O Poder da Imagem: Síndrome de Caim (1992)

Forma e conteúdo se mesclam num dos mais subestimados filmes de Brian DePalma

Fábio Luis Rockenbach
11 min readJun 15, 2016
Alusões, auto-referência e metalinguagem narrativa constróem um grande e pouco reconhecido retorno de DePalma ao universo do suspense hitchcockiano.

Aviso do autor: a análise abaixo contém spoilers importantes, porém necessários para discutir o filme com profundidade.

Foram oito anos entre o céu e o inferno para DePalma após Dublê de Corpo. Nesse tempo, o cineasta comandou quatro filmes, dois deles muito aquém do mais simples projeto de sua filmografia, e dois que mostraram que, mesmo saindo do suspense com raízes hitchcockianas responsável por construir as melhores obras de sua carreira, DePalma era um diretor de possibilidades criativas suficientes para abraçar filmes de gênero sem se render aos paradigmas do ramo.

Foi assim com Os Intocáveis e Pecados de Guerra, argumentos facilmente enquadrados em gêneros reconhecíveis, mas construídos sob a aura de um autor com soluções formais muito bem planejadas. O problema, mesmo, foi a queda do cineasta em 1990 com A Fogueira das Vaidades, um desastre cinematográfico em que DePalma não assinou apenas a direção, mas também a produção, o que coloca sobre as costas do diretor todo o peso do fracasso. Mais do que uma encomenda, o filme foi uma obra com sua assinatura. Uma assinatura torta.

Malhado pela crítica, DePalma fez o que qualquer animal ferido faria: voltou para casa. Roteirizou e dirigiu Síndrome de Caim (Raising Cain), recuperando temas, obsessões, referências e soluções visuais e narrativas já vistas anteriormente em seus melhores filmes de suspense, de Trágica Obsessão a Dublê de Corpo e Vestida para Matar.

No entanto, nada disso foi o suficiente para salvar o filme de uma enxurrada de críticas negativas e, pior, de ser ignorado pelo público. Ainda hoje, inclusive, há quem jogue o filme na vala comum dos piores da carreira do diretor. Uma pena. Síndrome de Caim pode pecar ao cutucar com vara curta a verossimilhança em alguns instantes, mas apresenta interessantes elementos que não apenas adicionam novidades ao repertório de DePalma como reforçam que, felizmente, ele não esqueceu o talento em alguma limusine de seu filme anterior. Mesmo sem se colocar entre suas obras-primas setentistas e oitentistas, é um filme incompreendido e uma revisão, muitas vezes, faz bem a quem o subestimava.

Assim como Hitchcock e o próprio DePalma anteriormente, o tema dos transtornos e das obsessões psicológicas surge na trama, que fala sobre um homem perturbado por múltiplas personalidades e que é encarnado brilhantemente por John Lithgow. Delírios, sonhos, realidade, novos pesadelos… A primeira metade do filme surpreende — talvez de maneira negativa ao espectador desacostumado — assim como a própria cena inicial surpreende ao jogar, na frente do público, Caim, a personalidade sombria de Carter.

A trama sobre o passado do personagem — um sequestrador de crianças e assassino de mães/babás escondido na aparentemente pacata vida do psicólogo infantil Carter — surge de forma natural no roteiro do próprio DePalma. No entanto, demonstrando uma aparente falta de coragem, ou desconfiança após as recepções mornas de seus últimos filmes, o diretor coloca uma personagem que tem como função explicar didaticamente tudo isso, disfarçando tal didatismo exagerado a partir de um plano-sequência.

Mas percebam que o próprio DePalma faz uma espécie de mea culpa, já que, de forma divertida, parece brincar com o recurso: assim como ele “guia” o espectador a compreender de que forma Carter é assolado por suas múltiplas personalidades criminosas, os policiais que acompanham a Dr. Waldheim a conduzem, constantemente, ao longo do caminho por onde a câmera, sem cortes, acompanha a movimentação. Talvez seja o plano-sequência mais irônico da carreira do diretor — ele parece saber que a cena está ali para evitar que o público se perca, e faz piada ao mesmo tempo que usa a forma para disfarçar.

