O Processo

Anna Vitória Rocha
11 min readApr 2, 2018

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Todo mundo adora uma história de sucesso, principalmente quando ela se parece com uma jornada de herói. Gostamos de histórias de prodígios e não resistimos a um caso de quem enfrentou um monte de adversidades para chegar . A internet, esse país habitado por ex-crianças prodígio que desperdiçaram seus potenciais fazendo um monte de coisa que não dá dinheiro, gosta especialmente de compartilhar histórias de quem demorou pra chegar lá — afinal, precisamos acreditar que nem tudo está perdido, não ainda. Alfredo Volpi teve sua primeira exposição aos 48. Saramago virou escritor aos 50. O primeiro milagre de Jesus, dizem, só aconteceu depois dos 30 (obrigada pela inspiração, Babi).

Eu adoro quem perde o foco e usa a história do Van Gogh como motivação, já que o talento dele só foi reconhecido depois da sua morte. Ou seja, pobre Vincent morreu sem reconhecimento, sem uma orelha, sustentado pelo irmão, psicótico, deprimido e guardando um possível amor reprimido e complicado por seu colega Gauguin. Se fosse o Van Gogh eu voltaria pra assombrar todos os empreendedores que usam essa história nas suas palestras motivacionais, porque que puta morte horrível, com todo o respeito.

Resultados de uma busca rápida no Google por “sucesso depois dos 30”

Não quero discutir aqui o que é sucesso, ou como as nossas expectativas de sucesso são cagadas e equivocadas, ou como somos muito mais que nossos trabalhos e o que a sociedade espera de nós, ou sobre como, talvez, esse chegar lá não exista de verdade porque a condição humana é esse eterno esforço de preencher o vazio com empregos, curtidas, vestidos de noiva, vídeos de cachorro no Instagram e cortes de cabelo. Todo mundo aqui entende o que é sucesso de acordo com o senso comum e é sobre ele que estou falando, aquele que, por mais simplista e burguês que seja, ainda nos incomoda naqueles segundos antes de dormir. Meu problema com as grandes jornadas heroicas rumo ao sucesso é que elas só são contadas e só fazem tanto sucesso (tumdumtss) por conta do final feliz. Mesmo a história deprimente do Van Gogh tem lá seu apelo porque ele pode até ter morrido sem reconhecimento, mas hoje todo mundo conhece A Noite Estrelada e isso tem que valer alguma coisa.

Sinto que falamos muito pouco sobre o processo de chegar lá antes de ele ser validado por um feito extraordinário. A gente fala pouco sobre isso porque o Processo é HORRÍVEL, não é nada sexy ou inspirador. O Processo é quando você não sabe o que vai acontecer ou se aquilo vai dar certo, mas continua fazendo mesmo se sentindo uma idiota. O Processo é aquela parte que a gente tem vergonha de contar para os outros e as pessoas só ficam sabendo depois que passou — e deu tudo certo. Todo mundo adora a história (aparentemente falsa) de como o Steve Jobs e Steve Wozniak começaram a Apple e construíram o primeiro computador pessoal do mundo numa garagem, mas a gente costuma pular a parte da lenda em que o menino Steve Jobs vai lá e pede pra usar a garagem dos pais e recebe de volta aquele olhar meio preocupado de pais que provavelmente estão pensando que vão passar o resto da vida sustentando um filho lunático de sonhos ambiciosos que usa gola rulê na Califórnia. “Não sai desse computador e trabalhar que é bom nada”, eles diriam se o computador existisse. Esse é o Processo.

Se tivesse uma trilha sonora, Processo seria embalado por “The Sexy Getting Ready Song”

Costumo dizer que não compartilho certas coisas antes de elas se concretizarem por medo de zica, mau-olhado ou sei lá o que, e acredito de verdade nisso, mas depois de ler Brené Brown e o seu A Coragem de Ser Imperfeito esse ano fiquei pensando sobre o quanto dessas superstições não é, na verdade, o medo de um fracasso público. Ano passado escrevi aqui sobre como a felicidade nos coloca numa posição vulnerável que exige coragem, porque se permitir acreditar e desfrutar da felicidade é acreditar merecer aquela coisinha boa, é correr o risco de levar um tombo e se machucar depois, e tudo isso é assustador. O mesmo acontece no Processo: tenho medo de ter que assumir que meus planos não deram certo; tenho medo de me acharem ridícula por acreditar nos meus sonhos (fico constrangida até por escrever a palavra SONHOS, como se essa fosse uma licença poética permitida só até os 18 anos), tenho medo quando imagino as pessoas pensando com elas mesmas que eu sou muito bobinha e deveria largar essas bobagens e arranjar um emprego de verdade. Tenho medo da incerteza, do estranhamento e de tudo que existe fora da minha zona de conforto.

