Comentários ao documentário “Planeta dos Humanos”

Rodrigo Afonso Guimarães
7 min readMay 1, 2020

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O documentário Planet of the Humans, de Michael Moore e Jeff Gibbs, mostra sob diferentes aspectos como o desenvolvimento das fontes de energia consideradas limpas mantém a dependência dos combustíveis fósseis, em vez de substituí-los. Mostra como combustíveis fósseis e outros recursos não renováveis estão ou podem estar presentes no mix energético da eletricidade que abastece veículos elétricos, nos processos de produção e transporte de painéis solares e turbinas eólicas, na geração de energia de backup para lidar com a intermitência do vento e do sol, na produção dos fertilizantes utilizados na produção de biomassa e no processo de produção de biocombustíveis.

No entanto, em vez de atacar as energias renováveis, o filme poderia ter explorado mais direta e profundamente a sua tese final, de que é impossível a economia crescer indefinidamente em um planeta finito. A crítica de que as energias renováveis estão se somando às fósseis para abastecer um crescimento econômico sem fim ilusório, em vez de as estar substituindo, é muito mais relevante do que a realidade técnica de que as fontes renováveis não conseguem substituir perfeitamente as fósseis. Querendo focar nas questões técnicas de como a indústria e o mercado das energias renováveis funcionam, faltou aprofundar nas questões mais fundamentais. E apesar do apelo técnico, o documentário poderia ter sido mais informativo e preciso nos dados passados.

Por exemplo, não há uma distinção clara entre carvão mineral e gás natural. Ficou como se fossem ambos “igualmente fósseis”. O filme às vezes dá a entender que se utiliza uma quantidade tão grande de combustíveis fósseis nos processos de produção de energia renovável, que daria na mesma produzir energia diretamente de fonte fóssil. Ele poderia ter sido mais informativo, dando uma noção real e atual dessa relação em diferentes casos. Além disso, tratou do corte de florestas energéticas em tom emocional, como se tivessem a mesma importância ambiental que florestas nativas. Por fim, acho que não precisava ter entrado tanto no mérito de interesses econômicos por detrás de investimentos em energias renováveis, se bem que foi ótimo ter mostrado um fundo de investimento dito “verde” com uma carteira cheia de empresas nada verdes.

O pano de fundo do documentário, que ficou muito mais explícito na resposta dos realizadores às críticas do que no documentário propriamente dito, é o debate entre duas vertentes do pensamento econômico preocupadas com o futuro: o Crescimento Verde (defendido pelo ambientalismo mainstream) e o Decrescimento. Ambas concordam que o fluxo energético e material da vida econômica tem que ser reduzido radicalmente e em termos absolutos (descolamento absoluto), isto é, não só por unidade do PIB (que seria um descolamento relativo). Concordam também que, nas últimas décadas, a taxa de descarbonização relativa, que é a taxa de redução da intensidade carbônica (isto é, das emissões de carbono por unidade do PIB), tem sido irrisória em comparação com a taxa de descarbonização necessária para o cumprimento da meta de limitar o aumento da temperatura média global em 1,5°C até 2050. Está havendo um certo descolamento relativo, mas as emissões absolutas estão aumentando. Por fim, concordam que a economia do conhecimento, que não envolve um consumo muito significativo de matéria e energia, pode ter um papel importante na economia do futuro.

Há duas frentes de mudança, ambas importantes, para se reduzir o fluxo energético e material da vida econômica em termos absolutos. Uma é com tecnologia e inovação, agindo principalmente sobre as formas de gerar os produtos e serviços que atendem as necessidades das pessoas. O progresso técnico tem que garantir a redução da intensidade carbônica das atividades humanas em um ritmo significativamente mais rápido que o do crescimento econômico. A outra frente de mudança está nas práticas e hábitos das pessoas para satisfazerem suas necessidades. Essas práticas e hábitos têm componentes climáticos e geográficos, mas também componentes culturais e psicológicos. A transição para escolhas baseadas em ter menos coisas e usar menos energia diretamente reduz a intensidade carbônica e a pegada ecológica, e ao mesmo tempo reduz a pressão para que essa redução se dê em função do progresso tecnológico.

O argumento dos adeptos do crescimento verde, que olham muito mais para tecnologia e inovação, segue a seguinte linha de raciocínio. Para acelerar a descarbonização da forma revolucionária ou disruptiva que é necessária, é preciso muita pesquisa, desenvolvimento e inovação em tecnologias de aproveitamento eficiente dos recursos renováveis. Para isso, é preciso investir muito dinheiro. Para investir, é preciso que a economia continue crescendo. Se entrarmos num estado estacionário, sem crescimento, não vamos conseguir fazer a revolução tecnológica necessária.

Por sua vez, o decrescimento traz a percepção de que, por mais que tecnologia e inovação sejam importantes para o aproveitamento eficiente de recursos renováveis, e por mais que haja dinheiro para investir, não há nada que justifique acreditarmos que a humanidade conseguirá obter, a tempo e em escala global, um progresso tecnológico rápido e intenso o suficiente para atingir a descarbonização necessária.

