Um Protocolo Para Morrer
por Pieter Hintjens
Tradução do artigo original escrito no blog de Pieter Hintjens
Hora do meu último artigo. Eu provavelmente poderia escrever mais, ainda assim há tempo para tudo e depois disso, minha atenção estará focada na posição mais confortável em minha cama, na hora dos analgésicos, e nas pessoas ao meu redor.
Ontem eu tive doze visitantes, incluindo meus adoráveis filhos pequenos. Você poderia até pensar que é cansativo, ainda assim, o fluxo constante de amigos e da família foi como estar em um luxuoso banho quente com um suprimento infinito de água fresca.
Eu costumava ser um jovem desconectado e solitário. Um pouco autista talvez. Eu só pensava em trabalho, natação, meus gatos de estimação e trabalho. A noção de que as pessoas pudessem desfrutar minha companhia era algo estranho para mim. Pelo menos o meu trabalho eu sentia que tinha valor. Ajudei a desenvolver geradores em Cobol. Eu criei um editor de códigos que a equipe adorou pois funcionou elegantemente e rodou em todas as plataformas. Eu aprendi sozinho C e Assembler 8086 e desenvolvi aplicativos “shareware”. A decáda de 90 aconteceu lentamente.
Ao longo do tempo eu aprendi que se você conversar com um estranho, durante qualquer tipo de interação (como comprar um cachorro-quente ou no supermercado) eles conversarão com você com prazer. Lentamente, como um vício assustador, isto se tornou minha droga preferida.
Então isso se tornou a base, e então o objetivo do meu trabalho: ir para lugares estranhos e conhecer novas pessoas. Eu adoro as conferências porque você não precisa de uma desculpa. Todo mundo quer, e espera, conversar. Eu dificilmente converso sobre questões técnicas. Leia o código, se é isso que você procura.
E assim estou orgulhoso do meu real trabalho, que tenho feito durante decádas, que tem sido falar com as pessoas, ouvi-las e trocar conhecimentos, e depois sintetizar estas idéias e compartilhá-las com outros. Milhares de conversas em toda a Europa, América, África, Ásia. Serei creditado de várias formas pelas pessoas por ser criativo, brilhante etc. No entanto, os modelos e teorias que eu reformulei e documentei são consistentemente inspirados por experiências reais com outras pessoas.
Obrigado, meus amigos, por isso. Quando eu digo “Eu te amo” não é apenas um gesto qualquer. Vocês me mantiveram alimentado, profissionalmente e intelectualmente.
Então eu queria documentar um último modelo, que é como morrer, dado algum conhecimento de antemão e tempo. Eu não vou escrever um RFC dessa vez. :)
Como aconteceu
Técnicamente, eu tenho metástase de câncer de via biliar, nos dois pulmões. Desde fevereiro eu tenho esta tosse seca, e tenho me sentido cada vez mais cansado e sem conseguir foco no trabalho. Em março meu pai morreu e nós corremos para lidar com isso. Minha tosse ficou em segundo plano. Em 8 de abril, eu fui a minha oncologista para falar que eu não estava nem um pouco bem. Ela pediu uma tomografia e testes de sangue.
Em 13 de Abril, uma broncoscopia horrível e biópsias. Em 15 de Abril, um PET scan. Em 16 de Abril eu deveria estar dirigindo para Eindhoven para um Keynote na NextBuild. Em vez disso eu fui para a sala de emergência com dores explosivas no local onde fizeram as biópsias. Dei entrada e fui colocado para tomar antibióticos, que aliviaram a dor, e em 18 de Abril meu oncologista confirmou que era câncer. Ainda estou aqui, e meus médicos estão decidindo qual quimio irão tentar em mim. É um tipo raro de cancer na Europa e existe pouca informação consistente a respeito.
O que realmente sabemos é que esse cholangiocarcinoma não responde bem a quimioterapia. Depois, que meu cancer é agressivo e cresce rapidamente. Terceiro, eu já tinha alguns aglomerados em outras partes do meu corpo. Todas essas eram informações claras e consistentes.
Então, naquele dia eu contei ao mundo sobre isso, e preparei-me para morrer.
Falando com uma pessoa que está morrendo
Pode ser terrivelmente embaraçoso conversar com uma pessoa que está prestes a morrer (vamos chamá-lo de Bob). Aqui estão as principais coisas que a outra pessoa (vamos chamá-la de Alice) não deveria dizer a Bob:
* “Aguente firme! Você tem que ter esperança, você precisa lutar!” É seguro afirmar que esse Bob está lutando com todas as suas forças. E se não, essa é uma escolha inteiramente do Bob.
* “Isso é tão trágico, estou tão triste, por favor não morra!” Que foi o que minha filha falou para mim uma vez. Eu expliquei com cuidado que você não pode discutir com fatos. A morte não era uma opinião. Ficar zangado ou triste com fatos é uma perda de tempo.
