Kpop e a condição idol

Rodrigo Ferreira
8 min readOct 16, 2024

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Desde que a besta ianque se consolidou como a personificação do imperialismo como fase superior do capitalismo no mundo, para além de fazer de refém países de capitalismo dependente na periferia global, de promover um bloqueio criminoso em Cuba e de bombardear e invadir militarmente países do terceiro mundo, a casa do Tio Sam elegeu alguns Estados como seus filhotes, definindo aliados (subordinados) estratégicos para suas movimentações geopolíticas e imperialistas. Seu filhote no Oriente Médio, a máquina assassina sionista de Israel, atualmente representa a barbárie repressiva armada, típica da política estadunidense, na promoção de um genocídio contra o povo palestino. É o filho que puxou o lado que o pai tenta esconder do mundo, mas só passa batido aos olhos da ONU e dos seus líderes, que advogam pelos interesses do bloco OTAN-EUA-UE, mas são sentidos na pele pelos povos oprimidos e subordinados à essa lógica. Agora, há que se destacar também a Coréia do Sul, o filhote cool dos EUA, o braço intimamente cultural do imperialismo estadunidense na Ásia, apesar de carregar grande tensão militar com nossos bravos camaradas da República Popular Democrática da Coréia. De fato, há um fenômeno cultural muito interessante emanado da Coréia do Sul, uma indústria musical que assimila todas as contradições da indústria musical no capitalismo e extrema as condições dessas contradições à níveis insustentáveis: o kpop.

Se existe um motor fundamental do kpop, esse motor é o consumo. Obviamente, tudo no capitalismo se transforma em mercadoria; nada que existe e foi criado por um anseio humano, na prática, cumpre sua função de síntese, pois o capitalismo suga toda a possibilidade de substância dessas expressões da criatividade humana e transforma em mera relação mercadológica. Mas, como dito anteriormente, o kpop abraça a elevação exponencial da lógica de mercado que contamina a cultura popular, que extrema a lógica da indústria cultura como reprodução de ideais burgueses, que trabalha assiduamente para matar o artista em detrimento do mercado. Mais profundamente, a condição substancialmente mercadológica da indústria do kpop, com o avançar das condições do capitalismo no século XXI e com a lógica de aceleração da vida, da circulação ultra rápida de informação, da era dos hiperestímulos e da incapacidade do cérebro humano de acompanhar essa velocidade sem adoecer, sintetiza uma realidade muito dura à juventude coreana (e outras que são enfeitiçadas pelo efeito da indústria, como a japonesa, tailandesa, vietnamita, chinesa…), que está cada vez mais cedo entrando de cabeça na lógica idol, integrando empresas como treinees desde os quatro anos de idade, assimilando padrões de beleza criados artificialmente por essa indústria, debutando (ou seja, estreando como idol num grupo de kpop) com doze, treze, quatorze anos de idade, trabalhando desde cedo para alcançar o objetivo de ser idol. Essa relação de meninos e meninas tão jovens com uma lógica de exploração do trabalho tão intensa carrega grande particularidade, uma vez que, para além de vender sua força de trabalho para uma empresa, tal força de trabalho é intrinsecamente corporal: é a voz, o corpo e o rosto do idol que são coisificados, produtificados, postos à lógica da indústria e do mercado.

O ser idol

Ser k-idol é diferente de ser simplesmente ídolo. Ora, supor a existência de um ser que carrega a qualidade de ídolo, carrega, necessariamente, a existência do fã, residindo aqui a diferença fundamental do idol para o simples ídolo fora da indústria do kpop. O ídolo se acompanha; ouvimos seus álbuns, por vezes os compramos. Vamos aos seus shows, carregamos fortes sentimentos amorosos nessa relação fã-ídolo, que pode ser acompanhada do sentimento consumista promovido pela indústria, bem como esse sentimento de consumo pode ser evitado, ou, ao menos, mitigado. Não existe relação fã-idol fora do consumo. Qualquer pessoa que já participou de fóruns ou bolhas de kpop nas redes sociais já se deparou com:

“Como você é fã se não está dedicando ao menos x horas do seu dia votando nas meninas na premiação y”

“Como quer ser do fandom se não está se dedicando para streamar o novo comeback?”

“Você é fã e não tem um álbum do seu grupo favorito?” ou “Só vou ser feliz quando tiver todos os álbuns do grupo x.”

“É fã de mais de um grupo? Mas mês que vem tem lançamento dos dois, qual você vai streamar? Qual álbum você vai comprar? Em qual dos grupos vai votar na premiação x?”

Não à toa, grande expoente da cultura kpop, que o diferencia dos demais ramos da indústria da música no capitalismo, é a lógica do photocard (tradução livre e literal: fotocarta): são cartinhas, estilo figurinha da copa ou carta de pokémon, que carregam consigo o intuito único de possuir. Não completam o álbum da copa e não servem para torneios de pokémon tcg, apenas servem para o fã possuir um retrato em forma de carta de seus idols favoritos. Ora, se há na comercialização dos álbuns físicos de kpop cartas com os rostos e corpos dos idols, se há no stream (lê-se visualizações, números nos videoclipes e músicas nas plataformas de áudio) a substancia basilar do kpop, que define, para o público e para a indústria, qual grupo é mais ou menos relevante, como fica a mente das jovens idols nesse processo? De fato, a indústria caminha para assassinar as possibilidades artísticas e criativas dos idols, os enclausurando num formato que vai ao encontro da padronização do gosto do público — público esse que, majoritariamente, ao assimilar a lógica da indústria, passa a reproduzi-la e ser chave fundamental da manutenção da lógica exacerbadamente competitiva do kpop, que faz com que esses jovens cantores adoeçam com a carga horária, com os padrões estéticos e com a pressão pela relevância nos charts.

