Um Protocolo Para Morrer

por Pieter Hintjens

Bruno Cezar Rocha
9 min readApr 29, 2016

Tradução do artigo original escrito no blog de Pieter Hintjens

Hora do meu último artigo. Eu provavelmente poderia escrever mais, ainda assim há tempo para tudo e depois disso, minha atenção estará focada na posição mais confortável em minha cama, na hora dos analgésicos, e nas pessoas ao meu redor.

Ontem eu tive doze visitantes, incluindo meus adoráveis filhos pequenos. Você poderia até pensar que é cansativo, ainda assim, o fluxo constante de amigos e da família foi como estar em um luxuoso banho quente com um suprimento infinito de água fresca.

Eu costumava ser um jovem desconectado e solitário. Um pouco autista talvez. Eu só pensava em trabalho, natação, meus gatos de estimação e trabalho. A noção de que as pessoas pudessem desfrutar minha companhia era algo estranho para mim. Pelo menos o meu trabalho eu sentia que tinha valor. Ajudei a desenvolver geradores em Cobol. Eu criei um editor de códigos que a equipe adorou pois funcionou elegantemente e rodou em todas as plataformas. Eu aprendi sozinho C e Assembler 8086 e desenvolvi aplicativos “shareware”. A decáda de 90 aconteceu lentamente.

Ao longo do tempo eu aprendi que se você conversar com um estranho, durante qualquer tipo de interação (como comprar um cachorro-quente ou no supermercado) eles conversarão com você com prazer. Lentamente, como um vício assustador, isto se tornou minha droga preferida.

Então isso se tornou a base, e então o objetivo do meu trabalho: ir para lugares estranhos e conhecer novas pessoas. Eu adoro as conferências porque você não precisa de uma desculpa. Todo mundo quer, e espera, conversar. Eu dificilmente converso sobre questões técnicas. Leia o código, se é isso que você procura.

E assim estou orgulhoso do meu real trabalho, que tenho feito durante decádas, que tem sido falar com as pessoas, ouvi-las e trocar conhecimentos, e depois sintetizar estas idéias e compartilhá-las com outros. Milhares de conversas em toda a Europa, América, África, Ásia. Serei creditado de várias formas pelas pessoas por ser criativo, brilhante etc. No entanto, os modelos e teorias que eu reformulei e documentei são consistentemente inspirados por experiências reais com outras pessoas.

Obrigado, meus amigos, por isso. Quando eu digo “Eu te amo” não é apenas um gesto qualquer. Vocês me mantiveram alimentado, profissionalmente e intelectualmente.

Então eu queria documentar um último modelo, que é como morrer, dado algum conhecimento de antemão e tempo. Eu não vou escrever um RFC dessa vez. :)

Como aconteceu

Técnicamente, eu tenho metástase de câncer de via biliar, nos dois pulmões. Desde fevereiro eu tenho esta tosse seca, e tenho me sentido cada vez mais cansado e sem conseguir foco no trabalho. Em março meu pai morreu e nós corremos para lidar com isso. Minha tosse ficou em segundo plano. Em 8 de abril, eu fui a minha oncologista para falar que eu não estava nem um pouco bem. Ela pediu uma tomografia e testes de sangue.

Em 13 de Abril, uma broncoscopia horrível e biópsias. Em 15 de Abril, um PET scan. Em 16 de Abril eu deveria estar dirigindo para Eindhoven para um Keynote na NextBuild. Em vez disso eu fui para a sala de emergência com dores explosivas no local onde fizeram as biópsias. Dei entrada e fui colocado para tomar antibióticos, que aliviaram a dor, e em 18 de Abril meu oncologista confirmou que era câncer. Ainda estou aqui, e meus médicos estão decidindo qual quimio irão tentar em mim. É um tipo raro de cancer na Europa e existe pouca informação consistente a respeito.

O que realmente sabemos é que esse cholangiocarcinoma não responde bem a quimioterapia. Depois, que meu cancer é agressivo e cresce rapidamente. Terceiro, eu já tinha alguns aglomerados em outras partes do meu corpo. Todas essas eram informações claras e consistentes.

Então, naquele dia eu contei ao mundo sobre isso, e preparei-me para morrer.

Falando com uma pessoa que está morrendo

Pode ser terrivelmente embaraçoso conversar com uma pessoa que está prestes a morrer (vamos chamá-lo de Bob). Aqui estão as principais coisas que a outra pessoa (vamos chamá-la de Alice) não deveria dizer a Bob:

* “Aguente firme! Você tem que ter esperança, você precisa lutar!” É seguro afirmar que esse Bob está lutando com todas as suas forças. E se não, essa é uma escolha inteiramente do Bob.

* “Isso é tão trágico, estou tão triste, por favor não morra!” Que foi o que minha filha falou para mim uma vez. Eu expliquei com cuidado que você não pode discutir com fatos. A morte não era uma opinião. Ficar zangado ou triste com fatos é uma perda de tempo.