A cena em que a Drª Walheim fala sobre o distúrbio tem problemas: além de, no momento em que ocorre, nada na investigação dos policiais conduzir à justificativa para tamanha atenção em cima das explicações, ela configura uma opção normalmente condenável narrativamente— a de colocar um personagem discorrendo detalhes da trama, fato que demonstra o medo do diretor/roteirista de que parte do público não compreenda os distúrbios do personagem, até então já suficientemente apresentados. Mas DePalma parece fazer um mea-culpa: primeiro, tenta chamar atenção para a forma ao realizar a cena como um plano-sequência de quatro minutos, e, no que parece ser um comentário irônico, ele coloca a doutora em vários momentos indo para o caminho errado e sendo trazida e conduzida pelos policiais. Quase uma metalinguagem para o que o próprio roteiro está fazendo.

Forma e conteúdo, aliás, estão unidos. A inconstância narrativa de DePalma, que a princípio parece um problema, pode muito bem ser percebida como uma espécie de metalinguagem narrativa, uma vez que, na primeira metade, o espectador é constantemente atordoado com uma série de sequências que alternam-se entre sonho e realidade, espelhando a própria confusão mental de seu protagonista. Assim como a história aborda a dificuldade de saber qual personalidade está no controle e o que é real ou imaginação, a montagem joga uma sucessão de sequências que nos engana, a ponto de, em certo momento, termos Caim agindo contra sua esposa e o espectador ainda permanecer em dúvida sobre ela estar tendo um sonho ou estar realmente sendo atacada.

Mas DePalma dá pistas sutis a respeito da grande surpresa do filme, a existência do pai de Carter/Caim: o diretor usa o ângulo holandês para representar o desequilíbrio representado pelo personagem. É cartilha cinematográfica: DePalma usa o ângulo quando o distúrbio é apresentado — na cena em que a psicóloga fala com os policiais — e já havia usado ele antes nas primeiras cenas em que Caim surge. Não é surpresa, então, que quando Caim conversa com o pai, nós o vejamos em um ângulo inclinado e o pai, embora representado por uma lente grande angular que o distorce levemente ao se aproximar, não é apresentado no mesmo ângulo. Ele não é fruto da imaginação, afinal.

Caim visto em ângulo holandês — acima — e o distúrbio, quando explicado, representado pelo mesmo ângulo — abaixo. Como DePalma usa a angulação para representar o desequilíbrio do personagem, já nos dá pistas sobre o pai ser real ou imaginário na cena em que ele aparece pela primeira vez — à direita.

A angulação, aliás, é usada de forma quase didática quando ele expõe o drama de Carter, ao ser preso, e sua conversa com Caim: a personalidade assassina surge em cima de um armário e é visto em contra-plongée, enfatizando sua superioridade sobre a personalidade fraca e assustada de Carter.

Continuamente, DePalma dialoga conosco expondo as características dúbias do personagem através dos enquadramentos: quando a Drª Waldheim aparece na delegacia para falar a respeito de Nix e vê Carter, filho do ex-colega, ela se assusta com a semelhança dele com o pai. Nesse instante, o que a câmera nos mostra é Carter, mas apenas parte dele — a outra parte está escondida atrás do marco da porta, uma representação de sua personalidade dividida.

Waldheim vê Carter de longe exatamente como ele, afinal, é: apenas uma parte

Como bom esteta, DePalma também usa o cenário para estabelecer sutis comentários a respeito de seu protagonista na cena em que a Drª Waldheim interroga Carter / Josh / Caim. Como todos sabemos, cada opção de posicionamento de câmera e estabelecimento da cenografia são opções criativas pensadas e planejadas. Não é à toa, portanto, que quando vemos Carter — que assume a personalidade de Josh antes de Caim aflorar — o vemos em frente a uma parede de tijolos de vidro que constroem a metáfora de uma prisão, exatamente aquilo que o personagem, de forma trágica, tem vivido ao longo de toda a sua vida, com tantas personalidades aprisionadas em sua mente. Scorsese traça um discurso semelhante em Ilha do Medo, na cena em que DiCaprio e Mark Ruffalo interrogam pacientes do sanatórioos pacientes são apresentados com cadeiras gradeadas próximo a elas e guardas ao fundo, enquanto quem não é paciente tem as cadeiras afastadas e não tem guardas ao fundo, numa dica sutil do diretor.

Carter e suas personalidades estão aprisionados em um mesmo corpo, como o próprio cenário atrás do personagem nos lembra durante a famosa cena do interrogatório.

