Um segredo sobre criar robôs que guardam segredos 🤐

Roc de Castro
Bots Brasil
6 min readFeb 13, 2019

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Olá, pessoa desconhecida. Vamos conversar sobre velhice e doença?

Quando pensei neste texto, imaginei começar com o que aprendi liderando a produção de conteúdo, design e usabilidade de dois chatbots relacionados à saúde e aos temas cabeludos aí da introdução. Um deles para uma marca de fixadores de próteses dentárias. O outro para uma linha de remédios voltados ao tratamento de candidíase. Que assuntinhos para o primeiro contato com um estranho, hein? Si, pero…

Resolvi deixar a experiência que mudou minha visão sobre automatização de atendimento e assistentes virtuais, tanto no pessoal quanto no profissional, mais para o final da nossa conversa. Antes, quero passar por histórias que tratam desse tipo de interação entre humanos e humanos, e humanos com máquinas.

Vulnerabilidade, vergonha, empatia e liberdade.

Quem já passou por isso sabe. A volta pra casa, após um longo período de internação no hospital, é um momento de liberdade, sim. Mas bem sensível também. Especialmente para aqueles pacientes com menos instrução formal e, mais ainda, para os mais idosos. “Quais cuidados devo ter?”, “de quantas em quantas horas, mesmo?”, “e se acontecer algum imprevisto, o que faço primeiro?” Os profissionais da saúde, por outro lado, nem sempre têm o tempo que gostariam para responder com calma essas e outras dúvidas.

Há alguns anos, o pessoal do Boston Medical Center fez um experimento. Contrataram um especialista para desenvolver enfermeiras virtuais. Suas versões, Louise e Elizabeth, se comunicavam com pacientes através de figuras animadas numa tela, e com o apoio de respostas de voz.

Esse deve ser aquele momento em que você pensa: “mais uma empresa tentando cortar custos e desumanizar seu atendimento pela automatização”, certo? O resultado fala por si. Em torno de 74% dos pacientes preferiram lidar com a Lou e Beth do que com seus colegas humanos. O pessoal que desenvolveu a I.A. constatou que, enquanto os enfermeiros de carne e osso passavam uma média de 7 minutos com quem tava pra receber alta, as enfermeiras virtuais davam toda a liberdade para o paciente tirar suas dúvidas no ritmo que quisesse. “Alguns deles precisavam de mais de uma hora para digerir a informação, mas tinham vergonha de atrapalhar o trabalho da turma do hospital, que estava sempre com pressa mesmo.”

Você pode conferir o causo completo, com suas controvérsias, num texto magistral da New Yorker. A moral da história (spoiler alert) é: se uma inteligência artificial pode ser melhor do que nada, em contextos bem específicos, ela pode ser melhor que humanos.

“Sou todo ouvidos. Já conversei com muita gente que estava na sua situação. Fica à vontade pra perguntar o que quiser. Tenho todo o tempo do mundo e, pode falar livremente: como não sei quem é você, tudo o que falarmos fica entre nós.”

Esse trecho, uma livre adaptação ficcional que escrevi agora para ilustrar o causo contado pelo pessoal do Grupo Dasa, trata da iniciativa de startups da Tailândia. Lá (como aqui no Brasil), o estigma das doenças mentais faz com que muita gente deixe de buscar ajuda e tratamento. E o que isso tem a ver com a nossa conversa? Bom, as startups se uniram para desenvolver apps de smartphone equipadas com I.A. especialistas. Esses apps facilitam o contato entre pacientes e médicos. Assim, quem precisa de ajuda pode ter um diagnóstico inicial e encontrar, anonimamente, psicólogos e psiquiatras que caibam no seu bolso.

Agora sim, posso te contar um segredo.

Um dos segredos do negócio que aprendi trabalhando com esses dois chatbots relacionados a assuntos delicados e saúde foi: muito da empatia sobre um tema pelo qual você não tem tanta familiaridade nasce de uma pesquisa exaustiva. Os cases que acabo de citar são apenas alguns exemplos.