* “Você pode vencer isso! Nunca se sabe!” Que foi a Alice expressando sua esperança. Falsas esperanças não são um remédio. Uma boa droga da quimioterapia, ou um analgésico relaxante, isso é remédio.

* “Há uma cura alternativa que as pessoas estão falando,” Que recebe o martelo de banimento de mim, e felizmente eu só recebi poucas desse tipo. Mesmo que houvesse uma cura miraculosa, o custo e o stress (para os outros) de buscá-la é um ato tão egoísta e desproporcional. E como sabemos, com chances de sucesso do nível de loterias. Nós vivemos, nós morremos.

* “Leia esta capítulo da Bíblia, irá lhe ajudar”. O que é tanto rude quanto ofensivo, como também um pouco tosco e arrogante. Se Bob quisesse ajuda religiosa ele falaria com seu pastor ou padre. Caso contrário, simplesmente não entre no assunto. É outra ofensa digna do martelo de banimento.

* Ocupar-se em perguntas banais. Isto é passivo-predatório, pedir ao Bob para responder repetidamente a coisas bobas como “eu acordei você?” Bob muito provavelmente não está a fim conversa-fiada. Ele ou quer as pessoas perto dele, fisicamente, ou coisas interessantes (veja abaixo).

Acima de tudo, não ligue e depois chore no telefone. Se você sentir que está preste a chorar, desligue o telefone, espere dez minutos, e depois ligue novamente. Lágrimas são compreensíveis, porém para o Bob, a ameaça de auto-piedade assusta mais que qualquer coisa. Eu aprendi a controlar minhas emoções, ainda assim a maioria dos Bobs estarão vulneráveis.

Aqui estão algumas coisas que Alice pode falar que fará Bob ficar feliz:

* Histórias de aventuras antigas que tiveram juntos. Lembra aquela vez? Oh menino, sim eu me lembro… foi incrível!

* Detalhes clínicos. Bob, preso em sua cama, está provavelmente obcecado pelos rituais de cuidados, a equipe médica, as medicações, e sobretudo pela sua doença. (Falarei sobre o dever de compartilhamento de Bob em breve)

* Ajudando Bob nos detalhes técnicos. Organizar-se para sair da vida é complexo e precisa de muitas mãos e mentes.

* “Eu comprei o seu livro” assumindo que Bob é um autor como eu. Pode ser apenas bajulação, ou sinceridade, de qualquer forma vai faze-lo sorrir.

Acima de tudo, não expresse outra emoção além de felicidade, não dê a Bob novas coisas para lidar.

Os deveres de Bob

Não é tudo trabalho da Alice. Bob também tem obrigações neste protocolo. Elas são, pelo menos:

* Seja Feliz. Isso pode parecer banal mas ainda é essencial. Se você ficar sombrio e deprimido, Alice ficará miserável todas as vezes que ela falar com você.

* Obviamente, coloque seus assuntos em ordem. Estive esperando a morte durante anos, então eu passei a tornar-me descartável o quanto eu pude. Para com a família isso não é possível, mas com o trabalho é sim, e ao longo dos anos eu (voluntariamente) fui deixando de ser um membro fundamental da comunidade ZeroMQ.

* Livre-se de todo o stress e custo que você puder. Por exemplo na Bélgica a eutanásia é permitida. Eu já pedi aos meus médicos para se prepararem para isso. (ainda não! mas quando for a hora …) Pedi que as pessoas venham dizer adeus antes de eu morrer, e não depois. Não haverá funeral. Eu vou doar meus restos para a universidade, se eles quiserem.

* Seja realista. Esperança não é medicina, como eu já expliquei. Se você precisar negociar com seus médicos, faça de forma pragmática e abrangendo os interesses de todos. Eu disse aos meus que podem usar qualquer tipo de quimioterapia experimental que desejarem. Isto dará informações valiosas para eles e é o minímo que posso fazer por um sistema que me deu 5 anos a mais de vida extra.

* Prepare-se para o pior. Quando meu oncologista viu meu scan imediatamente me ligou e disse que, na sua opinião, era câncer. Nos dois pulmões, em todas as partes. Eu desliguei o telefone e contei para as crianças. No dia seguinte eu disse a suas escolas para esperar o pior, então contei a meu advogado e meu contador. Dez dias mais tarde as biópsias confirmaram. Isso nos deu dez dias a mais para lamentar e tempo para se preparar.

* Seja honesto e transparente com os outros. Leva tempo para passar o luto e é muito mais fácil de processar a morte de Bob quando você pode falar sobre isso com o Bob. Não há vergonha em morrer, isto não é uma falha!

Explicando para as crianças

Meus filhos tem doze, nove e cinco anos. Trágico, etc. etc. Crescer sem um pai, é um fato. Eles crescerão comigo em seu DNA, no Youtube em infindáveis palestras de conferência, a na escrita.