No fim do ano passado eu não passei no mestrado que queria muito e esse ano comecei a frequentar uma disciplina do programa como aluna especial. Em São Paulo. Isso significa que agora levo uma vida nômade, oficialmente quebrada entre duas cidades como sempre imaginei que aconteceria, e nas duas últimas semanas já viajei cerca de 2500 quilômetros acumulando um conhecimento enciclopédico que não recomendo a ninguém de banheiros de estrada e cafés ruins de rodoviária. Isso só é possível graças a um enorme privilégio, um emprego flexível e uma rede de apoio estrutural e emocional com a qual posso contar, o que faz dessa aventura um experimento com riscos calculadíssimos ao ponto de torná-la ridícula, mas que nem assim amortece o peso do Processo. É difícil explicar para as pessoas o que eu estou fazendo aqui ou o que eu estou fazendo lá e por que todo esse sacrifício quando todo mundo sabe que é praticamente impossível viver de pesquisa, ou escrita, ou os dois, no Brasil.

Semana passada, no meio da noite em algum lugar entre Uberlândia e São Paulo, comecei a chorar pensando nisso, que é o que acontece mais ou menos todas as vezes que em que paro e me pergunto o que estou fazendo da minha vida. O Processo é horrível.

Meu passatempo favorito nessas idas e vindas tem sido ouvir o audiobook de A Arte de Pedir, livro da Amanda Palmer — que descobri ser uma excelente narradora, principalmente quando resolve imitar o Neil Gaiman. Amanda Palmer fundou sua primeira banda, o The Dresden Dolls, aos 25 anos e lançou o primeiro disco por uma grande gravadora aos 28, uma idade geriátrica para se iniciar uma carreira na indústria fonográfica tradicional, como ela diz. Antes disso ela trabalhou como garçonete e stripper e depois da faculdade trabalhou por anos como estátua viva numa praça em Boston, vestida de noiva em cima de um engradado de leite, entregando flores para quem passava.

Ela escreve que às vezes se dava conta daquela situação e se sentia completamente maluca.

O puro absurdo da coisa não me passou despercebido.
‘Você está pintada de branco e de pé numa caixa.’
‘Você está pintada de branco e de pé numa caixa.’
‘Você está pintada de branco e E DE PÉ NUMA CAIXA.’
‘Quanta merda na cabeça.’

Contei essa história para a minha terapeuta e ela disse: “Se arriscar é tão difícil que você acabou de comparar sua situação a ser uma estátua viva vestida de noiva no meio da praça”, e sim, é exatamente isso. Desde que saí da faculdade sinto que todos os dias subo numa caixa usando um vestido de noiva e espero as pessoas passarem e aceitarem a minha flor.

Foi quando li o livro da Amanda Palmer pela primeira vez que fui apresentada formalmente ao termo Síndrome do Impostor, que no livro ela chama de Patrulha da Fraude. Gosto mais dele porque remete a essa convenção de vozes na nossa cabeça sussurrando — às vezes gritando — que não fazemos ideia do que estamos fazendo e que todo mundo vai nos descobrir (Rachel Bloom, rainha da sinceridade e da inadequação, traduziu isso perfeitamente em “Press Conference”). Acho que esse é um sentimento muito comum porque falar sobre o Processo não é muito bem visto socialmente. Fazemos parte da cultura do fake it until you make it — uma estratégia da qual sou orgulhosamente adepta — e não dá pra chegar num emprego novo dizendo isso, mas, aqui entre nós, sinto falta dessas histórias e acho que elas ajudariam todo mundo a se sentir mais real. Não precisamos ter medo de sermos descobertos quando somos sinceros e compartilhamos o quanto estamos tentando. Não estamos todos?

Amanda Palmer escreve que quando se é artista é preciso inventar a própria varinha mágica da validação, já que as trajetórias, hierarquias e expectativas convencionais não condizem com essa realidade. “Ninguém te diz como ou bate com a varinha mágica da legitimidade. É você que bate na própria cabeça com uma varinha que você mesmo fez. E você se sente um idiota ao fazer isso.”. Quanto mais leio sobre esses meus temas cafonas e converso com as pessoas, mais eu acredito que esses sentimentos de insegurança e medo da vulnerabilidade são universais. Acho que independente da carreira ou projeto de vida, o Processo de todo mundo consiste em confeccionar essa varinha e bater com ela insistentemente na própria cabeça. E se sentir idiota o tempo inteiro.

Minha história de sucesso tardio favorita é a da Amy Poehler e não é só porque ela trabalhou anos como garçonete e fazendo pequenos shows de improvisação com os amigos até ser contratada pelo Saturday Night Live em 2001, aos 30 anos. No seu livro, Yes Please, ela conta que o que a fez finalmente ir pra Nova York tentar fazer a carreira de atriz e comediante vingar pra valer foi perceber que estava ficando boa demais num trabalho que não era a grande paixão da sua vida, e que se ela continuasse ali talvez essa paixão fosse engolida num caminho sem volta.