É parte da mise-en-scène, também, antigas marcas autorais do diretor que foram pouco utilizadas em seu malfadado filme anterior, mas que ganham espaço e motivação para serem usados aqui. O uso das lentes de foco duplo, quando surge, o faz realmente inserindo no mesmo quadro, em profundidades diferentes, personagens cujas reações e ações estão interligados por causa e efeito ou algum simbolismo.

Carter ao fundo e o velho detetive (1); a esposa, estarrecida, enquanto a psicóloga explica os distúrbios do marido (2); Caim surgindo na mente de Carter quando ele é atacado pela esposa (3); o revólver com o qual Nix ameaça mãe e filha tendo, ao fundo, as testemunhas que o fazem entrar em pânico (4). Split Focus volta a ser usado com propósito de unir, no mesmo frame, em profundidades diferentes da encenação, objetos ou pessoas relacionados.
Brincando com a profundidade e os cortes: a cada mudança de plano, quando ressurge o veterano policial com Carter ao fundo, vemos o retrato falado do amante ser formado passo a passo.

É interessante, também, como DePalma continua encenando, mesmo sem a lente de foco duplo, ações em profundidade, ocorrendo no primeiro plano e ao fundo, usando todo o espaço do formato e dividindo nossa atenção — normalmente para colocar Carter ao fundo enquanto sua condição, de alguma forma, é discutida pelos personagens E PELO PÚBLICO, uma vez que nós, desde o início, sabemos que ele é perturbado.

Mais uma vez: é por trabalhar essa construção na mise-en-scène que cenas como o plano-sequência deveriam ser descartáveis. Repare como DePalma brinca e faz andar a narrativa com o recurso da profundidade: durante a conversa com os detetives, vemos Carter ao fundo orientando a criação do retrato falado do suposto sequestrador da sua esposa. A cena é feita com vários cortes e, a cada corte, vemos um detalhe a mais do retrato surgir, configurando, por fim, o desenho do amante de sua esposa, concluindo o plano que ele coloca em mente . Não é uma revelação para o público, mas uma brincadeira do diretor com os recursos que a linguagem e a técnica permitem.

De forma sutil, DePalma percebe-se numa bem planejada encenação que valoriza a mise-en-scène. A cena em que surge o velho detetive aposentado é um exemplo. É graças a ele que a investigação tomará outro rumo. No começo dela, temos o personagem de costas para Carter, falando o quanto lhe preocupa que o filho do homem que ele investigou há 20 anos esteja ali. Os detetives, que o ignoram, estão ambos de lado. Enxergamos Carter ao fundo. Um deles levanta-se e leva o veterano para a porta, tentando persuadi-lo a ir embora e deixar a investigação com eles. Por um momento, parece que é o que irá acontecer. Carter sai de cena e os dois param na porta.

Porém, o veterano não se dá por vencido. Ele volta para dentro da sala e, com isso, Carter volta a aparecer no plano. Ele não aceita que ninguém preste atenção — o detetive que o levou, então, senta-se em outra posição, de frente para Carter, enquanto o veterano tenta convencê-lo a investigar o homem que está ali. A mise-en-scène, de forma sutil, graças ao movimento dos atores, dialoga conosco também. Carter esteve prestes a se safar, mas com a volta do veterano ao quadro, ele também volta a correr riscos.

Mise-en-scène sutil e bem orquestrada: o veterano aposentado tenta convencer os policiais a investigar Carter — ao fundo — mas eles não dão bola. Conduzem ele para fora, agradecendo a ajuda e, nesse momento, Carter sai de cena e parece estar livre. Mas o veterano não desiste: ele volta, e assim como Carter volta a “aparecer” como suspeito. A própria posição do primeiro policial muda sutilmente — dessa vez, ficando de frente para o “novo suspeito”, ainda que eles venham a demorar até colocar Carter nessa condição.

Sobram, também, como nos filmes já citados, referências ao grande mestre do diretor, Hitchcock — diretamente a Psicose (1960) na exploração do distúrbio de personalidade, da identidade do assassino e da dúvida sobre a morte do pai.

