial dentro do blues, mas com John Lee Hooker ela tem um brilho especial, em canções como House Rent Blues e No Shoes, e especialmente em I Need Some Money, onde resume o assunto de forma brilhante: “o seu amor me deixa arrepiado, mas ele não paga minhas contas, eu preciso de dinheiro”.

Entretanto, a grande verdade da obra de Hooker não está na falta de dinheiro, na violência urbana, no amor perdido, e sim no fato de que o “sentimento blues” só pode ser curado com a “música blues”. Isso é algo que fica mais que claro em um de seus últimos trabalhos — e uma de suas canções que está entre as minhas preferidas: The Healer, parceria com o guitarrista Carlos Santana.

Afinal, o blues é realista, mas ao contrário do que muita gente pensa, ele não é sobre a tristeza e sim sobre a esperança de que o amanhã será melhor. Hoje as coisas não estão boas, mas amanhã teremos dinheiro, amanhã teremos um amor, amanhã teremos um uísque melhor, um sapato mais confortável. Amanhã teremos paz de espírito.

Mas, até o amanhã chegar, temos o blues resmungado e dolorido de John Lee Hooker para lavar a alma.

Clique e Ouça — Músicas Para Conhecer:

Boom Boom — Sua canção mais famosa e um hino do blues. Indispensável.

It Serves Me Right To Suffer — Lenta, quase arrastada, e com uma letra extremamente melancólica.

Boogie Chillen — Não é apenas sua primeira gravação, mas seu primeiro sucesso, e influenciou toda uma geração de blueseiros.

Big Legs, Tight Skirt — O blues não vive sem putaria, sem mulheres de pernas longas e saias apertadas.

I’m in the Mood (c/ Bonnie Raitt)Indo na contramão do blues, é uma música que soa como alguém que acabou de se apaixonar. Esta versão (um dueto com Bonnie Raitt) para mim, é a definitiva.

No Shoes — O sapato é um elemento muito importante no blues, e normalmente significa dinheiro. O blueseiro é um sujeito que viaja a pé, e para isso ele precisa de um sapato confortável. Se não tem dinheiro, não tem sapatos.

One Bourbon, One Scotch, One Beer — Um sujeito bebendo todas no bar enquanto o tempo passa, numa das músicas mais deliciosas que ouvi.

Whiskey and Wimmen — Como eu disse acima, o blues não vive sem putaria. Mas a putaria, mais cedo ou mais tarde, sempre cobra seu preço.

Tupelo Blues — O blues sempre adorou fatos históricos e parece ter uma obsessão especial por inundações. Aqui, Hooker conta sobre a inundação de Tupelo, condado do Mississipi, ocorrida em 1936.

Dimples — Poucas coisas são mais delicadas que uma música exaltando as covinhas no rosto da mulher.

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