Certamente, em regiões mais pobres do mundo, a abordagem do crescimento verde pode trazer benefícios importantes, sobretudo por meio de inovação. Mesmo assim, é preciso ter em mente que esse crescimento não é um fim em si, bem como garantir que as inovações não provoquem perdas de bem-estar e riqueza cultural existentes, que geralmente não são contabilizados nos indicadores. Além disso, é fundamental financiar essa inovação de forma justa, o que merece um artigo totalmente à parte. Enfim, há situações em que, com o devido cuidado, é possível que a inovação venha acompanhada, ao mesmo tempo, de crescimento econômico, bem-estar e redução da pressão sobre o clima e os ecossistemas. Essa redução de pressão se daria, por exemplo, com a redução do crescimento vegetativo.

No entanto, a maior necessidade de descarbonização e redução dos fluxos materiais e energéticos da vida econômica está altamente concentrada no mundo desenvolvido. Ali é que está o grande desafio. E a opção pela via tecnológica é uma escolha puramente de fé, uma aposta arriscada demais, não uma escolha racional. Sem descobertas ou invenções disruptivas, os ganhos de eficiência evoluem cada vez mais residualmente com o aumento do investimento. Apostar todas as fichas no surgimento de soluções disruptivas em tão pouco tempo é uma atitude inconsequente.

Temos que aplicar o princípio da precaução e trabalhar com as escolhas que fazemos do lado da demanda, estabelecendo uma conexão maior com as nossas reais necessidades e revisando nossas práticas e hábitos. A tecnologia de que precisamos para atendermos as nossas necessidades já está praticamente toda aí, aliás, estamos cheios de tecnologias que não trazem benefícios reais. É interessante desenvolver tecnologia onde ela é realmente necessária, mas não há nenhuma razão para o desenvolvimento tecnológico obsessivo e compulsivo que temos hoje.

No livro Prosperidade sem crescimento, Tim Jackson mostra que mesmo em um cenário global de crescimento econômico zero, a taxa de descarbonização necessária para se cumprir a meta de limitar o aumento da temperatura média global em 1,5ºC até 2050 teria que ser de cerca de oito vezes a taxa de descarbonização média das décadas de 1990 e 2000. Já com uma taxa de crescimento econômico global de 1,4% ao ano, a maior pressão sobre os limites ecossistêmicos teria que ser contrabalançada por um ritmo de descarbonização de cerca de dez vezes a média histórica das duas décadas anteriores. Nas partes 3 e 4 do seu artigo The limits to environmentalism, Matthew Lockwood apresenta os cálculos de Tim Jackson e aposta no crescimento econômico para garantir investimentos em tecnologia e inovação, confiando na possibilidade de se obter uma descarbonização revolucionária. Em seu relatório Prosperidade com crescimento, Hepburn e Bowen,por sua vez, apostam na economia do conhecimento para garantir o descolamento absoluto, movendo atividades da produção e consumo de coisas e energia para a produção e consumo de conhecimento, para se permitir aumentar o PIB enquanto se reduzem as emissões de gases de efeito estufa.

A migração para uma economia mais voltada ao conhecimento é bem-vinda, mas também não há nenhuma razão para forçar essa migração na forma da monetização do conhecimento, muito menos se é só para que apareça na contabilização do crescimento econômico. Progresso pelo progresso, crescimento pelo crescimento, são coisas do passado. A economia deve ser medida pelos seus fins (atendimento às necessidades das pessoas dentro dos limites ecossistêmicos do planeta), e não pela totalidade dos seus meios (produtos e serviços) ou pelo valor monetário atribuído (irracionalmente, diga-se de passagem) a essa totalidade, dado pelo PIB. Se no final das contas o PIB vai subir ou cair, na verdade isso pouco importa. Aliás, é preciso salientar que o decrescimento da economia é uma sinalização indicativa, não um imperativo dogmático, e que o PIB tem tantos problemas no que entra e que não entra na sua composição, assim como no peso relativo de cada item que entra, que, mesmo per capita, não pode ser levado a sério como uma proxy para o bem-estar.

Em suma, o uso e o desenvolvimento de tecnologias são muito importantes quando respeitam os limites ecossistêmicos ou realmente contribuem para uma redução real da pegada ecológica, e não apenas relativa ao porte da economia. Inclusive, nas regiões mais pobres do mundo, inovação e crescimento podem trazer benefícios reais. Mas se nós não pararmos para nos conectar com nossas reais necessidades e para refletir sobre as possíveis formas de satisfazê-las, a corrida obsessiva por crescimento econômico será uma corrida fatal para o precipício. A atual pandemia do Covid-19 está sendo um excelente laboratório para refletirmos sobre as nossas necessidades realmente relevantes. É preciso recorrer à simplicidade, lembrando que há um enorme espaço para inovação, criatividade e abundância. Não existe solução universal de prateleira. A necessidade de criarmos soluções a partir do compartilhamento de conhecimentos e levando em conta as características culturais, regionais e locais é motivo para muito entusiasmo com o futuro.

O filme não explorou adequadamente esse debate. Ficou parecendo mais um enfrentamento ao movimento ambientalista mainstream, querendo provar que estão errados ou por vezes até mal intencionados, em vez de um diálogo autêntico e enriquecedor que nos inspire na criação de possibilidades concretas de um futuro próspero, baseado no bem-estar, na resiliência e no respeito aos limites ecossistêmicos do planeta.

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