Dez anos sem solidez

Rodrigo Saad
3 min readFeb 27, 2024

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Não muitos anos depois, diante do enorme e gélido retângulo cinza, o coronel Fubá Saad Hossne havia de recordar aquela tarde remota em que seu humano o levou para conhecer o gelo. “São Paulo” era então uma aldeia de doze casas de tijolo e gesso, empilhadas uma sobre a outra à margem de um rio de carros diários que se apinhavam por um leito de asfalto esburacado, cinza e estreito como lava resfriada pré-histórica. O mundo era tão tecnocrático que muitas coisas não careciam de nome, mas para mencioná-las se criava um e ainda se apontava com o dedo.

Rodrigo, o com cheiro de spray e pelos na cara, trazia sobre sua pata dianteira direita um cubo, pedaço de coisa cortado da maneira mais antropocêntrica possível, de coloração translúcida para branca. Chamou o cachorro com o tom idiotizado em sua voz que só um “sapiens sapiens” querendo reduzir-se pela metade poderia imprimir, e, ganhada a atenção, lentamente aproximou o objeto derretente à cabeça de Fubá. Com a expectativa a milhão, encostou o cubo no ponto que os pelos abundantes da cobaia momentânea menos protegiam e ansiou pelo susto maravilhado que tinha certeza que o aguardava. Mas a surpresa foi pouca. O cão lhe agraciou no máximo com um pequeno estranhamento, seguido de uma satisfação com o refresco inesperado em meio a tanto calor naquelas terras infernais e opostas às origens tibetanas de sua pelagem. O fascínio pelo “diamante que é gelado e queima ao mesmo tempo” que a visão purista de Rodrigo inocentemente imaginara foi dilacerado pelo senso de normalidade que até um pretenso ser inferior criara. “O desencantamento do mundo chegou até àqueles que nos fizeram nos encantar com ele”, filosofou o imbecil de roupas.

O coronel Fubá Saad Hossne promoveu trinta e duas rebeliões por comida e perdeu todas. Tentou ter dezessete filhos de dezessete almofadas diferentes, que foram escondidas dele uma atrás da outra num mesmo desespero, antes que a mais velha explodisse. Escapou de catorze tosas, de setenta e três banhos e de uma tentativa de se colocar uma gravatinha. Sobreviveu a uma dose de chocolate na caixa de bombons que teria sido suficiente para animar qualquer pessoa. Recusou a roupinha outorgada por seus humanos. Chegou a ser comandante geral dos latidos revolucionários, com urina e mando de uma fronteira a outra, e o cachorro mais temido pelo pet-shop, mas jamais consentiu que fizessem uma boa fotografia sua. Era uma tolice humana, pensava. Sentia-se igual quando Rodrigo o pegava no colo e o mirava a um espelho, enquanto repetia com o falso encanto insuportável “Olha você, Fubá! É você!”. A fixação por imagens de pó que os humanos tinham era só mais um dos traços do vazio que aquela espécie tanto fizera ocupar. Por isso, sempre que podia, o cão satirizava os bípedes, aproveitando-se de seu jeito engraçadinho para disfarçar a humilhação. Sentava-se como “gente”, fitava o retângulo emissor de luz tal qual seus ímpares e, em sua jogada mais ousada, produzia grunhidos para que parecesse que tentava “falar”. Além disso, também se descarregava nos lugares “errados” e mastigava fios e calçados — como se alguém precisasse deles — , como forma de represália ao impedimento de sua tentativa de conversão ao veganismo — quando comeu as plantas do jardim da mãe de Rodrigo.

Enquanto fitava a “geladeira”, o coronel Fubá Saad Hossne pensava nos prazeres das cenouras. Então Rodrigo abriu a porta mais fria e dela saiu a lufada carregada do hálito angelical do Himalaia. Deitado de bruços, o oficial lembrou do gelo. E percebeu que sua indiferença às frugalidades humanas, bem como seus deboches silenciosos, tiraram-lhe uma vida de blocos de gelo rotineiros que o aliviariam do país tropical “abençoado por Deus”. Se tivesse fingido deslumbramento, até hoje estaria devidamente refrescado. Mas não hesitou. Olhando fixamente para a prancha copiadora de líquidos em sólidos, levantou-se e começou a abanar frenteticamente o rabo e a latir. Assim, convenceu Rodrigo a dá-lo um cubo. Enfim refrescado, espaireceu. Porque as estirpes condenadas a dez anos sem solidez enfim tinham uma segunda chance sobre a terra.

Foto temporária do ditador sanguinário enquanto uma farda militar para cachorros não é comprada por seus humanos

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Rodrigo Saad

Medium para postar algumas reportagens autorais além de textos criativos. Publicações anteriores ao dia 04/03/2023 haviam sido veiculadas previamente no Revue.