* “Você pode vencer isso! Nunca se sabe!” Que foi a Alice expressando sua esperança. Falsas esperanças não são um remédio. Uma boa droga da quimioterapia, ou um analgésico relaxante, isso é remédio.
* “Há uma cura alternativa que as pessoas estão falando,” Que recebe o martelo de banimento de mim, e felizmente eu só recebi poucas desse tipo. Mesmo que houvesse uma cura miraculosa, o custo e o stress (para os outros) de buscá-la é um ato tão egoísta e desproporcional. E como sabemos, com chances de sucesso do nível de loterias. Nós vivemos, nós morremos.
* “Leia esta capítulo da Bíblia, irá lhe ajudar”. O que é tanto rude quanto ofensivo, como também um pouco tosco e arrogante. Se Bob quisesse ajuda religiosa ele falaria com seu pastor ou padre. Caso contrário, simplesmente não entre no assunto. É outra ofensa digna do martelo de banimento.
* Ocupar-se em perguntas banais. Isto é passivo-predatório, pedir ao Bob para responder repetidamente a coisas bobas como “eu acordei você?” Bob muito provavelmente não está a fim conversa-fiada. Ele ou quer as pessoas perto dele, fisicamente, ou coisas interessantes (veja abaixo).
Acima de tudo, não ligue e depois chore no telefone. Se você sentir que está preste a chorar, desligue o telefone, espere dez minutos, e depois ligue novamente. Lágrimas são compreensíveis, porém para o Bob, a ameaça de auto-piedade assusta mais que qualquer coisa. Eu aprendi a controlar minhas emoções, ainda assim a maioria dos Bobs estarão vulneráveis.
Aqui estão algumas coisas que Alice pode falar que fará Bob ficar feliz:
* Histórias de aventuras antigas que tiveram juntos. Lembra aquela vez? Oh menino, sim eu me lembro… foi incrível!
* Detalhes clínicos. Bob, preso em sua cama, está provavelmente obcecado pelos rituais de cuidados, a equipe médica, as medicações, e sobretudo pela sua doença. (Falarei sobre o dever de compartilhamento de Bob em breve)
* Ajudando Bob nos detalhes técnicos. Organizar-se para sair da vida é complexo e precisa de muitas mãos e mentes.
* “Eu comprei o seu livro” assumindo que Bob é um autor como eu. Pode ser apenas bajulação, ou sinceridade, de qualquer forma vai faze-lo sorrir.
Acima de tudo, não expresse outra emoção além de felicidade, não dê a Bob novas coisas para lidar.
Os deveres de Bob
Não é tudo trabalho da Alice. Bob também tem obrigações neste protocolo. Elas são, pelo menos:
* Seja Feliz. Isso pode parecer banal mas ainda é essencial. Se você ficar sombrio e deprimido, Alice ficará miserável todas as vezes que ela falar com você.
* Obviamente, coloque seus assuntos em ordem. Estive esperando a morte durante anos, então eu passei a tornar-me descartável o quanto eu pude. Para com a família isso não é possível, mas com o trabalho é sim, e ao longo dos anos eu (voluntariamente) fui deixando de ser um membro fundamental da comunidade ZeroMQ.
* Livre-se de todo o stress e custo que você puder. Por exemplo na Bélgica a eutanásia é permitida. Eu já pedi aos meus médicos para se prepararem para isso. (ainda não! mas quando for a hora …) Pedi que as pessoas venham dizer adeus antes de eu morrer, e não depois. Não haverá funeral. Eu vou doar meus restos para a universidade, se eles quiserem.
* Seja realista. Esperança não é medicina, como eu já expliquei. Se você precisar negociar com seus médicos, faça de forma pragmática e abrangendo os interesses de todos. Eu disse aos meus que podem usar qualquer tipo de quimioterapia experimental que desejarem. Isto dará informações valiosas para eles e é o minímo que posso fazer por um sistema que me deu 5 anos a mais de vida extra.
* Prepare-se para o pior. Quando meu oncologista viu meu scan imediatamente me ligou e disse que, na sua opinião, era câncer. Nos dois pulmões, em todas as partes. Eu desliguei o telefone e contei para as crianças. No dia seguinte eu disse a suas escolas para esperar o pior, então contei a meu advogado e meu contador. Dez dias mais tarde as biópsias confirmaram. Isso nos deu dez dias a mais para lamentar e tempo para se preparar.
* Seja honesto e transparente com os outros. Leva tempo para passar o luto e é muito mais fácil de processar a morte de Bob quando você pode falar sobre isso com o Bob. Não há vergonha em morrer, isto não é uma falha!
Explicando para as crianças
Meus filhos tem doze, nove e cinco anos. Trágico, etc. etc. Crescer sem um pai, é um fato. Eles crescerão comigo em seu DNA, no Youtube em infindáveis palestras de conferência, a na escrita.