Gosto da história da Amy Poehler porque ela não esconde e não tem vergonha de ser uma pessoa que tenta num mundo em que tentar demais é cafona. O Processo é sobre tentar. O prefácio do livro tem como título “Writing is Hard” e nele ela fala sobre o desafio de escrever aquele livro e faz um excelente trabalho em desromantizar o trabalho do escritor (algo que o Hank Green também fez numa thread ótima no Twitter), que é difícil e chato e às vezes é ótimo, mas na maioria delas não é.

Escrevi esse livro depois que meus filhos foram dormir. Escrevi esse livro no metrô, no avião e entre arranjos enquanto gravava uma série de TV. Escrevi esse livro através de pensamentos rascunhados nas notas do meu celular e por conversas que tive comigo mesma antes de dormir. Escrevi de um jeito feio e fragmentado. (…) Nesse momento estou tentando escrever esse prefácio no escuro enquanto meu filho mais velho, Archie, dorme do meu lado. Ele está sonhando e falando, e estou diminuindo a luz da tela enquanto escrevo sobre como é difícil escrever. Escrever um livro é horrível. É solitário, mesmo com Archie do meu lado e meus editores me cobrando. (…) Muitos autores comparam a dificuldade de escrever a algo poderoso e masculino, como uma luta ou um urso. Escrever um livro não é nada disso. É um pequeno e lento rastejar até a linha de chegada. — Tradução minha

Me sinto validada por essas histórias porque escrever pra mim é muito parecido e de repente sinto menos vergonha quando lembro do meu estado às duas da manhã num dia de semana, ainda sem tomar banho, farelos de bolacha espalhados na cama e tudo isso pra algo que nem vai me dar dinheiro. Comecei a escrever essa newsletter eram três da tarde e agora são 20h36 e ainda não sei qual a conclusão do texto. Durante esse tempo eu andei pela casa, rolei no chão com meu cachorro, li pedaços dos livros da Amy Poehler e da Amanda Palmer, menti que estava trabalhando, assisti a vários vídeos de Crazy Ex-Girlfriend e tomei duas xícaras de café. Costumava achar que esse meu ritual era sinal de preguiça, lentidão, falta de foco e disciplina, e tudo bem que eu poderia, sim, ser um pouquinho mais eficiente, mas desde que ouvi uma entrevista da Greta Gerwig sobre o assunto tenho aprendido a olhar tudo isso com mais carinho, porque é parte do Processo.

Li Yes Please no início de 2016 e escrevi sobre ele no meu finado blog. O Alexandre Inagaki resgatou o post indicando-o na sua newsletter recentemente, e reler as palavras da Amy, e as minhas palavras sobre as palavras dela, era bem o que eu precisava nesse momento. Com licença que agora irei citar a minha própria pessoa:

Aprendi com a Amy de que carreira, trabalho e criatividade são coisas diferentes. Ela fala que a carreira é sempre como um péssimo namorado que não se importa com nossos sentimentos, não quer nos apresentar para a família e nunca perde a oportunidade de flertar com outras pessoas. Já a criatividade é como uma senhorinha de risada gostosa que adora abraçar, e é a ela que devemos servir. Porque a criatividade nos guia, nos dá alegria e nos preenche. A criatividade é algo que ninguém pode tirar de nós e ela que tem que ser o centro. Porque a carreira não está nem aí, e a gente pode fazer como ela e também dormir com outras pessoas, mas é a nossa criatividade e nossas paixões que vão fazer essas experiências penosas de contatos, favores, sapos e sorrisos forçados valer alguma coisa.

Mesmo que escrever seja horrível, sigo em frente porque sei que fico muito feliz e satisfeita quando termino, como se glitter tivesse explodindo dentro de mim, e é então que entendo por que me submeto a isso. Mesmo agora existe uma parte de mim que está adorando essa bagunça toda. É mais ou menos como me sinto sobre essa vida dupla paulistana: às vezes choro dentro dos ônibus, mas adoro chegar na cidade com minha mochila listrada e minha malinha vermelha sentindo que estou Indo a Lugares. Sei que vou sentir falta disso um dia. Amo estar com pessoas muito mais inteligentes que eu, mas que são generosas demais na hora de dividir o que sabem — algo que sei que é raro na academia, o que me deixa com uma sensação ainda maior que estou onde deveria estar. Isso só é possível graças ao emprego que nem sempre eu amo, então nos dias difíceis eu lembro disso, tampo o nariz e sigo em frente. Adoro os textos complicados de filosofia que estou lendo, amo poder estar numa sala com pessoas que estudam coisas que por muito tempo estudei por conta própria no meu quarto me perguntando se aquelas ideias faziam sentido fora da minha cabeça. Isso é meu abraço de vó.

As pessoas não gostam das histórias de sucesso, elas gostam do sucesso, porque a história está no Processo e eu tendo a gostar de histórias. Então resolvi fazer a minha parte e contar a minha aqui. Sigo batendo todos os dias com a varinha mágica da validação na minha cabeça, às vezes várias vezes por dia, mas tenho seguido.

Como é a varinha mágica de vocês? Alguém me passa o papel crepom cor-de-rosa?

Texto publicado originalmente na newsletter No Recreio.

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