No início da minha empreitada com chatbots, eu pensava que desenhar uma personalidade consistente no tom de voz da marca para o robô era o primeiro passo para o sucesso. Que cruzar casos de uso com personas coerentes, a partir do público-alvo recebido pela agência de publicidade, garantia a relevância. Que fazer o dever de casa como arquiteto de informação, organizando taxonomia, indexando conteúdo de FAQs, agrupando dúvidas por assuntos em comum resolvia. Imaginava também que, do “alto da experiência” de roteirista profissional e redator criativo, transformar textos formais da 3a pessoa para coloquiais na 2a pessoa do singular, e no ritmo conciso dos balões de diálogo, funcionaria que era uma beleza em qualquer contexto. Tudo pensado e desenhado no capricho. Daí nasciam gigantescos fluxos de conversas estáticos, dinâmicos, com filtros, e por aí vai…

E o que aconteceu várias vezes? Aquilo que o designer conversacional chamava de “prótese dentária”, seu público chamava de “dentadura”, assim sem rodeios, pro horror do guide da marca feito para as outras plataformas digitais. O que você chamava de “incômodo” ou “desconforto” sua audiência chamava livremente “coceira insuportável” mesmo. As consequências? O usuário não achava o que precisava, nem pelo caminho guiado, e nem pelos atalhos de reconhecimento de linguagem natural (e bota curadoria e treino nisso). Então, aquele assistente virtual com uma personalidade de BoTiozão virava uma caricatura sem graça. Quem tava ali só precisava de liberdade para conversar e receber uma ajuda rápida e eficiente. E a assistente para ajudar com um problema feminino “delicado” acabava mansplainando tanto que era incapaz de captar o sentimento da usuária e suas necessidades depois de vários turnos da conversa.

Aí era hora de voltar pra prancheta. Quais termos essas pessoas usam quando se sentem vulneráveis, com vergonha ou querem uma ajuda anônima? Taí um segredo que não devia ser tão segredo assim: mergulhe no assunto, faça entrevistas presenciais, remotas. Se não der, pesquise o vocabulário que essas pessoas usam em fóruns. Se puder, pegue informação não estruturada de SACs, estruture intenções e entidades com umas ferramentas tipo o Natural Language Toolkit. E, se é pra ser anônimo, faça o favor, não chame pelo nome. Mesmo que você tenha esse dado e outras informações sensíveis.

Antes, nos tempos de roteirista e editor de ficção, eu chamava isso de imersão e introjeção. Esses dias, fazendo um mini-curso de Microtexto e UX Writing, achei um termo mais adequado para essa metodologia um tanto quanto artesanal que sempre tentei implementar, mas que quase nunca tinha liberdade para alocar tempo nos projetos: Mineração de Conversas. Trata-se de uma técnica que faz parte da Pesquisa em UX de Produtos. Se você se interessa sobre o assunto, vai lá neste link do curso (é uma amostra grátis em inglês) do Yuval Keshtcher, uma referência em UX Writing da minha bolha de leitura diária.

No fim, como esse texto já tá maior do que eu imaginava, vou fechar com uma referência mais genérica e universal sobre liberdade que não canso de citar. Fica minha despedida com a liberdade de ver os outros, do David Foster Wallace.

“ A liberdade de sermos senhores de reinos minúsculos, do tamanho dos nossos crânios, sozinhos no centro de toda a criação. Esse tipo de liberdade tem seus méritos. Mas é óbvio que há liberdades dos mais variados tipos, e no vasto mundo lá de fora, onde o que importa é vencer, conquistar e se exibir, vocês não ouvirão falar muito do tipo mais precioso de todos. O tipo realmente importante de liberdade requer atenção, consciência, disciplina, esforço e a capacidade de se importar genuinamente com os outros e de se sacrificar por eles inúmeras vezes, todos os dias, numa miríade de formas corriqueiras e pouco excitantes.”

Se essa conversa deixou você pensando em como lidar com empatia e liberdade em seus projetos, fico bem feliz. Esse artigo é o primeiro de uma série que trata sobre os mais de 10 chatbots que desenhei em 2018. Um deles é o RocBot, um meta-robô tagarela que nasceu pra fazer um workshop sobre robôs tagarelas. Ah, e você pode ler o segundo texto da série sobre robôs por aqui. Até a próxima 👋.

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