Sábado de Blues:
Leroy Carr: a lenda do piano que nunca ressuscitou
Talvez você conheça Leroy Carr. Mas eu aposto aqui que as chances de você sequer tenha ouvido este nome na sua vida são bem grandes.
E, se você gosta de blues e nunca ouviu falar nele, eu tenho uma notícia boa e uma ruim. A má notícia: você não conhece um pianista que mudou a história do blues e, de quebra, se tornou inspiração fundamental nas vidas de gente do calibre de Ray Charles e Nat King Cole.
A boa notícia? Bem… Você nunca ter ouvido falar de Leroy Carr não é culpa sua.
Eu explico. Mas, para isso, preciso voltar aos anos 60, um dos períodos mais importantes na história do blues, quando os grandes nomes do começo do século foram redescobertos por causa da explosão do rock inglês. Graças especialmente às bandas como Rolling Stones e The Animals, formadas totalmente por fãs de blues, as plateias jovens, brancas e urbanas passaram a conhecer e admirar toda uma gama de artistas da primeira metade do século 20 que estavam, até então, praticamente esquecidos.
Certo, não podemos negar que foi graças a isso que muita coisa vista hoje como obrigatória foi recuperada. É o caso de Robert Johnson, blueseiro que tinha uma fama regional e mediana nos anos 30 e que, da década de 60 em diante, passou a ser visto como um deus, o que perdura até hoje. O mesmo aconteceu com Skip James, Son House e tantos outros artistas do Delta. Sem os anos 60, dificilmente conheceríamos muitos dos artistas do início do século.
Maravilhoso, não? Bem, sim. Mas nem tudo é perfeito.
Como o som das bandas inglesas era sujo e agressivo (especialmente para os padrões da época), seus fãs foram atrás de blueseiros que remetessem a esse tipo de som e atitude. Foi assim que a imagem do guitarrista marginal, que vaga pelas estradas com um violão nas costas, se tornou o símbolo máximo do blues — e qualquer artista diferente deste estereótipo foi empurrado para as notas de rodapé.
Foi assim que surgiu o maior revisionismo histórico da história do blues. O gênero passou a ser visto como uma música underground e visceral, quase um grito de rebeldia do negro do Sul dos anos 20 e 30. Mas isso está longe de ser verdade.
Nos anos 30, o blues era um estilo de música pop que fazia enorme sucesso. Tudo o que os blueseiros do interior queriam era ser descoberto pelas plateias urbanas, onde poderiam ganhar dinheiro de verdade. Mas o público das grandes cidades, na época, não se importava muito com o que estava sendo tocado no Mississipi. Ao contrário, preferiam arranjos mais modernos, de músicos de Chicago e de outros grandes centros urbanos.
E é aí que entra Leroy Carr, pianista que praticamente criou a fundação do que seria o blues urbano das décadas de 40 e 50. Com uma música suave e sofisticada — mas sem jamais abandonar a essência do blues em suas letras — ele transformou o blues clássico do início do século em um som urbano e requintado. E esse é justamente o problema: sua música e sua atitude eram requintadas demais para a plateia dos anos 60.
A música acima, primeira gravação de Carr (realizada em 1928) já retrata bem seu estilo. Seu ritmo arrastado, quase choroso, remete diretamente ao blues do delta, mas o piano (acompanhado pela base feita pelo violão de Scrapper Blackwell, seu grande parceiro) suaviza a sensação de melancolia, tornando-a menos agressiva e a transportando para o universo da cidade grande.
Mas é importante dizer que a grande inovação do blues de Leroy Carr não está em seu piano, mas na sua voz. Ou, melhor dizendo, no jeito que ele canta. Isso não se deve (apenas) a talento, mas à tecnologia.
Blueseiros como Robert Johnson, Son House ou mesmo Bessie Smith precisavam ter vozes poderosas para cantar ao vivo. Assim, mesmo nas gravações você percebe facilmente que eles gritam muito, pois esse é o jeito que cantavam normalmente. Mas, graças à tecnologia de novos microfones (e equipamentos de gravação) que Carr tinha acesso por morar em cidades maiores, ele não grita, e sim apenas… Canta. De forma expressiva, mas nunca agressiva.
A música abaixo, a fantástica e solitária Midnight Hour Blues, serve como amostra disso. Carr canta de forma doce e com uma voz entristecida como qualquer blueseiro, mas ele não grita — quando muito, aumenta o volume de determinada palavra apenas para enfatizá-la, jamais para que ela seja escutada pela plateia. Com isso, a emoção do blues, que é uma música intimista por essência, se valoriza ainda mais.
A letra é um primor e, como muitas músicas de blues, fala sobre o blues (o sentimento, e não a música) em si. Eu acho a primeira estrofe brilhante por colocar o blues como algo muito mais poderoso que o cantor: “Nas pequenas horas da meia-noite, muito antes do dia clarear; é quando o blues rasteja sobre você, e carrega sua mente para longe”.
Se as plateias dos anos 60 tivessem se dado ao trabalho de ouvir as músicas de Leroy Carr, talvez ele tivesse resistido melhor ao tempo. Afinal, estamos falando de um sujeito que sim, usava ternos elegantes e morava na cidade grande; mas, assim como a maior parte dos blueseiros do interior, vivia entregue à bebida e, mais importante, fazia letras carregadas de dor, violência, sexo e solidão.
Ou seja, as únicas diferenças entre ele e seus contemporâneos do Mississipi era sua imagem e o instrumento que tocava. Quando se pensa no blues em si, a força é a mesma. Em alguns casos, Carr vai até mais longe que o pessoal do Delta, explicitando totalmente a violência de suas letras.