Eu expliquei isso para eles lentamente, e muitas vezes ao longo dos anos, como nesta. Um dia, eu vou partir. Pode ser daqui a muito tempo, pode ser em breve. Todos nós morremos, sim, até você pequeno Gregor. É parte da vida.
Imagine que você tem uma caixa de Lego, e construiu uma casa, e você a guarda. E você continua construindo novas e nunca destruíndo as antigas. O que acontece? “A caixa fica vazia, papai.” Bom, sim. E você fazer novas casas então? “Não, não mesmo.” Então nós somos como casas feitas de Lego, e quando nós morremos nossos pedaços são separados e colocados de volta na caixa. Nós morremos, e novos bebês podem nascer. É o ciclo da vida.
Mas, geralmente, eu acho que ver o pai deles feliz e relaxado (não devido aos analgésicos), e se despedir ao longo de semanas parece correto. Eu sou tão grato de não ter morrido subitamente. Eu sou tão grato que não vou perder minha cabeça.
E eu ensinei meus filhos a nadar, andar de bicicleta, skate e atirar. A desenhar, viajar e acampar. A usar a tecnologia sem medo. Aos três anos, Gregor estava no Minecraft, teclado na mão esquerda e mouse na direita. Aos sete, Noemi aprendeu a atirar com uma pistola. Eles falam várias línguas. Eles são confiantes e aprendem rápido, como seu pai.
E todos precisam aprender o que significa morrer. É uma parte fundalmente de ser um ser humano completo, o abraço da sua mortalidade. Nós lutamos para viver, é claro. E quando tudo acaba, nós abraçamos o fim. Eu estou feliz que eu posso ensinar essa lição para meus filhos, uma liçào que eu nunca tive.
Eutanásia
Eu estou, finalmente, tão feliz que nunca abandonei a Bélgica. Este país permite a morte sob demanda, para pacientes que são terminais ou tem uma qualidade de vida muito ruim. Exige três médicos e um psiquiatra, no segundo caso, e um período quatro semanas de espera. No primeiro caso, é necessário apenas a opinião de um médico.
Meu pai escolheu isso, e morreu em uma terça de páscoa. Vários de nós da sua família estávamos com ele. É um processo simples e tranquilo. Uma injeção o fez dormir, em um coma. A segunda parou seu coração. Era um bom jeito de morrer, e apesar de não saber que eu estava doente naquela época, isto era algo que eu já desejava.
Eu fico chocado que em 2016 poucos países permitem isso, e forçam a tortura bárbara de decadência e fracasso. Isso é especialmente relevante para o câncer, que é uma causa primária de morte. Encontre na sua própria jurisdição, se ela proíbe a eutanásia, para fazer lobby em favor do direito de morrer com dignidade.
Meus sentimentos sobre tudo isto
Eu nunca fui uma pessoa medrosa. Meu último contato com a morte me deixou tão descuidado sobre todo o conceito de risco profissional e social que eu me tornei o personagem depredatório que o Allen Ding descreve tão bem. Isso se acalmou depois que nosso projeto de Game of Thrones acabou. Nunca foi realmente eu, apenas a pessoa que me tornei para fazer as coisas acontecerem, naquele lugar e ocasião.
Tendo tido anos para me preparar para isto, e tendo visto um grande número de planos delicados se unindo ao longo dos anos, me deixa profundamente satisfeito. Desde 2011 eu me tornei um especialista em tiro de pistola, aprendi a tocar piano (e compus várias pequenas peças), vi meus filhos se transformarem em pessoas feliz de caráter efervescente, escrevi três livros, aconselhei a comunidade do ZeroMQ para ter uma serena auto-confiança. O que mais um Bob poderia pedir?
A equipe aqui é adorável. Eu não tenho queixas, apenas gratidão a todos meus amigos pelos anos de alegria que vocês me deram, minha droga, que me mantiveram vivo e guiado.
Obrigado! :)
Pensem nas crianças
Por favor, usem este artigo para adicionar suas histórias. Se você as tem em outro lugar, ou você me enviou via e-mail, copiei e cole como um comentário. Sinta-se a vontade para escrever em holandês ou francês se essa for sua língua. Eu adoraria ter um único lugar onde meus filhos possam vir e ler sobre o que outras pessoas falam sobre seu pai.
Muitas pessoas me pediram meu endereço do PayPal ph@imatix.com, para enviar uma o doação para meus filhos.
Obituários em vida.
Obrigado as seguintes pessoas pelos seus artigos: Ewen McNeill, Allen Ding, Meredith L. Patterson, Sylan Beattie, Jef Claes, Josh Long.
Artigo original: http://hintjens.com/blog:115
Traduzido por:
Onilton Maciel @oniltonmaciel
Bruno Rocha @rochacbruno
Diego Ponciano @diegoponci