Exploração do trabalho, caso Chuu/Loona e caso Newjeans.

Desde agosto de 2022, a idol Chuu, a mais notável dos membros do Loona, grupo de kpop que tinha, originalmente, doze integrantes, passa a não promover mais junto ao grupo. Em novembro do mesmo ano, a cantora é expulsa do grupo por “abuso de poder”, segundo a empresa responsável pelo grupo e suas artistas. O grupo, desde sua síntese, foi acompanhado por uma grande instabilidade, uma vez que o responsável pela produção do projeto Loona pulou fora junto com sua equipe, gerando um processo desgastante com a empresa Blockberry Creative (BBC). Tal situação conturbada colocou o grupo num hiato de mais de 1 (um) ano, consequentemente, deixando por todo esse tempo suas artistas reféns do contrato extremamente rígido, típico da indústria do kpop. Chuu decide entrar com um processo de flexibilização do contrato e mitigação da sobrecarga, sem contrapartida, pela qual estava passando. Nesse sentido, a BBC expulsou a cantora com a alegação falaciosa de abuso de poder, deflagrando o caráter parasitário, desumanamente oportunista, assassino de artista da indústria. No dia 17/08/2023, Chuu vence o processo contra a BBC, expondo a ferida de contradição da indústria, inspirando suas ex-colegas de grupo, que atualmente compõem os grupos Loossemble e Artms. Assim como Chuu, algumas seguem carreira solo. O acontecimento configurou a mais midiática deflagração dos problemas inerentes de exploração da indústria do kpop, revelando-nos que, mesmo as estruturas mais consolidadas do capitalismo, por sua própria condição inerente de produção de contradições que ele não consegue resolver, estão caminhando para o desgaste até a ruína.

Mais recentemente, o fenômeno Newjeans passa por situação similar. Newjeans é um grupo da HYBE, mesma empresa responsável pelo BTS, maior grupo da história do kpop. Sendo composto por 5 meninas (que debutaram com 18, duas com 17, uma com 16 e uma com 14 anos de idade), o grupo representou grande inovação no processo do seu debut, em 2022, conquistando muito rapidamente o público. O seu primeiro comeback não apenas gozou de muito prestígio para com o público, como também as rendeu prêmios e o título de música com o maior número de Perfect All-Kills (PAKs; consiste-se em atingir, simultaneamente, a posição de primeiro lugar nos charts em tempo real, diário e semanal.) da história do kpop com a música Ditto. O grupo está sob responsabilidade de uma empresa subsidiária da HYBE, a Ador, que tinha Min Hee-jin como sua CEO, uma produtora e diretora de arte renomada da indústria. Recentemente, Min Hee-jin acusou a HYBE de escantear o Newjeans, fazendo com que a empresa a exonerasse do cargo de CEO da Ador. A partir disso cria-se um fato jamais visto na história do kpop: as integrantes do Newjeans vão a público, pelas redes sociais oficiais do grupo, lendo uma carta onde explicitam que “não vão seguir cegamente as HYBE”, defendendo a posição de Min Hee-jin. Como se não bastasse, o grupo continua promovendo em suas redes, mantendo as aparências, como se não estivesse acontecendo todo esse caos.

Hanni, integrante e principal rosto do grupo, foi selecionada para testemunhar em um inquérito de assédio e bullying no local de trabalho, relacionado ao kpop, promovido pelo governo sul-coreano. Segue aspas do depoimento da jovem, de recém completos 20 anos de idade:

“Cheguei à conclusão de que isso não era apenas um sentimento. Eu estava honestamente convencida de que a empresa nos odiava.”

“Ao sair, [a gestora] fez contato visual comigo, virou-se para o resto do grupo e disse: ‘Ignore-a como se não a tivessem visto’. Não entendo por que ela diria algo assim no ambiente de trabalho.”

“Não entendo por que devo passar por isso e por que essa pessoa disse algo assim em um ambiente de trabalho. Isso aconteceu mais de uma ou duas vezes, e se eu continuar em silêncio, isso vai passar e ser enterrado. Isso pode acontecer com qualquer um. Decidi participar, esperando que os atuais estagiários, veteranos, juniores ou colegas não vivenciem isso”

Agora, soma-se isso à pressão estética, à condição pós-moderna da história, à era dos hiperestímulos. Como fica a mente do jovem artista nesse meio? Não é incomum ver idols pedindo hiato das promoções do grupo por motivos de saúde mental (mais recentemente lembro da Lia do ITZY, Mina e Jeongyeon do Twice). Há que se destacar que, no mesmo Newjeans, a jovem Hyein debutou com 14 anos de idade e passou (passa) pela mesma lógica. De fato, a indústria do kpop absorve tudo que há de pior na relação mercado-artista-público e eleva essas condições. O ser-idol carrega grande senso de mercantilização do rosto do artista, de seu tempo e do tempo do fã, que só é qualificado como tal quando consome ativamente, com tempo e dinheiro, ao passo que, o idol só é relevante se é consumido, se tem seu photocard comprado, se configura nas primeiras posições dos charts. Há que se dizer que, se há alguma substância emocional na relação fã-idol, essa relação deve carregar grandes sentimentos de repúdio à indústria do kpop. Que seja enterrada junto com o capitalismo; que dê lugar ao (re)florescimento do artista.

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Cinema, suas teorias e interseções com o Direito, filosofia, história e sociologia, sob a luz do materialismo-histórico-dialético.

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