Um bom exemplo é a assustadora Suicide Blues, em que ele não apenas descreve seu suicídio com todas as palavras possíveis (“Peguei um Smith & Wesson e explodi meus miolos; não tomei veneno porque não suportaria a tensão”), como afirma que não é covarde (“Não, eu não sou covarde e vou explicar o motivo; eu estava apenas cansado de viver, mas não com medo de morrer”) e explica o que o fez acabar com a própria vida: (“me levem ao cemitério e me coloquem na terra; por favor, escrevam na minha sepultura: minha mulher acabou comigo”). Sério, é perturbador.
Imagina uma música com essa letra sendo lançada hoje? E o genial é que sua letra não é gratuita, e sim uma forma de elevar a dor de um amor fracassado à máxima potência, sem abrir concessão alguma. É certamente uma das letras mais violentas que conheço, e provavelmente a mais violenta de Leroy Carr, mas está longe de ser a única.
E isso nos leva para sua obra-prima, Blues Before Sunrise. Tornou-se um dos maiores standards do blues, sendo regravada por BB King, John Lee Hooker e Eric Clapton e tantos outros, mas com algumas alterações na letra. Afinal, depois de certa época, não pegava bem terminar a música ameaçando a mulher de morte.
Mas, na primeira versão, está tudo ali: desde o começo da canção em que o cantor reclama da sensação de tristeza que sente durante a madrugada — e com um verso brilhante, que ele aponta que “o blues começou a rolar e parou na porta da minha casa”, fazendo com que a sensação se torne quase um objeto físico. Mas, ao final, ele declara que vai mudar seu modo de viver e não vai se preocupar mais, encerrando com “eu amo minha garota, mas minha garota não se comporta; eu vou pegar uma pistola e colocá-la na sua sepultura”.
É mais uma amostra daquele sexismo quase invertido do blues, em que o sexo oposto não é inferior. Pelo contrário, é ele quem tem todo o poder — o que inclui especialmente decidir se o cantor ou cantora será feliz ou não. Sim, é uma ideia que vale para ambos os sexos, e, especialmente nos anos 30, o mesmo acontece com a violência dos crimes passionais, que está presente em letras de homens e mulheres. Que o diga Bessie Smith e sua Sing Sing Prison Blues, onde ela canta, sem remorso, que matou seu homem e não precisa de fiança.
Hoje parece até estranho pensar isso, mas Carr foi um dos blueseiros mais bem-sucedidos de seu tempo. Isso, aliado ao seu talento, faz com que sua influência no blues seja monstruosa: o pianista não apenas abriu as portas para a música que se faria nas grandes cidades nas décadas seguintes, como inspirou diversas outros grandes nomes — e não necessariamente pianistas.
Muddy Waters e Howlin Wolf diziam que How Long, How Long Blues foi a primeira música que aprenderam a tocar. O próprio Robert Johnson era admirador do pianista e isso se reflete diretamente em seu trabalho: um exemplo é a magistral Love in Vain, que tem a mesma estrutura de (In the Evening) When the Sun Goes Down, um grande sucesso de Carr (veja no final do post).
Carr tinha apenas 30 anos de idade quando faleceu em 1935, devido ao alcoolismo. Trinta anos depois, muitos blueseiros desta época, que estavam mortos e esquecidos, não apenas nasceram novamente como ganharam vida eterna. Mas um dos maiores pianistas da história do blues continuou morto e enterrado. Nunca ressuscitou.
A única homenagem que permaneceu foi a canção The Death of Leroy Carr, gravada por Bumble Bee Slim (amigo pessoal do pianista) ainda em 1935. Muito pouco para alguém que mudou a forma e a história do blues.
Clique e Ouça: Músicas Para Conhecer:
Hurry Down Sunshine — A letra abre pedindo para o dia amanhecer logo, pois nunca se sabe o que amanhã trará: gotas de tristeza ou de chuva. Mas logo ele indica que está abandonando a cidade e voltando para casa no Texas, representado na música pelo “estado da única estrela”, por causa da sua bandeira (o que é uma licença poética, já que Carr era do Tennessee, mas morou a vida inteira em Indianapolis, Indiana).
When the Sun Goes Down — É uma canção que não reclama da infelicidade do amor, mas a questiona, usando a passagem do tempo (o anoitecer e o amanhecer) para dizer que esta sensação é uma constante. Um dos maiores sucessos de Robert Johnson, Love in Vain, é claramente calcado na música de Carr, com absolutamente a mesma estrutura musical.
Six Cold Feet Under the Ground — Novamente, o tema é a morte, algo que parece ser quase uma obsessão na carreira de Carr. A letra é simples, e pede apenas para que a mulher não se esqueça dele após sua morte.
Sloppy Drunk — Uma música mais acelerada. É um cover de Lucille Boogan, uma das primeiras cantoras de blues a ser gravada. A versão original não é exatamente lenta, mas a de Carr definitivamente soa mais moderna e parece feita sob medida para agitar a plateia.
Mean Mistreater Mama — Outra música que está diretamente ligado a Robert Johnson. Foi um grande sucesso de Carr e, como era comum na época, rendeu uma música-resposta: Cruel Hearted Woman Blues, de Bumble Bee Slim. Porém, a música de Slim rendeu outra resposta, desta vez com Robert Johnson, na primeira canção que ele gravou: Kind Hearted Woman. E Johnson, esperto, usou exatamente a mesma melodia do original de Carr — e parece se inspirar também no modo de cantar do pianista, com uma voz muito mais relaxada que o habitual.
Bonus track:
The Death of Leroy Carr — feita pelo seu amigo Bumble Bee Slim (e gravada com o próprio Scrapper Blackwell), tem uma letra que romantiza totalmente sua morte… Mas que vale como homenagem.
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