Eu expliquei isso para eles lentamente, e muitas vezes ao longo dos anos, como nesta. Um dia, eu vou partir. Pode ser daqui a muito tempo, pode ser em breve. Todos nós morremos, sim, até você pequeno Gregor. É parte da vida.

Imagine que você tem uma caixa de Lego, e construiu uma casa, e você a guarda. E você continua construindo novas e nunca destruíndo as antigas. O que acontece? “A caixa fica vazia, papai.” Bom, sim. E você fazer novas casas então? “Não, não mesmo.” Então nós somos como casas feitas de Lego, e quando nós morremos nossos pedaços são separados e colocados de volta na caixa. Nós morremos, e novos bebês podem nascer. É o ciclo da vida.

Mas, geralmente, eu acho que ver o pai deles feliz e relaxado (não devido aos analgésicos), e se despedir ao longo de semanas parece correto. Eu sou tão grato de não ter morrido subitamente. Eu sou tão grato que não vou perder minha cabeça.

E eu ensinei meus filhos a nadar, andar de bicicleta, skate e atirar. A desenhar, viajar e acampar. A usar a tecnologia sem medo. Aos três anos, Gregor estava no Minecraft, teclado na mão esquerda e mouse na direita. Aos sete, Noemi aprendeu a atirar com uma pistola. Eles falam várias línguas. Eles são confiantes e aprendem rápido, como seu pai.

E todos precisam aprender o que significa morrer. É uma parte fundalmente de ser um ser humano completo, o abraço da sua mortalidade. Nós lutamos para viver, é claro. E quando tudo acaba, nós abraçamos o fim. Eu estou feliz que eu posso ensinar essa lição para meus filhos, uma liçào que eu nunca tive.

Eutanásia

Eu estou, finalmente, tão feliz que nunca abandonei a Bélgica. Este país permite a morte sob demanda, para pacientes que são terminais ou tem uma qualidade de vida muito ruim. Exige três médicos e um psiquiatra, no segundo caso, e um período quatro semanas de espera. No primeiro caso, é necessário apenas a opinião de um médico.

Meu pai escolheu isso, e morreu em uma terça de páscoa. Vários de nós da sua família estávamos com ele. É um processo simples e tranquilo. Uma injeção o fez dormir, em um coma. A segunda parou seu coração. Era um bom jeito de morrer, e apesar de não saber que eu estava doente naquela época, isto era algo que eu já desejava.

Eu fico chocado que em 2016 poucos países permitem isso, e forçam a tortura bárbara de decadência e fracasso. Isso é especialmente relevante para o câncer, que é uma causa primária de morte. Encontre na sua própria jurisdição, se ela proíbe a eutanásia, para fazer lobby em favor do direito de morrer com dignidade.

Meus sentimentos sobre tudo isto

Eu nunca fui uma pessoa medrosa. Meu último contato com a morte me deixou tão descuidado sobre todo o conceito de risco profissional e social que eu me tornei o personagem depredatório que o Allen Ding descreve tão bem. Isso se acalmou depois que nosso projeto de Game of Thrones acabou. Nunca foi realmente eu, apenas a pessoa que me tornei para fazer as coisas acontecerem, naquele lugar e ocasião.

Tendo tido anos para me preparar para isto, e tendo visto um grande número de planos delicados se unindo ao longo dos anos, me deixa profundamente satisfeito. Desde 2011 eu me tornei um especialista em tiro de pistola, aprendi a tocar piano (e compus várias pequenas peças), vi meus filhos se transformarem em pessoas feliz de caráter efervescente, escrevi três livros, aconselhei a comunidade do ZeroMQ para ter uma serena auto-confiança. O que mais um Bob poderia pedir?

A equipe aqui é adorável. Eu não tenho queixas, apenas gratidão a todos meus amigos pelos anos de alegria que vocês me deram, minha droga, que me mantiveram vivo e guiado.

Obrigado! :)

Pensem nas crianças

Por favor, usem este artigo para adicionar suas histórias. Se você as tem em outro lugar, ou você me enviou via e-mail, copiei e cole como um comentário. Sinta-se a vontade para escrever em holandês ou francês se essa for sua língua. Eu adoraria ter um único lugar onde meus filhos possam vir e ler sobre o que outras pessoas falam sobre seu pai.

Muitas pessoas me pediram meu endereço do PayPal ph@imatix.com, para enviar uma o doação para meus filhos.

Obituários em vida.

Obrigado as seguintes pessoas pelos seus artigos: Ewen McNeill, Allen Ding, Meredith L. Patterson, Sylan Beattie, Jef Claes, Josh Long.

Artigo original: http://hintjens.com/blog:115
Traduzido por:
Onilton Maciel @oniltonmaciel
Bruno Rocha @rochacbruno
Diego Ponciano @diegoponci

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Bruno Cezar Rocha

I am a Software Engineer from São Paulo, Brazil. I currently work with Quality Engineering and Test Automation at Red Hat. More on http://about.me/rochacbruno