O melhor momento de referenciação, no entanto, está na cena em que Caim joga o carro com a esposa desmaiada no lago. Ela remete à cena de Psicose em que Bates empurra o carro de Marion para um pântano. No filme de Hitchcock, o carro começa a afundar sob o olhar atento do psicopata e, de repente, pára. Por poucos segundos, estabelece-se uma tensão no personagem e no público, até que, então, ele volta a afundar e desaparece na água.

DePalma homenageia seu mestre de forma semelhante, porém com algumas diferenças fundamentais. A primeira delas é que Hitch demonstra a tensão de Bates de forma sutil, com reações comedidas, enquanto o personagem multifacetado de Lithgow reage de forma bem menos contida. Mas DePalma prepara uma surpresa: Hitchcock não mostra mais o corpo de Marion dentro do carro, o que, de certa forma, relativiza e diminui a antipatia do público para com Norman — naquele momento, todos dirigem essa antipatia para sua mãe e, de certa forma, ainda preservam o rapaz, tido como cúmplice e vítima de desmandos da progenitora.

Já DePalma não quer sutilezas, tampouco a simpatia do público. Diferente de outros suspenses seus, ele apresenta o assassino já na primeira cena e certifica-se de trabalhar, ao longo do filme, o estabelecimento do personagem como um doente psicopata. Nesse momento, portanto, esse sentimento é ampliado quando nós VEMOS a personagem acordar desesperada dentro do carro e suplicar por socorro. Em ambas as situações temos uma mulher sendo jogada para dentro do lado, mas é sempre menos chocante quando você não vê o ser humano que está sendo descartado. Em Síndrome de Caim, nós não apenas vemos, mas somos confrontados pelo plano seguinte, que mostra o sorriso sarcástico e assustador de Caim.

Em Psicose, Hitchcock faz uma pequena piada e deixa o público tenso quando Norman joga o carro no lago, mas a ausência de um corpo relativiza o gesto do psicopata, até então tido como apenas um cúmplice.
Já em Síndrome de Caim, nós efetivamente vemos um corpo e, mais do que isso, um corpo que acorda e suplica por ajuda, até afundar. A cena reforça ainda mais a antipatia a um personagem que a narrativa, desde a primeira cena, já apresenta como o antagonista.
Saudade? O diretor não apenas retoma temas e estilo, mas também homenageia Vestida para Matar durante o clímax do filme

Há, também, referências ao próprio diretor, principalmente na cena final que alude ao clássico Vestida para Matar — o assassino vestido de mulher, a navalha e o elevador. A cena, aliás, reúne vários dos predicados que deram fama a DePalma: o uso da câmera lenta permite a orquestração de várias ações paralelas, apresentadas em um travelling vertical que expõe o cenário em três andares: a interação entre o assassino e a mãe, o carrinho abandonado por Carter no segundo andar e a chegada dos policiais e do amante no térreo.

Apresentados esses elementos, o diretor constrói, ampliando o tempo, uma cena em que referenciação, homenagem e tensão justificam o uso do artifício de uma forma como poucas vezes o próprio diretor fez na carreira — hoje, a opção de muitos diretores seria oposta, de tentar enfatizar a ação a partir de planos rápidos e muitos cortes. DePalma usa a calma para que o espectador entenda perfeitamente tudo o que acontece em diferentes níveis da ação. Uma pena que a cena encerre de forma pouco verossímil com Carter passando em frente ao policial, vestido como Waldheim, sem que o oficial desconfie.

Domínio cênico: ao invés do que fariam muitos diretores contemporâneos, DePalma opta por esticar o tempo usando a câmera lenta e orquestrando a brilhante cena climática com ações ocorrendo em três níveis — três andares — e seis personagens, sem nunca perder a mão.

A cena final ainda faz nova referência aos filmes citados acima — e por mais que novamente a verossimilhança seja um pouco afetada, nunca é demais lembrar que estamos diante de um diretor cuja forma sempre parece ser mais inquietante e importante do que o conteúdo. Aqui, em muitos momentos, ambas se misturam e se justificam. Como o público, em geral, está mais afeito ao ritmo e aos personagens do que a sutilezas da linguagem e da narrativa, não é tão difícil entender os motivos da má recepção ao filme.

Pois saiba que ainda há tempo de se reconsiderar.

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Fábio Luis Rockenbach

Jornalista, crítico e especialista em cinema e linguagem audiovisual. Professor dos cursos de Jornalismo, Artes e Publicidade da UPF-RS